O atletismo no Brasil não está imune à corrupção que grassa no país. O “Olhar Olímpico” daquele país, encontrou indícios consistentes de que a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) apresentou despesas falsas à Secretaria do Desporto, Lazer e Juventude (SELJ) do Estado de São Paulo, para justificar gastos com hospedagens, arbitragem e prémios de campeonatos realizados com verbas públicas. Num dos casos, a Confederação listou 370 atletas que ela teria hospedado por 550 mil reais (1 euro vale cerca de 3,90 reais) durante uma competição. Mas mais de 120 deles, negam ter recebido algo – é provável que ninguém se tenha hospedado. Há ainda a compra de mais do triplo das medalhas do que o número de atletas no pódio e o aluguer de dez autocarros para fazerem um trajeto que demora dez minutos a pé. Além disso, foram contratadas empresas de fachada para fazerem serviços de arbitragem, ainda que os árbitros recebessem diretamente da CBAt.
Em 20144, a CBAt conseguiu através de Toninho Fernandes, (ex-presidente da Federação Paulista de Atletismo) 5,7 milhões de reais para realizar quatro eventos: o Troféu Brasil (equivalente ao campeonato brasileiro que dura quatro dias), o Grande Prémio de São Paulo (evento realizado numa manhã, com 20 provas e atletas convidados), o Campeonato Ibero-Americano (também em quatro dias) e o Campeonato Brasileiro Sub-23 (mesmo modelo do Troféu Brasil).
A reportagem do Olhar Olímpico analisou no mês passado os processos na sede da SELJ. Em todos eles, duas empresas ficaram com a maior parte dos trabalhos, como subcontratadas. A Tomhara Tur tratou da hospedagem e do transporte aéreo. A Personal Vans alugou as carrinhas e os autocarros. A Rumo Certo e a Anjy, empresas de fachada, também foram contratadas para diversos serviços.
Hospedagem
Em 24 de Outubro de 2014, a Tomhara emitiu uma fatura à CBAT no valor de 550 mil reais para tratar da hospedagem em S. Paulo, para os árbitros, atletas e equipa técnica do Troféu Brasil, incluindo as refeições, para 370 pessoas, durante cinco dias, ao custo unitário de 300 reais. Recebeu o dinheiro e entregou um recibo manual, confirmando o recebimento.
Como forma de comprovar o serviço, a empresa entregou uma lista com 370 nomes, os quais garante ter hospedado e alimentado durante aquela competição. Na sua prestação de contas à SELJ, a CBAt entregou também essa lista, como forma de comprovar que o dinheiro tinha sido aplicado.
O que a SELJ não fez foi procurar esses atletas para saber se a lista era verdadeira. Foi o que fez o Olhar Olímpico. A lista dos 370 nomes foi compartilhada pelo Whatsapp. Em três dias, o blogue recebeu 81 mensagens, oito emails e quatro ligações. A grande maioria de atletas mas também de treinadores e dirigentes. Falando deles e de terceiros. Todos negaram terem recebido qualquer verba durante o Troféu Brasil! Ao que tudo indica, os 550 mil reais nunca foram gastos com a hospedagem dos atletas.
Antes da confirmação, os indícios já eram fortes de que se estava em presença de uma burla. A começar pelo facto de o Troféu Brasil ser uma competição interclubes, o que implica neles a responsabilidade das despesas. A CBAt não ajuda financeiramente.
E em 2014, foi assim. A lista de atletas que a CBAt alega ter hospedado tem pelo menos 20 que nem sequer competiram no Troféu Brasil! Um responsável de um clube revelou que os seus atletas tiveram de ficar num “motel pulgueiro” para poderem competir. Um corredor hospedou oito colegas. Muitos deles ficaram em casas de parentes, outros até se hospedaram em hotéis confortáveis mas pagos pelos clubes ou pelas autarquias. E boa parte deles morava em cidades próximas e deslocaram-se diariamente até ao estádio onde se disputaram as provas.
A CBAt tinha dinheiro para hospedar os atletas, pagou por isso mas não o fez. Agora, corre o risco de, além de ter que devolver o dinheiro ao Governo do Estado, responder judicialmente. Um grande grupo de atletas que soube da lista pelas redes sociais, já se está a mobilizar para uma ação conjunta.
Hospedou mesmo?
Noutras ocasiões em 2014, a CBAt utilizou de facto verbas da SELJ para hospedar atletas. Em Agosto, a Tomhara já havia recebido 792 mil reais para hospedar 660 pessoas, sendo 500 atletas, durante quatro dias no Hotel Pestana. A competição em causa era o Campeonato Ibero-Americano que só teve 349 inscritos. A nota de débito da Tomhara informa apenas o nome de 142 deles, hospedados entre 28 de Julho e 4 de Agosto. O torneio decorreu entre 1 e 3. A CBAt nega que o contrato fosse para 500 atletas, como consta do plano e do orçamento a que o Olhar Olímpico teve acesso.
O hotel Pestana fica a dez minutos a pé do estádio do Ibirapuera (onde decorreram as provas), num dos caminhos mais seguros – há um quartel do exército do outro lado da rua. A CBAt preferiu porém, evitar a ‘fadiga’ dos atletas e colocou dez autocarros ao serviço deles. Colocados em fila indiana, os autocarros preenchiam a distância de um ponto ao outro.
Uma outra situação em que a CBAt pagou hospedagem foi no Campeonato Brasileiro Sub-23, em Setembro de 2014. A CBAt pagou 640 mil reais por quatro diárias para 520 pessoas mas não informou a SELJ quem ela hospedou. A empresa contratada foi a mesma, a Tomhara, que não respondeu às perguntas da reportagem.
Para quê tanto?
Financiada pela SELJ, a CBAt apresentou várias vezes números inflacionados. No Grande Prémio Internacional de São Paulo, competição que durou três horas exatas e contou com 156 atletas, ela contratou alimentação para 80 árbitros (trabalham 65 numa competição), 45 pessoas da “comissão técnica”, 60 pessoas do “serviço administrativo”, 40 de “apoio”, 30 do “comité organizador” e 40 da “equipa técnica”. Só no staff, temos assim mais de 200 pessoas, mais de uma para cada atleta!
A superfacturação fica ainda mais evidente quando se observa os números relativos com os prémios. O Grande Prémio de São Paulo teve 20 provas, nenhuma delas de estafetas. A conta é simples: foram 60 pessoas ao pódio. Mesmo assim, a CBAt comprou 200 medalhas (que custaram cada uma, 150 reais) e 50 troféus (250 reais cada um). Todos sabem que nas competições de atletismo, não são entregues troféus. A CBAt também ainda não explicou onde estão as medalhas excedentes, nem os troféus que nunca foram entregues.
Árbitros
Nos planos das quatro competições elaborados pela SELJ, não consta o item “arbitragem”. Mas a CBAt entregou a arbitragem a algumas empresas que ganharam os contratos de “organização”. Segundo a Associação Paulista de Árbitros de Atletismo, nos eventos da CBAt de 2014, os árbitros consultados receberam sempre diretamente da CBAt.
CBAt argumenta
Sobre a nota que listou os atletas que foram hospedados para o Troféu Brasil, complementar à fatura emitida pela Tomhara, a CBAt alegou que “a ficha de cada atleta é encaminhada pela sua respetiva delegação e que a partir desses dados, efetiva a reserva de hospedagem”. E culpou os “responsáveis de cada delegação” por eventuais alterações.
Mas os dez responsáveis pelas delegações negaram que tenham informado qualquer lista ou que tenham sido procurados pela CBAt para isso. Vale ainda acrescentar que a lista de atletas hospedados foi entregue um mês depois da hospedagem e não antes.
Em relação à hospedagem para o Campeonato Ibero-Americano, a CBAt argumentou que a hospedagem não se restringia aos atletas. Mas a nota fiscal diz claramente que foram hospedados 500 atletas.
Sobre os autocarros, a CBAt alegou que eles se destinavam ao “transporte dos atletas pelos trajetos eventualmente necessários, não se limitando ao trajeto hotel-estádio”. Não explicou porém, quais outros trajetos seriam necessários para um atleta durante a competição.
Em relação ao excesso de prémios (medalhas e troféus), afirmou que todas as aquisições tinham sido feitas com base nos regulamentos da IAAF. Mas recusou-se a informar o que foi feito das medalhas excedentes, como calculou quantas medalhas deveria comprar e a disponibilizar fotos dos atletas recebendo os troféus.
E assim vai o Brasil!