As mentalidades mudaram e as mulheres descobriram que a corrida é capaz de mudar a vida para melhor. Durante muito tempo, a mulher foi proibida de correr longas distâncias por razões que tinham a ver com o machismo. Os homens acreditavam que o corpo feminino não tinha força e resistência para participar numa competição de corrida.
Mas ainda há quem resista à igualdade dos dois sexos. Foi dura a luta para que a IAAF aceitasse os 50 km Marcha para as mulheres e incluísse a prova em Campeonatos Mundiais e Europeus. O próprio Comité Olímpico Internacional ainda não tomou uma decisão sobre a inclusão da prova nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020.
Kathrine Switzer, a primeira mulher a correr uma maratona
“A ideia de correr longas distâncias era questionável entre as mulheres, porque, na cabeça de muita gente, uma atividade desportiva intensa faria com que a mulher ficasse com pernas grandes, tivesse bigode, pelos no peito e o útero deixasse de funcionar”, recordou a americana Kathrine Switzer, a primeira mulher a correr uma maratona em 1970.
Oficialmente, elas não eram impedidas de disputar a Maratona de Boston. Não havia sequer uma alínea no regulamento que vetasse a presença de corredoras. Era uma hipótese que nem sequer se colocava, tão era forte a crença limitante de que mulheres não eram capazes de correr 42.195 metros.
Kathrine Switzer decidiu inscrever-se na prova. Ainda que a organização imaginasse que se tratava de um formulário preenchido por um homem, era a primeira vez que uma mulher entrava oficialmente numa maratona, um território exclusivamente masculino até então.
Na manhã da prova, com o dorsal 261, a jovem de 20 anos partiu ao lado do seu namorado, Tom Miller. “Antes da prova, outros corredores foram simpáticos comigo. Diziam: ‘Olha só, é uma garota’. Eles estavam empolgados. Briggs repetia: ‘Sim, sou eu que a treino’.”
O clima amigável acabou ao 3º km. Repleto de fotógrafos, o camião da imprensa acompanhava todas as passadas de Kathrine. “Eu escutava os fotógrafos a pedir para que corrêssemos devagar porque queriam fotografar aquele momento”.
A movimentação chamou a atenção de Jock Semple, escocês que dirigia a prova, com rigidez. Depois de saber que havia uma mulher entre os participantes, Semple apressou-se a tentar afastá-la.
De forma bruta, empurrou a jovem e ordenou: “Saia fora da minha corrida e dê-me esse dorsal”. Essa sequência tão emblemática foi captada pelos fotógrafos e quem não a conhece?
Protegida pelo namorado, que empurrou Semple, Kathrine decidiu continuar para que aquilo servisse de exemplo para as outras mulheres.
“Naquele momento, eu pensei: ‘Vou terminar essa corrida seja como for’. Ninguém acreditava que eu podia fazer aquilo e, de repente, percebi que, se eu não terminasse, as pessoas realmente acreditariam que as mulheres não mereciam estar ali”.
Com dores em diversas partes do corpo, ela concluiu a maratona em 4h20m. Na madrugada seguinte à prova, voltou para a universidade e notou que o seu feito tivera grande repercussão.
“Parámos numa loja de conveniência para comprar um sorvete e um café. Foi ali que vimos que os jornais estavam recheados de fotos minhas. Eu percebi que aquilo tinha sido realmente importante. Vi que tinha mudado a minha vida e que provavelmente poderia mudar o desporto feminino”, disse.
A perceção de que o desporto feminino mudaria nos anos seguintes acabou por se concretizar. Em 1972, a Maratona de Boston oficializou a criação da categoria feminina.
Paralelamente, cresceu o volume de exigências ao Comité Olímpico para que a maratona olímpica contasse com a participação de mulheres — algo que só foi possível em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles.
Atualmente, não há um abismo que separe o número de participantes homens e mulheres numa maratona, diferentemente do que havia em décadas anteriores.
Na edição de 2018 em Boston, dos 25.831 que cortaram a meta, 11.628 eram mulheres. Na faixa de idade dos 18 aos 39 anos, as mulheres foram a maioria, com 5.790 representantes.
Corrida em números nos Estados Unidos
- Em 2015, cerca de 17 milhões de pessoas participaram em pelo menos numa prova nos Estados Unidos. Desse público, mais de 9,7 milhões eram mulheres, de acordo com pesquisas da Running USA, organização que visa fomentar o crescimento do mercado da corrida nos EUA. No ano seguinte, a Orca Running, uma organizadora de provas, registou que 70% das pessoas inscritas nas distâncias entre 5 km e 21 km, eram mulheres.
- Por sua vez, o ano de 1990 apresentava uma realidade completamente distinta: apenas 25% dos finalistas em corridas dos EUA eram do sexo feminino, segundo a Running USA.
No Brasil
- Segundo o último levantamento feito em 2015 pela Federação Paulista de Atletismo, a participação feminina quadruplicou em oito anos. Em 2007, 69 mil mulheres dividiram o espaço com os homens em provas no Estado de São Paulo. Seis anos depois, a percentagem subiu para 186,8 mil mulheres e em 2015, elas chegaram a 274 mil corredoras, número quase quatro vezes maior do que em 2007.
- Maratona Cidade do Rio de Janeiro e Meia Maratona do Rio: em 2017, as mulheres foram a maioria entre os corredores no conjunto das três provas do evento — 42 km, 21 km e 6 km — totalizando 50,6% dos 29 mil inscritos. Nos 21 km, elas corresponderam a 53% do total; na distância menor, foram 70%. Os homens só foram maioritários na maratona, que contou com 8,5 mil participantes (70% dos inscritos eram homens contra 30% de mulheres).
Na Europa
Há muitos anos que as mulheres europeias abraçaram o mundo das corridas. A sua elevada participação em provas é uma realidade imparável. Muitos países têm provas exclusivas para elas. A Parisiènne em Paris tem mais de 20 mil classificadas. Em Espanha, existe um Circuito de Corridas da Mulher com oito provas. No ano passado, a Corrida da Mulher em Madrid teve mais de 30 mil classificadas.
Mulheres que se destacaram na corrida em Portugal
Longe vai o tempo em que a percentagem de mulheres corredoras em Portugal raramente chegava aos 10%. Ver uma mulher a treinar sozinha nas ruas era uma raridade. Mais, era muitas vezes perigoso! Agora, já são muitas as provas em que elas ultrapassam os 30% e em casos excecionais, já têm ultrapassado os homens.
Só em 1982, tivemos a primeira campeã nacional da maratona. Foi ela Helena Rolim que em representação do CDUL, venceu em 3h59m58s. No ano seguinte, a benfiquista Rita Borralho sagrou-se campeã com um tempo abaixo das 3 h, precisamente 2h45m50s.
As Corridas da Mulher que se disputam em Lisboa e Porto já têm largos milhares de participantes, embora a maioria delas faça o percurso de 5 km a caminhar.
São muitas as mulheres portuguesas que se têm destacado no mundo atletismo internacional. A começar por Rosa Mota. Se Kathrine Switzer foi a primeira mulher a correr uma maratona em Boston, 1970, Rosa Mota foi a primeira mulher a vencer a primeira maratona incluída no Campeonato Europeu de Atletismo, na cidade de Atenas, em 1982. Melhor maratonista nacional, é ainda hoje considerada por muitos como a melhor maratonista mundial de todos os tempos. Venceu as maiores maratonas mundiais e nos Jogos Olímpicos, foi campeã em Seoul em 1988 e medalha de bronze em Los Angeles 1994. Foi ainda campeã europeia em Estugarda 1986 e Split 1990. Campeã mundial em Roma 1987.
Se Rosa Mota foi a primeira vencedora de uma maratona num Campeonato Europeu, Inês Henriques foi em 2017, a primeira mulher a vencer uma prova de 50 km Marcha num Campeonato do Mundo. Feito que repetiu no ano seguinte na 1ª edição da prova no Campeonato da Europa.
Outro nome grande do nosso atletismo foi Fernanda Ribeiro, a mais medalhada atleta portuguesa, detentora de 14 medalhas em Jogos Olímpicos, Campeonatos do Mundo e da Europa, em seniores e juniores. Entre outros títulos, foi campeã olímpica nos 10 mil metros em Atlanta 1996 e medalha de bronze em Sidney 2000. Campeã mundial dos 10 mil metros e vice-campeã dos 5 mil metros em Gotemburgo 1996. Vice-campeã dos 10 mil metros e medalha de bronze dos 5.000 em Atenas 1997. Campeã europeia dos 10 mil metros em Helsínquia e vice campeã na mesma distância em Budapeste 1998.
Muitas outras mulheres se destacaram no mundo das corridas em Portugal. Eis os nomes daquelas que conquistaram medalhas em Campeonatos Mundiais e Europeus:
Aurora Cunha, Manuela Machado, Carla Sacramento, Susana Feitor, Conceição Ferreira, Analídia Torre, Albertina Dias, Sara Moreira, Jéssica Augusto, Inês Monteiro e Dulce Félix. Fora das corridas, temos Naide Gomes (pentatlo e comprimento) e Patrícia Mamona (triplo salto).