Tem 43 anos, corre há 11 anos (após grave acidente de viação). Apaixonou-se pelas grandes distâncias, já correu 14 maratonas e 64 ultramaratonas. Já correu em seis desertos e a Badwater (217 km) com temperaturas acima dos 40ºC..
Entrevistámos Carla André em Junho de 2015. Desde aí, muita coisa se passou na sua vida desportiva. Agora com 43 anos, ela é a primeira “Atleta do Pelotão” deste novo ano que todos esperamos, seja bem melhor que o que findou.
Gerente bancária e atleta do Novo Banco, Carla André continua a ser uma cidadã/atleta muito modesta e com o futuro cheio de projetos audaciosos.
Ao contrário do habitual, apresentamos a sua entrevista de uma forma diferente, tipo pergunta e resposta.
Há quantos anos treina e como apareceu o atletismo na sua vida?
Comecei a correr em 2006/2007, depois de uma viagem de férias ao México e depois de um grave acidente que quase hipotecou a minha mobilidade em 2005.
Para recuperar fiz um programa de exercícios de fisioterapia e mais tarde, quando já não sentia dores, comecei a correr. Nessa viagem ao México, caminhei muito e sentia-me bem, física e psicologicamente. Quando cheguei a Portugal, comecei a correr, 1 minuto, 2 minutos e assim sucessivamente. Cada superação era uma vitória, ia alternando corrida com caminhada. Via na corrida uma forma de libertação, de agradecimento pelo dom da vida para a qual, me foi dada uma segunda oportunidade. A corrida foi entrando na minha vida, superação pessoal após superação. Em 2010, realizei a primeira prova oficial de 10 km e desde então, quis testar os limites a cada passo que superava.
“O cansaço e stress de um dia, terão de ser a motivação e não a desculpa. Se tiver de ser às 10 e 11 da noite ainda estou a fazer o meu treino”
Treina quantas vezes por semana? Tem treinador?
Não tenho treinador, baseio os meus treinos na minha experiencia e nos exemplos/conselhos de amigos/informação que pesquiso, gosto muito de aprofundar conhecimentos. A média de treinos semanal depende do desafio que esteja a preparar. No pico de treinos, apenas descanso um dia por semana.
Como concilia os treinos e corridas com a sua atividade profissional?
Este é o maior desafio devido à dificuldade de ter horários certos, para além da exigência de uma profissão de stress que muitas vezes, poderia ser a desculpa perfeita para descansar. Para conseguir conciliar, a força do querer tem de transformar cada segundo em muitos minutos e o cansaço e stress de um dia, terão de ser a motivação e não a desculpa. Se tiver de ser às 10 e 11 da noite ainda estou a fazer o meu treino.
Quando foi a primeira corrida oficial de estrada? Que achou dela?
Estreei-me na Corrida do Tejo em 2010. Achei absolutamente fascinante pelo número de participantes e por ser a primeira corrida oficial de 10km.”
“Tenho uma paixão assolapada por correr no deserto, é o meu ambiente preferido para correr”
Quantas corridas faz em média por ano?
Normalmente, faço um grande desafio e todas as restantes provas são formas de preparar o desafio principal. Talvez uma prova de mês a mês ou de dois em dois meses, depende muito de qual for o desafio principal.
Qual a(s) corrida (s) em que mais gosta de participar?
Tenho uma paixão assolapada por correr no deserto, é o meu ambiente preferido para correr. Todas as provas que realizei no deserto foram as mais marcantes. Tenho como objectivo, conhecer todos os desertos do mundo. Já corri no Deserto em Marrocos, Califórnia, Omã, Jordânia, Tunísia, Israel… O meu maior sonho é correr 300 km no deserto na Argélia, aquele que considero ser o país mais bonito do mundo. Quando o ‘mundo abrir’ visitarei, e se a prova se realizar (Trans333), estarei na linha de partida.
E a(s) que menos gostou de participar?
Não existe nenhuma que tenha gostado menos, todas fizeram parte da experiencia maravilhosa de correr.
“A satisfação obtida em cada sucesso, leva ao desejo de um novo desafio, um pouco mais difícil”
Qual a distância preferida?
Superior a 100 km
Como apareceu o seu gosto pelas grandes distâncias?
À medida que nos superamos em algo que achamos não conseguir, entendemos que a mente dita os nossos limites e não o corpo. A satisfação obtida em cada sucesso, leva ao desejo de um novo desafio, um pouco mais difícil.
Já correu quantas maratonas? E quantas ultramaratonas?
Total 78: 14 Maratonas e 64 Ultramaratonas
E como foi a primeira maratona?
Estreei-me na maratona em 2011, em Lisboa. Foi a primeira vez que concretizei algo que imaginava que o corpo não conseguia fazer, correr 42 km sem parar. Aprendi nesse dia, que a mente, o querer e os sonhos têm um peso muito grande na concretização dos objetivos.
“As melhores organizações estão em Portugal!”
Qual a corrida até hoje que lhe foi mais difícil cortar a meta?
A Badwater, pela distância de 217 km, e pelo facto de ser 100% corrida em estrada, com calor elevado. Mas também foi uma das que mais satisfação me deu ao concluir. Terminei lavada em lágrimas mas tremendamente feliz.
Quais as principais diferenças nas provas no estrangeiro e em Portugal? A nível de organização e de ambiente?
Gosto muito de correr fora do nosso país porque só lá, poderei viver o meu deserto, no entanto as melhores organizações estão em Portugal! Os detalhes, o carinho, os trilhos, tornam tudo por cá muito especial. Gostaria de referir no entanto, uma prova de 100 km que fiz na Tunísia, no deserto, em que parecia estar em casa. Quando cheguei à meta, fui abraçada pelo organizador com uma enorme bandeira Portuguesa, foi um momento lindo e muito especial. Num país assolado pelo medo do terrorismo, foi a primeira prova que realizaram, encheram-nos de carinho e foi inesquecível! Terei de voltar lá! (Ultra Mirage)
“A ‘Marathon des Sables’ em Marrocos, é mais do que uma prova, é uma experiencia de vida… desde então, tenho de desenhar caminhos pelo deserto!”
Qual foi o momento da sua carreira que mais a marcou?
A ‘Marathon des Sables’ em Marrocos, é mais do que uma prova, é uma experiencia de vida. Uma semana desprovidos de tudo, com uma mochila com o essencial às costas, a fazer o que mais amamos, no lugar mais inóspito e encantador do mundo, o deserto. Marcou-me muito porque desde então, tenho de desenhar caminhos pelo deserto!
Até quando pensa correr?
Correr é o ar que respiro, é a minha vida, o meu encanto, a minha paixão. Só deixaria de correr se a saúde não permitisse, o que espero que nunca aconteça. Sou grata pela saúde que Deus me tem dado, por isso rezo, para agradecer cada dia e pedir que continue a permitir que seja feliz.
Costuma fazer exames médicos de rotina?
Sim, anualmente, analises, prova de esforço/ecocardiograma/ECG
“Desde Março deste ano que me tornei vegetariana, e sinto enormes benefícios com a transição, nomeadamente no que respeita à resistência”
Lesões?
Tenho sido muito abençoada com poucas lesões, em dez anos de corrida, apenas tive de parar 2 ou 3 meses por lesão, duas lesões provocadas por excesso de treino, lesões de stress. Nunca parei totalmente o exercício, efectuei treinos alternativos, nunca tive nenhuma lesão grave. Tento sempre ouvir o corpo, ter cuidado com exercícios de fortalecimento sempre que posso, e tomo diariamente suplementação para proteger as articulações – glucosamina e condroitina. Faço recuperação em banhos de água gelada, que considero ser o melhor ´remédio’ para algumas ‘ tareias’ a que submeto o corpo. O frio cura algumas microrruturas que o excesso de impacto causa no corpo.
Tem algum tipo de cuidado com a alimentação?
Desde Março deste ano que me tornei vegetariana, e sinto enormes benefícios com a transição, nomeadamente no que respeita à resistência. Não tenho acompanhamento de um nutricionista mas efetuei estudos de informação sobre a matéria, construi um ficheiro onde analisei os alimentos que teria de substituir para evitar carências nutricionais. Têm sido um caminho maravilhoso de mudança para o qual, tenho a certeza não existir retorno, não sinto qualquer falta da carne nem do peixe na minha alimentação! Consumo ovos e lacticínios, e continuo a consumir muitos legumes todos os dias, sopa e muita fruta à semelhança do que já fazia.
Se não estivesse no atletismo, que modalidade gostaria de ter seguido?
Se não estivesse no atletismo, gostaria de praticar ciclismo, pelas distâncias que é possível fazer. No entanto, reconheço que não posso dedicar-me às duas pela elevada paixão que tenho pela corrida. Comprei uma bicicleta de estrada e ainda fiz uns bons quilómetros mas como me dedico mais à corrida, criei medo e ela está ‘encostada’ num canto.
“Pessoalmente, gosto muito de correr sozinha, são viagens que faço comigo própria”
Que futuro vê para o atletismo em Portugal?
O atletismo está a crescer porque as pessoas descobriram que correr é tao simples e faz tão bem a nível psicológico e físico, sendo que as organizações aproveitam esta crescente procura, alargando a oferta de provas.
O que mais aprecia no mundo das corridas?
Hoje, só corre sozinho quem quer, existe na generalidade um bom ambiente entre atletas e um número enorme de treinos em grupo que permitem a todos correr, independentemente do nível em que se encontrem. Pessoalmente, gosto muito de correr sozinha, são viagens que faço comigo própria. Os meus treinos preferidos são os que saio de casa com um track no relógio, mochila às costas, o Spot (localizador satélite) para a família saber onde ando, caso algo corra menos bem, dinheiro para um gelado e cafezinho, e o coração cheio de sonhos. Em tempos de pandemia em que não posso sair do país para o meu deserto, tenho feito treinos encantadores por locais maravilhosos do nosso lindo país.
“Não preciso de um dorsal para ser feliz a correr, há que redesenhar enquanto o mundo não se adapta aos novos tempos”
Sugestões para uma melhor organização das provas?
Confesso que pessoalmente, sou pouco critica em relação à organização de provas. Habituada a que estou a fazer treinos longos sozinha e em total auto-suficiência, quando faço as provas para preparação dos desafios, considero que está tudo perfeito.
Projetos futuros na modalidade?
Vivemos tempos novos motivados pela pandemia, não creio que tão depressa voltemos ao que já vivemos. Tudo vai mudar mas a modalidade vai adaptar-se com novas alternativas e condições de segurança para continuar a existir. Considero que vai levar muitos anos, até voltarmos ao que já tivemos, o importante é continuarmos ativos e motivados, mesmo sem provas, aproveitando caso sirva de motivação, os desafios e provas virtuais. O importante é a adaptação da modalidade aos novos tempos e a nossa motivação pessoal para continuar a correr.
Não preciso de um dorsal para ser feliz a correr, há que redesenhar enquanto o mundo não se adapta aos novos tempos
Em 2015, estava a pensar escrever um livro sobre a Marathon des Sables. Chegou a escrevê-lo?
Tenho escritas 100 páginas sobre esse sonho, mas não cheguei a publicar. Está guardado para mim, mas penso que um dia terei de publicar, ou pelo menos, continuar a colocar numa folha, todas as aventuras que vivo hoje na corrida. Trago no coração, inúmeras histórias de encantar!
Mais algum aspeto que ache de interesse divulgar
Este ano com a pandemia, descobri a maravilha dos treinos a solo de 100 km. Numa altura em que as provas são canceladas, encontrei a forma de redesenhar os meus sonhos e continuar a preparar o futuro. O que mais gosto é a preparação da logística destes treinos, estudar o percurso, os cafés para apoio, fontes, o track a seguir, e é só partir. Este ano, já fiz três destas aventuras e foram muito marcantes. O último que fiz, foi há cerca de 15 dias, num fim de semana de confinamento. Resolvi desenhar um percurso de 100 km em estrada, dentro do meu concelho de Mafra. Parti às 6 h e cheguei aproximadamente às 18h30. Num dia assolado por um temporal/chuva e frio de um grau centígrado à partida, foi um bom teste para me pôr à prova numa das minhas maiores dificuldades que é gerir o frio, habituada a que estou a temperaturas elevadas. Não preciso de um dorsal para ser feliz a correr, há que redesenhar enquanto o mundo não se adapta aos novos tempos.
Em 2015, Carla André tinha corrido a mítica Marathon des Sables/Maratona das Areias. Fizemos-lhe então uma dúzia de perguntas acerca dessa sua experiência inesquecível. Conheça as suas respostas que se mantêm atuais.
Marathon des Sables
O seu êxito na Marathon des Sables, tornou-a uma referência para muitos atletas populares. Alguns, mesmo sem a conhecerem pessoalmente, pedem-lhe para tirar uma fotografia conjunta. “Você é a minha inspiração!”. Carla André foi então a 308ª da geral entre 1.237 classificados. Mas a corrida não foi nada fácil. Só a inscrição teve o custo de 3.000 euros. A viagem custou mais cerca de 500 euros. Foram os custos mais elevados.
O percurso foi variado pois os 250 km em seis etapas, com a quarta a ter “só” 91,7 km, tiveram subidas em dunas, montanha com muitas subidas e descidas técnicas, às vezes a necessitar do apoio de cordas. Rios secos, piso de pedra solta, muito calor. A temperatura chegou aos 43ºC, às 8 horas, já se suava.
Marathon des Sables numa dúzia de perguntas
1 – Quando e como surgiu a vontade de lá correr? Surgiu após realizar a minha primeira Ultra Maratona Melides-Troia, 43 km.
2 – Fez alguma preparação especial? Sim. Focalizei-me no treino específico para a prova! Ela não é ‘apenas’ 250 km a correr. Para além
disso, há que carregar uma mochila pesada, e um terreno de areia, juntando o calor. Todas estas variáveis têm de ser treinadas. Para além
disso, requer uma enorme organização na gestão logística. Fiz um volume elevado de treinos em areia e com a mochila, aumentando
gradualmente o peso da mesma. Para além disso, dado que não é possível simular o calor, treinava sempre com alguma roupa em excesso
para aumentar a transpiração. Treinei muito na serra e no areal das nossas praias, 30 a 40 km, muitas vezes à noite, pelas 22 horas e a acabar
depois da meia-noite. Ia sozinha com a mochila, já pesada, aumentando o seu peso até aos 10 kg.
3 – Teve apoios? Na altura, a nível do equipamento (Compressport), suplementos ( Suplementix) e a nível do acompanhamento de treino (O2 Life Center). Os maiores custos foram integralmente suportados por mim. A inscrição, a viagem e outro equipamento necessário (mochila e saco cama, por exemplo). Quando temos um sonho muito grande, a palavra sacrifício e opções terão de fazer parte, mas no fim, a compensação é imensa!
4 – Quais as principais dificuldades encontradas? A principal dificuldade da prova é o facto de levarmos connosco uma mochila que no meu caso, pesou entre 10 e 11 kg.
5 – Que levou na mochila? A alimentação para os oito dias, saco-cama, objetos para cozinhar (panela, acendalhas, isqueiro), água, roupa,
tratamento para os pés (fitas de protecção e cuidados para bolhas – betadine, fio, agulha, luvas).
6 – Como lidou com a falta de água? A mente estava preparada para essa ausência. A roupa foi a mesma durante oito dias e nunca a lavei. O banho, foi improvisado com uma garrafa de 1,5 litro e amostras de gel de banho que levei.
7 – Como foram as refeições? As refeições eram compostas apenas por massa liofilizada, barras energéticas, gel, muesli e frutos secos. Comia o equivalente a cerca de meio quilo por dia. Nunca enjoei a comida, acabei de certa forma por repetir aquilo que fazia no dia-a-dia, devido ao trabalho.
8 – Que mais a impressionou? Impressionou-me encontrar todo o tipo de atletas, mais novos ou mais velhos, com maior ou menor preparação, mas que com elevado esforço, conseguiram chegar à meta! Comoveu-me mais a chegada dos últimos que a minha própria chegada. Eles foram a minha inspiração e um exemplo enorme de força e superação!
9 – Como foi o ambiente da prova? Excecional, muito em especial após as etapas, no acampamento. As tendas, o convívio com outros participantes, o cozinhar e dormir ao ar livre, tornam a MDS a prova mais especial e mais marcante em que participei. A organização é de elevada simpatia e extremamente bem coordenada. Todos os dias, tínhamos a visita do Mário Machado que fazia parte da Organização.
10 – Um ou dois conselhos para quem quiser ir pela primeira vez a esta prova? Muito importante focalizar no treino específico para esta
prova. Preparar diariamente os pés, cerca de um a dois meses antes da prova; os problemas nos pés, são uma das maiores causas de desistência na prova. Há que levá-los bem hidratados. Uma bolha estraga a prova. Todos os dias, punha fita adesiva em cada dedo dos pés.
11 – Foi mais ou menos difícil do que esperava? Menos difícil, porque estava bem preparada. Os treinos foram mais duros que a prova.
Levamos um medo muito grande, até do frio da noite e dos escorpiões. Há muita gente que não consegue ultrapassar estes medos.
12 – Tinha noção de que os portugueses estavam a acompanhar a sua prova? A Organização dava-nos todas as manhãs as folhas com os comentários que as pessoas nos enviavam no site. Era um momento do dia muito emocionante.