Com os investigadores a aproximarem-se, o saltador Danil Lysenko precisava de um alibi para apoiar a sua história. Os principais dirigentes da federação russa forneceram-no, criando um hospital falso.
Lysenko tinha faltado a três testes antidoping no espaço de um ano e podia apanhar uma suspensão até dois anos, o que lhe impediria de estar presente em Tóquio. Então, os dirigentes russos desculparam o atleta porque ele havia estado num hospital, a fazer uma bateria de exames médicos.
Em Setembro de 2018, receando que os investigadores estivessem próximo da verdade, Lysenko enviou um e-mail para um importante dirigente da federação russa, perguntando se ele poderia dar-lhe fotos do hospital, para que pelo menos, o atleta soubesse descrevê-lo, se alguém lhe perguntasse. De seguida, acompanhado pelo mesmo funcionário, dirigiu-se ao endereço listado no site do hospital. Quando parou o carro e Lysenko olhou em volta, ficou pasmado. Não havia hospital. Não havia sequer um prédio! Tudo o que ele podia ver era um canteiro de obras. Como é que ele ia explicar-se?
Nos quase cinco anos desde que foi denunciado o programa de doping patrocinado pelo estado russo, jornalistas, autoridades antidoping e investigadores, descobriram escândalos atrás de escândalos. As amostras passavam por um orifício na parede de um laboratório, resultados de testes que desapareceram.
No entanto, mesmo para os padrões russos, a história para explicar o paradeiro de Danil Lysenko tinha várias falhas.
A clínica que não era
Os investigadores descobriram que o prédio dado, referente à clínica, no endereço de Moscovo, tinha sido demolido em 2017. O hospital era uma mentira. Assim como os testes, as desculpas e até os nomes dos médicos nos relatórios médicos de Lysenko. No momento em que o esquema se desmoronou, ele envolvia meia dúzia de dirigentes russos e um atleta que não poderia resistir à investigação.
Nesta quarta-feira última, o órgão de investigação da modalidade – a Unidade de Integridade do Atletismo, publicou os pormenores completos da sua investigação no caso Lysenko.
O relatório destacou não apenas, a forma como as autoridades russas tentaram obstruir as investigações antidoping, mas também o quão longe os órgãos de investigação devem ir para descobrir informações falsas.
O escândalo já levou à demissão da direção da federação de atletismo da Rússia, e é um dos principais motivos pelos quais o país continua suspenso da modalidade, mesmo com o país a travar uma luta para regressar às grandes competições internacionais.
O ex-presidente da federação de atletismo da Rússia, Dmitry Shlyakhtin, e o diretor executivo da organização, Alexander Parkin, estavam entre os cinco altos funcionários banidos esta semana pelas suas funções no caso. Lysenko, que está suspenso desde 2018, pode agora enfrentar uma suspensão de até oito anos. Em breve, o seu treinador também poderá ser suspenso.
A conclusão da investigação foi saudada como o mais recente sucesso da AIU, uma unidade criada em 2017 após a revelação de que a ex-liderança do atletismo havia recebido milhões para encobrir testes de doping.
Financiado com um subsídio de 8 milhões de dólares – 12% do orçamento anual da World Athletics – o grupo tem tratado de casos envolvendo alguns dos maiores atletas mundiais, num esforço para restaurar a verdade e a credibilidade da modalidade. Em Outubro do ano passado, por exemplo, o seu trabalho levou à suspensão do sprinter norte-americano Christian Coleman, atual campeão mundial dos 100 metros, por falhas no paradeiro.
O caso Lysenko foi considerado um dos maiores sucessos da AIU até ao momento. “Estas são ofensas da maior seriedade cometidas por pessoas bem no topo da RusAF, uma federação mundial de atletismo”, escreveu o tribunal que supervisionou o caso na sua conclusão. “Parece que a maioria, senão toda a alta administração da RusAF, esteve envolvida nesta grande fraude. Isso é bastante chocante. ”
Segundo a AIU, como parte da sua investigação, ela entrevistou 22 testemunhas, traduziu 7.000 documentos e garantiu seis terabytes de dados vinculados ao caso após apreender telemóveis e discos rígidos de computador usados por Lysenko e funcionários da federação russa.
Ao restaurar arquivos que foram eliminados à pressa, incluindo e-mails e mensagens de voz enviadas em plataformas como o WhatsApp, os investigadores foram capazes de recriar o esforço frenético feito nos bastidores para ajudar Lysenko a escapar do castigo. No ano passado, a federação russa de atletismo acabou por concordar em declarar-se culpada e a ter de pagar uma multa de dez milhões de dólares.
O plano para proteger Lysenko começou em Julho de 2018, depois de ele ter faltado a um exame antidoping e não ter registado duas vezes depois, a sua localização num sistema de computador criado para ajudar os testadores a encontrar atletas de elite, a qualquer momento. Lysenko explicou aos dirigentes russos que as suas duas falhas no paradeiro em 2018 foram o resultado, primeiro, de problemas de saúde e depois, do seu envolvimento num acidente de carro.
Os investigadores disseram que não acreditavam nele. De acordo com o resumo do caso, depois de Lysenko e o seu treinador, Evgeny Zagorulko, terem sido convocados para uma reunião com as autoridades russas para explicar as acusações, Zagorulko contatou Artur Karamyan, membro do conselho da federação russa de atletismo, para perguntar se um falso um certificado médico poderia ser obtido para reforçar a história do saltador em altura. Em vez de relatar o esforço para criar um documento falsificado para uso num caso de doping, Karamyan forneceu um no dia seguinte.
Os investigadores exigiram prontamente os registos médicos completos do atleta, bem como as informações de contato dos médicos que o trataram. Isso levou a uma série de ligações frenéticas, mensagens de texto e e-mails entre os russos e, por fim, gerou um pedido para que Lysenko organizasse uma série de testes e exames – onde quer que estivesse – que poderiam ser usados para substituir aqueles que ele alegou ter feito em Moscovo.
Lysenko fez os testes em Agosto de 2018 numa instalação da sua cidade natal, Birsk, onde treinava na época, e então, pressionado pelo presidente da federação, Shlyakhtin, enviou imediatamente os resultados para Moscovo. Quando eles chegaram, os funcionários garantiram que tivessem uma data retroativa e pareciam ter saído de uma instalação fictícia – agora chamada de Clínica SD – e Lysenko entregou os documentos aos investigadores.
Mas Lysenko parecia estar a ficar nervoso. No início de Setembro, ele mandou um e-mail para Karamyan, o membro do Conselho encarregado de supervisionar a fraude e pediu os detalhes da clínica.
“Olá!” escreveu Lysenko, de acordo com a versão traduzida dos investigadores. “Karamyan pode enviar algumas fotos da clínica?” perguntou ele, apenas para que soubesse como era.
Três semanas depois, Lysenko, acompanhado por Karamyan, dirigiu-se até ao endereço existente no site da clínica, apenas para descobrir que não havia instalações no endereço. O prédio até esteve lá, os investigadores confirmaram isso mais tarde, mas foi demolido em 2017, meses antes de Lysenko alegar que havia sido tratado nele.
“As conclusões da investigação foram que a SD Clinic não existia”, disse o relatório. (O site da clínica também era falso; os investigadores mais tarde confirmaram que estava repleto de fotos de pelo menos, dois edifícios não relacionados.) Os investigadores também concluíram que a explicação médica para a falha inicial de localização de Lysenko – um ataque de apendicite – “era falsa e apoiada por documentos fabricados. ” A explicação para a sua segunda falha de paradeiro, o acidente de carro, também não fazia sentido.
Com a sua história a desmoronar-se e agora enfrentando uma acusação adicional de adulteração de evidências, Lysenko contou ao seu advogado norte-americano, Paul Greene, como tinha tentado enganar os investigadores. Greene, de acordo com os documentos, aconselhou Lysenko a contar à AIU a verdade sobre a conspiração ou ele se retiraria do caso.
Lysenko recusou, dizia o relatório, e Greene encerrou o relacionamento. Greene, citando o privilégio do cliente advogado, recusou-se a comentar sobre o seu trabalho com Lysenko.
Em Abril de 2019, durante uma entrevista com a AIU, Lysenko – agora representado por um advogado russo que já representou a federação russa de atletismo – tentou justificar a sua história. No entanto, quando os investigadores descobriram falhas na conta, Lysenko quebrou.
“Lysenko admitiu que os documentos e explicações que forneceu à AIU relativos à sua explicação médica e à sua estadia na Clínica SD, eram falsos e fabricados, e que ‘pessoas da federação’ o ajudaram a criar a história ”, relatou o tribunal. Lysenko disse aos investigadores que a decisão de fabricar a história e as evidências, tinha sido aceite por todos os envolvidos.