Caiu o pano sobre os Jogos Olímpicos de inverno e verificamos que um país com aproximadamente 5 milhões de habitantes liderou a tabela de medalhas conquistadas.
Como foi possível?
A Noruega possui o melhor sistema mundial de deteção de talentos. Aquando do nascimento, é efetuado a todos os bebés um teste de DNA, a fim de averiguar que apetências possui e para que modalidade. Esta avaliação é repetida nos dois anos seguintes. É dada particular atenção nos primeiros doze anos de vida. Quando o jovem celebra o 6º aniversário, é nomeado para cada talento um tutor que acompanha em permanência o seu desenvolvimento desportivo.
Todo o seu percurso desde o início da prática desportiva é objeto de registo, monitorização e estudo, tentando assim potenciar o resultado da prática desportiva. Todo o sistema assenta numa organização altamente profissionalizada, não há espaço para o improviso. Caso se detete, após alguma avaliação anual, que o jovem possui talento para um desporto diferente do da sua escolha, é imediatamente encaminhado para a modalidade na qual se sabe que irá ter sucesso no futuro. Poupa-se assim recursos humanos e financeiros, maximizando o sucesso alcançado pelos atletas do país.
É este o grande ensinamento a retirar.
Se pensa que esta é a verdade, está enganado. Nada do que acabou de ler representa a realidade. Felizmente, o que acabou de ler é falso. Mais à frente regressaremos à Noruega.
Recuemos agora à segunda metade da década de 70 e aos anos 80 do séc. XX, em Portugal.
A organização e responsabilidade das então denominadas secções de atletismo dos clubes estavam entregues a carolas, voluntários que nada retiravam do atletismo a não ser prazer e gosto pelo que faziam. Não havia grandes registos das marcas obtidas, por vezes até inexistentes, aliás praticamente não havia qualquer tipo de registo e havia imensos miúdos que participavam nas provas de atletismo. Em meados dos anos 80, ainda era possível participar em campeonatos nacionais de pista para juvenis e juniores, em que existiam mínimos de participação, sem que o atleta houvesse obtido esses mínimos. Não existia qualquer programa de deteção de talentos, no entanto Portugal tornou-se uma potência europeia e mundial no meio-fundo e fundo.
Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernando Mamede, Aurora Cunha, António Pinto, Domingos Castro, Manuela Machado, António Leitão, Fernanda Ribeiro, Dionísio Castro, Albertina Dias, João Junqueira, Conceição Ferreira, João Campos, Albertina Machado, Paulo Guerra, Rita Borralho, Carla Sacramento, Alberto Maravilha, José Ramos, Joaquim Pinheiro, Calos Patrício, Carlos Monteiro, Ezequiel Canário, Eduardo Henriques, Alberto Chaíça, Luís Jesus, etc., têm em comum nunca terem sido objeto de qualquer programa de deteção de talentos e a maior parte, senão a totalidade, fizeram o primeiro teste de esforço talvez por volta dos 25 anos, alguns talvez nunca tenham feito qualquer tipo de controlo de treino em toda a vida. O controlo de treino era efetuado pelo cronómetro do treinador.
Voltemos agora à Noruega no sec. XXI.
A verdadeira história.
Na Noruega, o foco está na participação. As crianças são incentivadas a praticar o máximo de modalidades e desportos que puderem e os custos são mantidos baixos para os pais. A atividade física é permanente. “O que a Noruega tem de diferente é uma aposta no desporto para todos desde tenra idade” (1).
Nas competições para menores de 13 anos, os clubes não estão autorizados a registar classificações ou até pontuações. Não há rankings individuais ou campeonatos nacionais para essa faixa etária (2).
Os clubes formam a espinha dorsal do desporto na Noruega. Existem mais de 12 mil em todo o país e todos são dirigidos quase inteiramente por voluntários (2), os tais carolas.
Esta prática vem lembrar-nos de que não existe um programa de deteção de talentos que seja fiável. Por um lado, deteta jovens que mais tarde não apresentarão resultados de excelência nem confirmarão o que deles se esperava. Por outro, exclui atletas que mais tarde poderiam apresentar resultados de excelência, jovens que poderiam beneficiar de uma maturação diferente tardia como se verificou já em muitos casos. Ainda por outro lado, porque o erro tanto na execução dos testes como na avaliação é uma atividade inerente ao ser humano.
Vetle Sjaastad Christiansen, exemplo de maturação tardia, um dos integrantes da equipa masculina de Biatlo em Pequim 2022 e que, aos 29 anos, ganhou uma medalha de ouro na sua primeira participação em Jogos Olímpicos. Este seria mais um dos que o sistema de deteção de talentos deitaria fora.
“Somos tão bem-sucedidos, porque realmente gostamos do que estamos a fazer. Assim, é mais fácil trabalhar no duro – não todos os dias, mas quase todos os dias.”
A Noruega não procura só criar campeões. Quer também produzir bons noruegueses
A deteção de talentos, como há muito se entende, necessariamente envolve previsão. “A previsão baseada no desempenho baseia-se implicitamente na ideia de que o que é feito aos 15 anos, por exemplo, é uma boa indicação do que será feito 10 anos depois” (3).
De acordo com diferentes estudos, este postulado está errado, infelizmente muitos ainda estão agarrados a ele.
“Só é possível prever um nível de desempenho com margem de erro aceitável, se a previsão for baseada em uma marca alcançada quando o atleta estiver próximo da idade adulta”(3). Este postulado leva-nos a um paradoxo, neste caso já não é deteção de talentos.
Ericsson, Krampe e Tesch-Römer (4) são da mesma opinião, quando afirmam que os testes de aptidão podem prever o resultado imediato com uma correlação de 0,3; enquanto a correlação entre desempenho e sucesso final cai para 0,2, o que indica que é uma correlação muito baixa e, portanto, esses testes são pouco úteis nesse sentido. Estudos relacionados a esse aspeto mostram correlações semelhantes.
A forma perfeita para detetar um jovem que venha a tornar-se campeão olímpico é o Santo Gral da deteção de talentos.
Todos procuram o Santo Gral, o problema é que todos os testes para tal não garantem que um atleta venha a tornar-se campeão olímpico, porque tal não é possível.
Evidente que haverá sempre quem faça previsões e quanto mais previsões fizer, mais possibilidades terá de acertar. Se repararmos com atenção, cada Guru que acerta num “talento” acumula dezenas de fracassos e erros.
No entanto, estes testes estão associados a baixos valores de predição, o que questiona a sua validade (5).
Como vimos, o segredo para o sucesso da Noruega não está em qualquer programa de deteção de talentos.
Depois, a Noruega tem outra coisa muito importante para o desenvolvimento deste sistema desportivo: dinheiro. “No ano passado, mais de 300 milhões de euros foram distribuídos para iniciativas desportivas em todo o país, desde as competições juvenis às seleções nacionais, incluindo quase 16 milhões de euros (6) para as Olimpíadas. “Ou seja, fazendo as contas, o comité olímpico norueguês foi apoiado num ano com mais ou menos, o mesmo que o Comité Olímpico de Portugal recebeu nos cinco anos anteriores aos Jogos Olímpicos de Tóquio (18,5 milhões de euros).
Voltando a Portugal, com a exceção do dinheiro, não podemos deixar de encontrar pontos comuns com o que acontece atualmente na Noruega e o que acontecia com o meio-fundo e fundo nacionais nos anos 70, 80 e 90. Parece que, em termos de procura e produção de atletas com elevado nível de desempenho, a Noruega andou para trás no tempo e encontrou a fórmula para o sucesso que já havia sido descoberta em Portugal, só que nós não sabíamos. Os noruegueses copiaram-nos e lançaram muito dinheiro em cima da que era a fórmula portuguesa.
Por cá, andamos à procura da lâmpada de Aladino para encontrar talentos. Cada vez mais autores defendem que não existe tal. Não há uma fórmula matemática. São milhares os exemplos que contrariam os programas de deteção de talentos. Porém, por cá, continuamos cegos e não queremos ver o óbvio e o quanto já fomos bons e fizemo-lo sem dinheiro.
O paradoxo do meio-fundo português ilustra bem que numa altura em que nem sequer se falava em deteção de talentos, Portugal era uma das fortes potências mundiais. À medida que o conhecimento foi evoluindo, o meio-fundo e fundo português eclipsou-se.
No fundo, quando aplicamos um programa de deteção de talentos, o resultado obtido não será muito diferente do que obteríamos se não tivéssemos qualquer tipo de programa de deteção de talentos, mas sim uma política de prática massiva de desporto e atividade física desde tenra idade por parte dos nossos jovens.
1 – The Guardian
3 – Durand, M (1988) El niño y el deporte
4- Ericsson, K.; Krampe, R. e Tesch-Römer, C. (1993) The role of deliberate practice in the acquisition of expert performance
5 – Durand-Bush e Salmela, 2001
6 – Wall Street Journal