Marisa Vieira é aos 40 anos, um dos bons valores do trail nacional. Atleta do Furfor Running, já foi várias vezes campeã nacional e representou a seleção nacional por quatro vezes. Esteve presente nos Jogos Mundiais Militares disputados em 2019 em Wuhan, Jogos semelhantes aos Jogos Olímpicos.
Marisa Vieira tem 40 anos e é natural de Luzim, concelho de Penafiel. Militar da GNR em Penafiel, abraçou o mundo das corridas em 2005, quando ingressou no Exército. Só mais tarde em 2013, é que começou a participar em provas populares.
Especializou-se no trail, tendo-se estreado na 1ª edição do Trail de Ponte de Lima. Corre atualmente pelo Furfor Running, “um projeto do Lucas Morgado, que dá liberdade ao atleta para fazer o seu calendário desportivo, o que é raro hoje em dia”.
Apesar de ser uma atleta amadora, leva o atletismo a sério, treinando todos os dias, por vezes até mesmo bi-diários (60 m de manhã, 40 m à tarde). Malgrado a sua profissão, trabalhando 8 horas diárias, acrescidas por vezes, das horas dos serviços de gratificado, consegue arranjar tempo para treinar. “Como em todas as profissões, ninguém trabalha o dia todo, por isso, havendo vontade, disciplina e compromisso, arranja-se sempre tempo, antes ou depois do serviço”.
“As pessoas esquecem-se que os atletas que andam na frente do pelotão são amadores como os que terminam a prova em último, não são profissionais”
Treinador à distância que funciona
Hélder Costa é o seu treinador. Marisa não hesita em considerá-lo o principal responsável pela sua evolução, apesar de a treinar à distância (Lisboa/Porto). “As coisas têm funcionado muito bem e, para mim, é o melhor dos melhores. Confio 100% no trabalho dele. Hoje em dia, apesar de os métodos e tecnologias de treino terem evoluído imenso, não temos atletas a correr mais do que os nossos ‘velhinhos’, por isso, continuo acreditar no treino de ‘antigamente’”.
Correr 115 km depois de uma noite a trabalhar
Ultramaratonista, não faz muitas provas anualmente. Talvez ultrapasse a dezena entre a pista, estrada e trail. Ao longo do tempo, tem vindo a reduzir a distância. “Apesar de treinar com mais intensidade, não é preciso despender de tantas horas de treino”.
O recorde de quilómetros em que já participou está nos 115. Foi no Ultra Trail das Aldeias do Xisto (UTAX), prova de acesso direto à seleção nacional. Apesar da importância da prova que começou à meia-noite de sábado, Marisa esteve a trabalhar na noite anterior. Tentou uma troca de serviço com um colega que não aceitou. “Está perdoado, só porque acabei por ser a vencedora da Taça de Portugal”.
Também já correu 84 km no Campeonato do Mundo em Espanha e 101 km em Chamonix. “Contudo, apesar de gostar destes desafios, acabam por condicionar o calendário desportivo e exigem muito mais horas de treino, sem falar na ‘agressividade’ fisiológica, articular, etc”.
Não tem uma prova preferida. “Mesmo repetindo as provas, vai depender sempre de tantas variantes (a meteorologia, se te preparaste bem para, o público, etc.)”
“Ainda há muita falta de cultura desportiva”
Nos Jogos Mundiais Militares em Wuhan
Quanto a maratonas, estreou-se na estrada em 2019, nos Jogos Mundiais Militares, em Wuhan, na China (2h50m48s), “a experiência mais enriquecedora até hoje”.
Nos trails, diz-nos que já perdeu a conta a quantas fez. “Não registo nada, quando me pedem o curriculum, tenho sempre que recorrer à biblioteca do meu treinador (www.hcrunners.pt)”.
Diferenças entre a estrada e o trail
Para Marisa, a única diferença está no piso e nas marcas (tempos). “Na estrada, podes não ganhar mas fazer um tempo excelente; no trail, já não acontece tanto, basicamente só se dá importância ao vencedor. Eu se fizer uma prova de 10 km em 42 minutos e ganhar, sou uma grande atleta, se fizer a prova abaixo dos 36 minutos e for 4ª ou 5ª por exemplo, já não o sou. Ainda há muita falta de cultura desportiva”.
Representar o país, momento marcante
É com grande orgulho que a nossa entrevistada refere os momentos marcantes da sua carreira desportiva “Para mim, representar o meu país é sempre um enorme orgulho e como tal, as provas que me permitem vestir as cores de Portugal, marcam-me sempre.”
Marisa representou Portugal pela primeira vez no Campeonato do Mundo de Trail disputado em Penyagolosa, na Espanha. Mas não foi fácil poder estar presente na prova. “Após muitas burocracias a nível profissional, não me foi autorizado estar presente no estágio. Só tive a confirmação para estar presente na prova, na véspera de embarcar. Contudo, alguns colegas da seleção tiveram o cuidado de me transmitir tudo, inclusive a Inês Marques deu-se ao trabalho de me enviar um resumo do percurso e a verdade é que durante os mais de 80 km, consegui rever cada palavra.
“Quando comecei, sinto que o ambiente era mais saudável, hoje em dia acho que há muita toxicidade mas que acaba por ser transversal no desporto”
Quatro vezes internacional
Marisa já representou a seleção nacional nas seguintes provas:
. Campeonato do Mundo de Trail em Penyagolosa, Espanha
. Campeonato do Mundo de Trail nos Abutres, Portugal
. Campeonato da Europa Skyrace, Itália
. Jogos Mundiais Militares em Wuhan, China
. E está selecionada para o Campeonato do Mundo de Trail, na Tailândia, a realizar-se em outubro deste ano.
Bonito curriculum de uma campeã nacional
Marisa tem um bonito curriculum no mundo do trail, revelador do seu nível desportivo. Campeã nacional, uma vez de Trail e outra, de SKYrunning. Vencedora da Taça de Portugal de Trail e da Taça de Portugal de Endurance. Já este ano, foi vice-campeã nacional de ultra trail. A nível militar, já foi campeã algumas vezes, na estrada, corta-mato e trail.
“Já temos tantas restrições, se vamos ter mais uma por causa de um hobbie, deixamos de viver”
Saber ‘ouvir’ o seu corpo
Não dispensa os exames médicos de rotina, fazendo anualmente um eletrocardiograma e duas vezes análises.
Já a nível de lesões, aposta muito na prevenção. “Não faço provas lesionada para não agravar ainda mais e, quando tenho que parar, respeito sempre a opinião de quem me trata, no meu caso a fisioterapeuta/osteopata Liliana Gomes”. E conclui: “Sem dúvidas que já me conheço muito bem, por isso ‘ouço’ sempre o que o meu corpo me diz e vou transmitindo ao meu treinador, que acaba por adaptar o treino à minha condição física.”
E até quando pensa correr? Dá-nos uma resposta curiosa: “Acho que não existe um prazo para deixar de correr.”
Alimentação mediterrânea
A nível de alimentação, procura a mais saudável possível. “A preparação das minhas refeições baseia-se muito na alimentação mediterrânea. Acho mesmo que é a genética e o treino que não me deixam ganhar peso, pois exagero nas quantidades de hidratos de carbono”.
Marisa foi uma única vez ao nutricionista. “Fui para me orientar para uma prova de endurance e só aí, é que percebi o excesso. Tenho noção que os nutricionistas são fundamentais na vida do atleta, mas por incompatibilidade de horários e as restrições alimentares, levou-me a não querer ser acompanhada. Já temos tantas restrições, se vamos ter mais uma por causa de um hobbie, deixamos de viver”.
“Atualmente, acho que o valor do quilómetro (das inscrições) está equivalente ao litro de gasolina”
Ambiente podia ser melhor no mundo do trail
Na opinião de Marisa, comparativamente aos dias de hoje, o ambiente era mais saudável quando começou a correr. “Hoje em dia, acho que há muita toxicidade, mas que acaba por ser transversal no desporto. Obviamente que numa escala muito mais reduzida, mas acabamos por comparar qualquer desporto ao futebol e, aquelas rivalidades de claques e clubes que existem no futebol, já há muito que se implementaram no Trail. E tenho pena que assim seja, pois salvo raras exceções, os atletas de trail acabam por ser como os do futebol, no fim da competição, são todos amigos”.
Salienta ainda as experiências muito enriquecedoras tidas no mundo das corridas, para além das amizades que se criam e dos locais que são visitados.
“Ainda há muitas organizações que só pensam no lucro e esquecem-se do atleta”
Discrepância de preços nas inscrições
Conhecedora do meio, Marisa aponta para a discrepância de preços nas inscrições. Na sua opinião, há excelentes organizações, principalmente quando estão atletas à frente das provas. Contudo, ainda há muitas organizações que só pensam no lucro e esquecem-se do atleta.
“Todos sabemos que as provas dão imenso trabalho e que as organizações têm que ser ressarcidas disso. Contudo, não se percebe a discrepância que há. Provas de excelência com inscrições com valor aceitável e depois, provas extremamente fracas, com valores elevados. Também devido ao elevado número de provas que existem atualmente, leva-me a crer que o saldo seja positivo. Atualmente, acho que o valor do quilómetro está equivalente ao litro de gasolina”.
O atletismo como hobbie e não como profissão
Sendo o sorriso a sua imagem de marca, Marisa não tem projetos para o futuro na modalidade. “Isto não é o meu sustento, é um hobbie. Não vivo disto para ter que planear o futuro, prefiro continuar a viver e a trabalhar para o presente, até porque a minha idade já não me permite ser uma promessa no trail”.
Refere ainda um pormenor importante: “As pessoas esquecem-se que os atletas que andam na frente do pelotão são amadores como os que terminam a prova em último, não são profissionais”. E conclui: “A vida profissional que abracei, já é exigente o suficiente. Não vou deixar que me exijam mais na corrida, até porque, sempre deixei tudo nos trilhos”.
Experiência inesquecível numa viagem a uma prova nos Picos da Europa
Quanto a estórias, Marisa relata uma passada em 2015, quando foi desde Paredes, de autocarro com mais 37 portugueses, a caminho de uma prova nos Picos da Europa. “Só conhecia três ou quatro e apesar de termos de parar em Vila Real por avaria mecânica, chegámos bem ao destino. Entre negociar-se latas de atum por bifes de frango, uns quererem dormir e os outros sempre a conversar, abandonarmos o restaurante a meio do jantar para recebermos em festa o último classificado que era um dos nossos, foi uma experiência de partilhas fantástica. Todas as provas por etapas ou que impliquem viagens de vários dias, acabam por se tornar sempre especiais pelo ambiente que se vive”.
A terminar, Marisa quis agradecer a todos aqueles que a têm apoiado ao longo destes anos. Apoio merecido e que irá certamente manter-se enquanto ela continuar a espalhar a sua simpatia e o seu valor desportivo pelos trilhos das montanhas.
Jogos Mundiais Militares em Wuhan
Como referimos acima, Marisa esteve presente nos últimos Jogos Mundiais Militares disputados em Wuhan, cidade chinesa onde terá começado a atual pandemia do covid-19. Disse-nos então que foi a sua “experiência mais enriquecedora até hoje”.
Os Jogos disputaram-se em finais de Outubro de 2019 e então, a delegação francesa queixou-se no regresso, de sintomas complicados de saúde em vários atletas. Já as autoridades chinesas acusaram mais tarde de ter sido a delegação norte-americana a ter levado o vírus para os Jogos.
Os Jogos Mundiais Militares disputam-se de quatro em quatro anos. Têm também as cerimónias de abertura e de encerramento, uma vila olímpica expressamente construída para os atletas, a chama olímpica, etc, tal como nos Jogos Olímpicos.
Em Wuhan, estiveram presentes mais de 9.300 atletas de 109 países que competiram em 29 modalidades. Muitos dos atletas presentes eram medalhados olímpicos. Portugal teve apenas sete atletas e o Brasil por exemplo, teve 352, militares de carreira e na sua maior parte, integrantes do Programa de Atletas de Alto Rendimento do Ministério da Defesa. No final, obteve 88 medalhas, apenas atrás da China e da Rússia.
Desporto nas Forças Armadas é praticamente inexistente
E em Portugal, como está o desporto nas Forças Armadas? A verdade é que ele, praticamente não existe. O desporto não é valorizado nas instituições militares mas já o foi quando por exemplo, João Junqueira, José Ramos e Alberto Maravilhas fizeram parte dos quadros da GNR e eram atletas de referência no fundo nacional. Como compreender que Marisa Vieira não tenha podido estar presente no estágio e só tenha sabido na véspera do embarque, que ia poder correr, representando o país, no Campeonato do Mundo de Trail em Espanha?