Fernando Santiago nasceu no Porto e tem 61 anos. Comerciante na situação de pré-reforma, começou a correr em 1994. Já correu 50 maratonas e 6 ultras e tem como recorde pessoal 2h53m22s nos 42.195 metros. Muito cuidadoso com a alimentação, a corrida foi fundamental para melhorar a sua saúde e qualidade de vida. Sempre bem disposto, é um homem com ideias claras quanto ao presente e futuro da modalidade, mostra-se muito crítico para com os batoteiros nas provas populares.
Há quantos anos treina e como apareceu o atletismo na sua vida?
Treino desde 1994, há portanto 28 anos. O atletismo aparece na minha vida como saída de uma vida nada saudável e que em nada me trazia felicidade. De sedentarismo, excesso de peso, abusos alimentares de toda a ordem e falta de motivação para a vida, foi uma mudança para algo totalmente novo. Recuperei a saúde, a alegria e a auto estima. Lembro-me bem do dia em que fui hospitalizado com uma paragem de digestão por excesso alimentar e stress.
Tomei então consciência e inscrevi-me numas aulas de ginástica perto de casa. Foi aí que conheci um colega que corria e costumava treinar na N222, mesmo à beira do ginásio. Convidou-me um dia para ir correr com ele. Disse – me que era muito agradável e também fazia muito bem à saúde. Combinámos então antes da aula seguinte, uma corridinha de experiência. Como foi? Bom…Não parei mais até hoje. Tinha na altura 33 anos e agora estou com 61 anos. Bendito convite para correr! Tanta coisa boa que tenho vivido neste mundo da corrida, tantas experiências maravilhosas e gratificantes que nem em sonhos, imaginava que pudesse vir a viver…Foi assim que a corrida entrou na minha vida.
Está inscrito nalgum clube?
Atualmente, não estou em nenhum clube. No entanto, corri por vários clubes/grupos de amigos, com especial relevância no Afis-Ovar, Porto-Runners e RunLovers de Sintra. Foram experiências muito interessantes com vivências em grupo inesquecíveis. No entanto, prefiro correr individualmente pois assim, permite-me estar mais livre e sem os constrangimentos de eventuais compromissos de grupo.
“Correr é como o ar que respiro, é o garante da minha vida a todos os níveis, física, psíquica, espiritual”
Treina quantas vezes por semana? Só ou acompanhado?
Em fase de provas não havendo limitações físicas e não havendo provas longas muito juntas, costumava treinar 5/6 vezes por semana, isto antes da pandemia. Agora que passaram mais de dois anos e já entrei nos 60, vou certamente fazer mais repouso e recuperação para evitar o mais possível as lesões.
Agora, costumo treinar sozinho mas houve alturas que era quase sempre acompanhado, ou por um companheiro ou em grupo. É conforme o que a vida vai proporcionando ao longo dos tempos.
Tem treinador? Corre com algum plano de treinos?
Não, não tenho treinador. Eu próprio vou criando e ajustando planos de treinos que vou lendo em artigos da especialidade e experiências de outros atletas. Vou fazendo as devidas adaptações de várias metodologias de treino.
Como concilia os treinos e corridas com a sua atividade profissional?
Quando comecei a correr, já trabalhava por conta própria, daí ter tido sempre flexibilidade nos horários de treino. Mas o meu horário preferencial durante muitos anos, foi ao final da tarde.
Costuma fazer exames médicos de rotina?
Sim, costumo fazer exames de rotina. Prova de Esforço, Ecocardiograma ou simplesmente, vigilância das tensões arteriais, vou fazendo sempre. É uma questão de cuidado e responsabilidade, tanto para comigo como também para as Organizações das provas.
Quando foi a primeira corrida oficial de estrada? Que achou dela?
Foi em 1994, na Meia Maratona de Ovar. Estava um dia lindíssimo e a prova estava em tudo espetacular. O ambiente era de puro atletismo. Adorei a experiência, nunca me tinha imaginado com um número no peito. Mesmo lá atrás, saí de peito cheio como um atleta a sério. Ah! Ah! Ah. No final, ganhei um andar novo que durou uma semana, mas estava um atleta.
“Não me consigo ver noutra modalidade. O atletismo dá-me tudo”
Quantas corridas faz em média por ano?
Faço em média, dez provas por ano. Mas é uma média, pois não tenho calendário regular. Como na última década, me dediquei mais à maratona e a determinados desafios que provocam uma carga muito intensa, tento compensar em repouso, tanto quanto possível nos outros meses.
Como exemplo, fiz 5 Maratonas em 7 meses:
06 de Out. 2013 Maratona de Lisboa 3:19:30
03 de Nov.2013 Maratona do Porto 3:05:07
17 de Nov.2013 Maratona de Valência 2:58:11
23 de Fev. 2014 Maratona de Sevilha 2:56:33
31 de Maio 2014 Maratona de Estocolmo 3:04:34
Quais a(s) corrida(s) em que mais gosta de participar?
Se tiver de eleger apenas uma prova em que mais goste de participar, então será a Maratona do Porto. Excelente organização, excelente percurso e é na minha terra, o que me proporciona também, melhor logística e apoio. É também na Maratona do Porto que tenho o meu melhor tempo na distância com 2:53:22. Participei por 13 vezes, logo à seguir à Maratona de Lisboa com 15 participações e com o melhor tempo de 2:56:56
No entanto, a Maratona de Lisboa será aquela que ficará sempre no coração, pois foi a minha primeira Maratona no ano de 1995. Conheci percursos diferentes conforme as alterações ao longo dos anos. Fiz boas amizades que ainda hoje mantenho. E cruzei-me com boas pessoas que recordarei para sempre, disso não tenho dúvida.
E a(s) que menos gostou de participar?
Foram várias as provas que não me deram vontade de repetir, sobretudo aquelas em que não me senti bem recebido. Não sou esquisito, mas o bom trato e cordialidade, não dispenso.
Qual a sua distância preferida?
A minha distância preferida é sem dúvida, a “Maratona” com os míticos e mágicos 42.195 m.
É a prova histórica que marca qualquer atleta. Já alcancei essa meta por 50 vezes e conto continuar a participar sempre que possível.
“O paradigma da corrida mudou muito em relação à década de 90, quando me iniciei na corrida. Mentalidade e condições para a prática já não são as mesmas, há grande evolução”
Qual a maior distância que já correu?
A maior distância que já percorri em prova, foi no Ultra Trail de Sesimbra com 50 km. Fiz também um treino com essa distância, aqui em Vila Nova de Gaia.
Já experimentou o Trail? O que achou da experiência?
Sim, já experimentei o Trail mas apenas por duas vezes. Tenho um problema já antigo nos ligamentos do tornozelo que me provoca entorses muito facilmente. Fiz o Trail do Almonda (30 km) em que uma entorse no dito tornozelo a meio da prova, me fez chegar com muita dificuldade à meta. Como sou teimoso, assim como desforra desse desaire e também como queria ficar com uma boa recordação do Trail, fui a Sesimbra fazer o Ultra Trail de Sesimbra 50 km, que correu muito bem, tendo acabado em 1° lugar no escalão.
Achei o Trail fantástico com experiências diferentes da estrada, com desafios muito interessantes. Muito técnico, exigente e também por vezes muito solitário.
Quais as principais diferenças que encontrou no trail e na estrada?
Achei que são dinâmicas diferentes. Na estrada e eu como abordo as provas de forma competitiva, a minha atenção vai essencialmente para a respiração e posso-me abstrair de tudo o resto, num controle totalmente aeróbico. No Trail, já a atenção vai muito na técnica dado o piso irregular, assim como nas fitas de marcação do percurso que para mim, são uma dor de cabeça. Volta e meia se estiver a correr, distraio-me e perco-me. Na estrada, embora existam várias provas com paisagens lindíssimas, esse fator não é tão relevante como no Trail que é fértil em vistas fabulosas. Mas para quem gosta de trabalhar os tempos como eu, então aí a estrada ganha.
“Os meus resultados estão intimamente ligados ao cuidado na alimentação…uma alimentação ajustada é fundamental na obtenção de resultados positivos”
Qual o momento mais marcante da sua carreira desportiva?
Foi em 2011 na Maratona de Paris, quando pela primeira vez fiz a Maratona abaixo das 3h00 (2:57:47). Estava a iniciar uma fase totalmente nova de desenvolvimento da performance. Corria há 17 anos e estava acomodado com as minhas prestações. Pensava que já tinha atingido os meus limites. O meu recorde pessoal à Maratona era de 3:06:19 (Madrid 2003) com 42 anos de idade e agora tinha 50. Pensava que o meu recorde à Maratona já fosse inatingível devido à idade. Mas estava a treinar como nunca e fiz um regime alimentar em que baixei 14 kg e atingi os 58 kg. Inscrevi-me para Paris. Fui entusiasmado e a sentir-me bem. Comecei então a achar que era bem possível bater a minha marca de há oito anos atrás. Confidenciei com um amigo meu que me apoiou lá e vive em Versailles que possivelmente, iria fazer uma grande prova. A minha mulher, também sempre presente nestas andanças, também foi uma ajuda fulcral na logística. Finalmente, um português emigrante que lá conheci e voluntário na prova, deu-me um abraço e disse: ‘Courage!’
Tinha chegado a hora! Deu-se o tiro e lá fui ziguezagueando o melhor possível pois a minha saída era um pouco atrás. Quando passo a Place de La Concorde, começo então a libertar-me do grosso do pelotão e começo a imprimir um ritmo mais forte. Bom… Foi a loucura total! Grande apoio dos emigrantes, que ao longo do caminho, iam gritando ‘Força Portugal’, iam-me dando cada vez mais força anímica e vontade de conseguir. Era o dar tudo! As condições eram as melhores e sentia-me bem. Podia manter o ritmo forte pois estava a aguentar. Lembro-me de já aos trinta e tal quilómetros, cumprimentar um indivíduo que estava a assistir à corrida e ele ficar a olhar para mim como que dizendo: ‘Este conhece-me de onde???’ Ah! Ah! Ah! Na verdade não conhecia, eu é que já ia em transe. Ah Ah Ah! Continuo sem fraquejar e vem um período mais monótono e silencioso que seria o Bosque de Boulogne. Vou, como que hipnotizado a vencer os últimos quilómetros e o calor que já se sentia pela Av. Foch, em direção à meta e eis que vem uma sensação única… Vejo uma moldura humana de mãos no ar e ouço uma gritaria que me acordou dessa hipnose.
Era quase o final! Era o Arco do Triunfo e uma multidão a ver a Maratona! Ouço então um companheiro de corrida que começa a gritar tipo alucinado ‘En dessou des trois!!! En dessou des trois!!!’ Nem queria acreditar, mas era verdade estava a descer a Champs- Ellysées e o cronómetro da meta a marcar 2h57 minutos !!!
Depois disso, ainda vim a bater esse recorde pessoal e fazer a Maratona por mais cinco vezes, abaixo das 3h00. No entanto, essa foi a que mais me marcou.
“As organizações das provas precisam dos atletas e os atletas das organizações. É nesta relação de comunicação entre a Organização e o Atleta que acho que se deverá ter uma atenção especial”
Até quando pensa correr?
Correrei até ao fim da vida. Correr é como o ar que respiro, é o garante da minha vida a todos os níveis, física, psíquica, espiritual. Portanto, do que depender apenas da minha vontade, será para sempre.
Como tem sido de lesões?
Sim! Volta e meia, lá aparece uma para chatear. A mais complicada, foi a nível dos meniscos com rutura de ambos. Fui operado e fiquei impecável. Outro problema que tenho muito frequente, é no músculo piramidal (glúteo) que provoca a síndrome da ciática ou falsa ciática, um problema muito frequente nos corredores. Deixo aqui desde já um conselho a todos, que não negligenciem o alongamento deste músculo tantas vezes descurado. No entanto, vai-me valendo também a preciosa ajuda da minha massagista e da minha fisioterapeuta/osteopata que são fundamentais na minha preparação, recuperação e aconselhamento.
Se não estivesse no atletismo, que modalidade gostaria de ter seguido?
Não me consigo ver noutra modalidade. O atletismo dá-me tudo. Acesso fácil a locais de treino, acesso a competições nacionais e internacionais. Escalões de idade, mantendo assim o entusiasmo e espírito competitivo, e muito mais.
Mas se não estivesse no atletismo, seria possivelmente o ciclismo, pois tem muitas semelhanças com a corrida. Mas aí, o acesso às competições já não era a mesma coisa, claro.
Que futuro vê para o atletismo em Portugal?
A nível amador ou seja, a nível do pelotão, vejo um futuro promissor na continuidade do crescimento e desenvolvimento, que tem vindo a acontecer. O paradigma da corrida mudou muito em relação à década de 90, quando me iniciei na corrida. Mentalidade e condições para a prática já não são as mesmas, há grande evolução. Por isso, tenho esperança que este desenvolvimento se mantenha vivo por muito tempo. Todos, temos que fazer por isso, atletas, treinadores, organizadores de provas e entidades governamentais. Temos de estar cientes que isto é uma mais-valia em termos de desenvolvimento social de saúde pública e também, de desenvolvimento económico das regiões assim como da projeção do país.
Temos tudo na mão para evoluir e concretizar, haja vontade e interesse de todos. Alerto no entanto, para a forma como são utilizadas as redes sociais neste mundo. Sem dúvida alguma que, através desta forma de comunicação, houve acesso a muita informação, contacto e partilha entre atletas, clubes e organizações, o que é muito bom e motivador. Mas por outro lado, deve ter-se sempre em conta que a verdadeira essência do atletismo está na estrada, montanha, pista e não num dispositivo digital. Não cair no erro de pensar que a performance está no número de likes e de seguidores mas sim, no desempenho real das nossas capacidades. Lembrar sempre que o objetivo principal é conseguir atingir mais e melhor em equilíbrio físico psíquico e emocional e não apenas, a alimentar doentiamente o ego. Assim é que iremos longe.
“Deixo aqui um apelo para que sejamos todos mais solidários, mais humanos e aproveitemos da melhor forma, o bom que esta atividade nos dá”
O que mais aprecia no mundo das corridas?
Toda a envolvência da corrida, o viver o antes, o durante e o depois. A partilha das emoções. O ir por esse país fora e experimentar novas provas e conhecer novas gentes, ir ao estrangeiro e participar noutras maratonas conhecendo outros povos e culturas, alargando assim os horizontes e conhecimento.
Tem algum tipo de cuidado com a alimentação?
Muito mesmo! Os meus resultados estão intimamente ligados ao cuidado na alimentação. Tenho que contrariar a tendência para a subida de peso mas por outro lado, ter em atenção às necessidades para as exigências do tipo de prova em que estou envolvido. Não tenho dúvida nenhuma que uma alimentação ajustada é fundamental na obtenção de resultados positivos.
Sugestões para uma melhor organização das provas
Muito têm evoluído as organizações das provas em Portugal, disso não tenho a menor dúvida. No entanto, ainda há muito que aperfeiçoar, o que é normal. Vou referir apenas um ponto que acho muito importante, que é uma “boa” e “estreita” comunicação entre a Organização e o Atleta. As organizações das provas precisam dos atletas e os atletas das organizações. É nesta relação de comunicação entre a Organização e o Atleta que acho que se deverá ter uma atenção especial. É neste ponto que se poderão resolver muitas questões e ir aperfeiçoando tantas outras. Há organizações que têm já feito um esforço neste sentido, o que é de louvar. No entanto, também existem as que desprezam as opiniões/sugestões/questões dos atletas e simplesmente, não dão qualquer resposta ou feedback, o que é de lamentar. Quem sabe em cada organização, haver uma pessoa com perfil para ser um género de Provedor do Atleta. Uma pessoa que desempenhe esta função mediadora, mas que se evite que seja o Diretor da Organização, para simplificar e facilitar a exposição de pontos de vista, sugestões ou reclamações. Fica a sugestão.
“Quero deixar aqui um manifesto de desagrado a algo que ao longo do tempo tenho visto acontecer e com mais frequência nos últimos anos, que é o desrespeito pelas regras da prova ou o mais vulgarmente chamado de batota”
Projetos futuros na modalidade
Projetos futuros… Será um recomeço! Sim um recomeço, pois seria de todo irrealista pensar dar continuidade aos planos que tinha no final de 2019 para 2020. Planos que seriam muito ambiciosos, no entanto possíveis devido ao bom trabalho que estava a realizar e aos resultados que estava a obter.
Veio a pandemia e com ela, uma interrupção de dois anos com todas as frustrações e incertezas. Além da paragem das provas, é com ela, a desmotivação e perda de ritmo. Foi também a mudança de idade com a entrada nos 60 anos. Esta longa interrupção nesta fase, foi muito complicada mesmo. Para o futuro, irei focar muito na recuperação e num novo recomeço adaptado à idade que já não é a mesma de 2019. Continuarei sim, a priorizar a prova que mais adoro que é a maratona. Tenho já planos para várias maratonas, sobretudo no estrangeiro.
Estórias curiosas passadas nas corridas
São na verdade, muitas estórias que tenho colecionado ao longo dos anos como corredor. Umas engraçadas outras nem tanto, no entanto, curiosas fruto desta vivência.
Vivi momentos únicos e muito gratificantes de reconhecimento além-fronteiras que gostaria de partilhar, pois são o maior prémio que um atleta de pelotão pode ganhar como fruto desta sua entrega à modalidade.
Nunca me irei esquecer de um efusivo abraço de uma voluntária da Maratona de Genève quando estava a terminar essa prova na Suíça. Que melhor medalha poderia receber ao cruzar a linha de meta do que ver essa portuguesa emigrante correr para mim e lançar-se aos meus braços aos gritos: ‘Um português! Um português!’ Foi verdadeiramente emocionante e inesquecível!
Lembro-me também quando terminei a Maratona de Budapeste um lituano vir ter comigo, querer conhecer-me e tirar uma foto, pois gostava muito de conhecer um português. É muito gratificante quando se é assim abordado, pois além da alegria de se ter concluído mais uma maratona, temos ainda o orgulho de sermos embaixadores do nosso país.
Tenho também algumas estórias menos agradáveis, mas que fazem parte igualmente deste percurso da minha vida como atleta. Desilusões, tristezas, fracassos e alguns acidentes, também me ajudaram a crescer como atleta e como pessoa. Lembro-me de duas situações muito aflitivas que vivi em prova que foi quando caí ao chão.
Uma delas foi na Meia Maratona de Lisboa no arranque da corrida. Foi em 2009, estava na Praça da Portagem na primeira linha do pelotão, mesmo colado ao cordão dos seguranças da prova para o tiro de partida. A Elite partia mais à frente junto à ponte. Aguardava-se ansiosamente o momento de partida. O pelotão ia ficando cada vez compactado e os seguranças iam sustendo a massa humana de corredores. Havia um processo já pré definido de fuga e proteção por parte dos seguranças, quando fosse a partida. Como estava colado a eles, ia ouvindo o que iam falando e também apercebendo-me das suas preocupações. Eis que chega o momento e dá-se o tiro de partida. Há uma fuga coletiva por parte dos seguranças para umas elevações no chão da estrada, para orientação do trânsito automóvel em direção à ponte. Mas há um segurança que se atrapalha, vai para a direita volta para a esquerda e eu vou colidir com ele, não havia remédio era tudo muito rápido e eu próprio tinha logo nas minhas costas, uma multidão de gente desenfreada. Foi tudo num segundo, para não abalroar o senhor, atirá-lo ao chão e ser muito complicado para ele, pois iria ser esmagado pelo imenso pelotão,
Valeu o meu rápido discernimento e tentar contorná-lo quanto possível, tarefa quase impossível. Foi um golpe de ginástica e magia, no entanto não impediu que fosse eu a cair no chão. Mas que aflição !!! Não senti nada, apenas a necessidade de me levantar o mais rápido possível, senão seria eu a ser esmagado. Vejo várias pernas a voar por cima de mim, outras tantas que me contornam e por milagre, consigo pôr-me de pé e continuar a correr. Mas que susto !!! Corri até ao final, até como escape à aflição. Fiz várias escoriações, no entanto senti-me recompensado e feliz pela rápida opção que fez com que nada de mal tivesse acontecido a esse segurança.
As dores vieram no dia seguinte mas nada comparado ao que poderia sentir, se estivesse na origem de um acidente que poderia ter sido muito grave para esse senhor.
Outra situação do género foi na S. Silvestre da Amadora em 2015. Um tombo coletivo, foi também o resultado de uma saída que correu mal. Mais um susto! Infelizmente neste caso, houve ferimentos em atletas. Enfim… Coisas que acontecem a quem anda nisto, importa isso sim, aprender dentro do possível, evitar situações idênticas ou então, saber como lidar com estas adversidades. São experiências, lições que nos dão maturidade neste desporto.
Lembro-me quando fui atropelado por um automóvel quando treinava na estrada N.222, logo no início da minha atividade Um carro que entrava para a estrada, não parou no sinal stop e ia batendo noutro que entrava na estrada. Para fugir, atirou-se para a berma onde eu corria tendo-me colhido de frente. Fui para o hospital mas mais uma vez, o meu anjo corredor protegeu-me e foi mais o susto que as lesões. Olho para trás e vejo estas experiências como lições e ensinamentos e que partilho.
“Estou muito feliz e realizado por viver neste mundo maravilhoso de atletismo. Tenho vivido muitas experiências que me têm enriquecido também como pessoa”
Mais algum aspeto que ache interessante divulgar
Deixo aqui um apelo para que sejamos todos mais solidários, mais humanos e aproveitemos da melhor forma, o bom que esta atividade nos dá. A pandemia veio mostrar como a vida pode mudar drasticamente de um momento para o outro. Quem diria que alguma vez, fossemos impedidos de exercer esta nossa atividade, livremente. Quem diria que as nossas provas iriam ser canceladas e adiadas durante tanto tempo. Quem diria que tivéssemos que nos afastar uns dos outros. Sei que houve companheiros que passaram maus momentos e que ainda hoje, estão a recuperar das mazelas provocadas pela doença. Eu na verdade, não tive problemas físicos, no entanto tive-os a nível psicológico. Ainda hoje estou a recuperar. Os problemas estão no “impacto” que têm em cada um de nós. Uns físicos, outros psíquicos. O desporto é isto mesmo, que cada um lute pelos seus objetivos pessoais, sonhos e metas a atingir. Mas que olhemos também com compreensão para todos aqueles que connosco caminham.
Aproveito também para deixar aqui um manifesto de desagrado a algo que ao longo do tempo tenho visto acontecer e com mais frequência nos últimos anos, que é o desrespeito pelas regras da prova ou o mais vulgarmente chamado de batota.
Ao longo dos meus quase 30 anos de provas e com cinco dezenas de maratonas concluídas, tenho verificado que este fenómeno tem vindo cada vez mais a acentuar-se. Mas o mais preocupante ainda, é a banalização destas atitudes, tornando-se quase como que uma brincadeira normal o que na verdade de normal nada tem. Estas atitudes na verdade, só vêm alterar a verdade desportiva, estragar o trabalho de tanta gente envolvida, assim como o desrespeito e falta de consideração por todos os participantes que tanto se esforçam e lutam pelos seus tempos, classificações e vêm desta forma, todo o seu esforço vilipendiado. Digo isto porque tenho visto infelizmente isto acontecer no seio do pelotão. É algo que convém ser observado para que não se torne banal. Isto é desporto, é lazer, convívio, brincadeira, mas não é o vale tudo. Sejamos sensatos conscientes e honestos.
Estou muito feliz e realizado por viver neste mundo maravilhoso do atletismo. Tenho vivido muitas experiências que me têm enriquecido também como pessoa. Hoje com 61 anos de idade, tenho consciência de tantos e tantos benefícios que tenho colhido nesta atividade ao longo destas quase três décadas. Saúde, felicidade, convívio, crescimento como pessoa, tantas coisas, mesmo. Termino com um Eterno Agradecimento ao meu amigo Filipe Campos que me trouxe para este mundo da corrida mas já não presente entre nós. Fica a fé e esperança de um dia voltarmos a reencontrar-nos. Obrigado meu amigo! Valeu!
Agradeço aos meus filhos por todo o apoio e incentivo e à minha mulher, um agradecimento muito especial, pela paciência e pelo suporte dado sempre em todas as provas.
E a todos que se têm cruzado comigo, o meu bem-haja! Embora nem todos continuem a palmilhar este caminho ao meu lado, ficam no entanto guardadas e válidas, as recordações, experiências e lições que com tantos colhi.
Finalmente e para terminar deixo, o meu agradecimento especial à Revista Atletismo pela oportunidade que me foi dada como atleta de pelotão de partilhar estas minhas experiências com tantos quantos também amam esta modalidade.