Durante gerações, os homens foram mais rápidos do que as mulheres em corridas de todas as distâncias. Mas nas últimas duas décadas, começámos a ver uma mudança. Temos cada vez, mais mulheres a aparecer no topo dos quadros de líderes em eventos de ultra-resistência, e o número de participantes do sexo feminino em eventos de todas as distâncias, aumentou enormemente. Há algumas pesquisas que sugerem que a diferença de género na corrida de longa distância está a diminuir (especialmente nas ultradistâncias mais extremas). A ultramaratonista Anne Bouchard, vencedora da ultramaratona The North Face, deu uma entrevista à revista canadiana Running Magazine, onde exprimiu a sua opinião sobre o cenário em mudança da corrida de distância.
Mulheres na corrida de resistência: a pesquisa
Em 1992, investigadores publicaram um artigo no qual analisavam o desempenho de homens e mulheres em eventos de curta e longa distância e chegaram a algumas conclusões surpreendentes: o desempenho das mulheres parecia estar a melhorar a um ritmo muito mais rápido do que o dos homens e, com base na sua trajetória, elas acabariam por alcançá-los. Os investigadores fizeram então a afirmação ousada de que a primeira ocorrência de uma mulher a bater um homem, numa prova de longa distância aconteceria apenas alguns anos depois, em 1998.
Isso não aconteceu tão cedo como o previsto, mas houve muitas vitórias diretas de mulheres nos últimos anos, e até mesmo, alguns casos em que as mulheres bateram recordes de percursos masculinos e femininos.
Tomemos, por exemplo, a corredora britânica Jasmin Paris. Em 2019, ela venceu a cansativa Montane Spine Race de 268 milhas (431 km). Ela não só superou todas as mulheres e homens, como também quebrou o recorde feminino em mais de 24 horas e o masculino em mais de 12 horas. Ainda mais impressionante, ela tinha tido recentemente um bebé e fazia paragens frequentes durante toda a prova para extrair leite materno.
Há vários outros exemplos, notadamente as atletas norte-americanas Herron e Courtney Dauwalter.Em 2018, Herron venceu o Desert Solstice Track Invitational de 100 milhas (em 13h25m), quebrando o recorde mundial de 24 horas (262,192 km) e o recorde mundial de 100 milhas da USATF na pista. Dauwalter ganhou em 2018, o Continental Divide 50K e o 2017 Moab 240.
Várias outras provas foram vencidas por mulheres nos últimos anos, e vários FKTs são atualmente realizados também por mulheres. No ano passado, destacaram-se alguns FKTs feitos por mulheres:
Na Bruce Trail, de 900 km, em Ontário, a atleta de North Face, de Quebec, Anne Bouchard, estabeleceu o FKT no GRA1 (Sentier International des Appalaches), um percurso de 650 km com 7.315 m de desnível positivo acumulado em 11 dias, 8 horas, 21 minutos e 41 segundos.
De alguma forma, Bouchard encontra tempo para treinar, entre criar dois filhos e trabalhar 50 horas por semana no seu trabalho corporativo. Ela diz que conheceu muitas corredoras de ultra-resistência ao longo dos anos e acredita que as mulheres têm uma capacidade única de superar a dor. “ Trata-se de ter aquela velocidade que podes manter durante tantos quilómetros, e então, sentir a dor e ir além dela”, diz Bouchard. “Acho que essa é a força que as mulheres têm para longas distâncias.”
Dor masculina vs. feminina
A maioria das pesquisas, comparando a experiência de dor de homens e mulheres, sugere que as mulheres são mais sensíveis à dor e têm um limiar de dor mais baixo. Curiosamente, um estudo universitário de 2019 descobriu que os homens lembram-se de experiências dolorosas passadas com mais clareza do que as mulheres, o que os tornou mais stressados e hipersensíveis à dor posterior quando regressaram ao local onde a experimentaram.
Alguns investigadores teorizaram que ser menos capaz de se lembrar da dor passada pode ser útil para as mulheres em eventos longos de resistência e de vários dias. (Alguns sugeriram que esse esquecimento, aplicado à dor do parto, é o que lhes permite ter vários filhos.)
Bouchard, por sua vez, acha que há algo nisso. “As mulheres estão a dar à luz, e é algo programado – sabemos que há alguma dor e temos que passar por isso”, diz ela. “Tem que ser assim, tem que sair. Não se tem escolha.” Ela acrescenta que mesmo as mulheres que nunca deram à luz, parecem ter essa capacidade de suportar.
A diferença de género na corrida de longa distância de elite
É claro que, quando se compara os homens mais rápidos do mundo com as mulheres mais rápidas do mundo, os homens ainda são notavelmente mais rápidos, mas isso não faz sentido. O debate é se o desempenho da mulher média está a alcançar o do homem médio, e isso parece ser verdade.
No entanto, mesmo quando se olha para as elites, pode ver-se a rapidez com que as mulheres estão a alcançar. Desde 1970, o recorde da maratona masculina foi reduzido em cerca de seis minutos. Por outro lado, durante esse período, o recorde feminino caiu mais de 45 minutos. Em eventos de ultra-resistência, como vimos, essa lacuna parece estar a diminuir ainda mais rapidamente.
As mulheres vão alcançar os homens?
Muitos especialistas acreditam que as mulheres acabarão por correr tão rápido como os homens, mas é impossível dizer quando isso vai acontecer ou quanto tempo vai levar. As mulheres participam em disciplinas, principalmente provas de longa distância, há muito menos anos do que os homens, e leva tempo para alcançar uma vantagem tão grande.
“Os homens são físicos há tanto tempo”, diz Bouchard. “Talvez no começo… mas se se somar todos esses anos, é claro que os homens estão à frente fisicamente. Quantos anos vai levar para chegarmos à frente deles? Não sei.”
É claro que quantas mais mulheres se envolverem na corrida, mais o atletismo feminino continuará a melhorar, e Bouchard encoraja todas as mulheres a não se limitarem. “ Se quer melhorar, faça o que precisa de ser feito”, diz ela. “Esqueça que é mulher, esqueça a idade, esqueça que tem que trabalhar 50 horas, esqueça o que quer que seja – faça o que os seus sonhos mostram.”
Quando se trata de se esforçar num ambiente de corrida, existem estratégias mentais que usa para superar a barreira da dor?
Para mim, no treino isso é: a prática leva à perfeição. Eu esforço-me muito nos intervalos, na esperança de que, no dia da prova, (eu sei) já passei por esses processos – sei que o meu corpo vai cansar-se e ainda preciso de continuar a forçar, e sei disso. Eu não vou explodir quando eu continuar a empurrar. Quando estou numa prova, há dois mantras que repito para mim mesma. Normalmente, quando estou num campo muito competitivo e começo a ficar para trás, gosto sempre de ficar a dizer ‘fica’ para me lembrar de ficar com a pessoa na frente. E outra que eu estava a usar na meia (em Ras Al Khaimah), era ‘relaxar’ porque às vezes, pode-se ter ritmo certo ou tentar cronometrar um certo tempo para cada divisão de quilómetro, então é bom lembrar-se de relaxar. Eu fluo certamente melhor com a minha prova quando me lembro disso.
Quão importante acha a autoconfiança para o sucesso?
Eu definitivamente acho que a autoconfiança é um componente vital do desempenho – eu diria que foi isso que me impediu no início da minha carreira. Quando entrei no atletismo… talvez com mãe e pai a serem atletas profissionais, nunca pensei que chegaria ao nível em que eles competiam. Para mim, correr era um hobby e nunca pensei que fosse uma carreira a tempo integral. Eu não tinha tanta confiança nas minhas habilidades, nem autoconfiança, e mesmo tendo participado em dois Jogos Olímpicos, provavelmente ainda não acreditava que continuaria a melhorar da forma que estou.
Eu diria que no ano passado, me senti muito confiante no meu próprio corpo, sinto-me muito mais forte, sinto-me mentalmente madura para atacar essas distâncias maiores e, nos treinos, sinto que foi uma grande experiência de aprendizagem. Sinto que estou apenas a começar, o que é realmente empolgante, e estou ansiosa pelo que essa nova confiança e autoconfiança podem fazer nos próximos dois anos.