As mortes de Agnes Tirop e Damaris Muthee Mutua levaram a maratonista Mary Ngugi a estabelecer um novo clube de corrida só para mulheres
Na pequena cidade de Nyahururu, no centro do Quénia, a mais de 2.300 metros acima do nível do mar, Mary Ngugi está a iniciar uma pequena revolução. Após um ano a planear, ela lançou há algumas semanas, um clube de corrida só para raparigas, considerado o primeiro desse tipo no país.
O seu intuito não é descobrir o próximo talento que possa ser campeã olímpica ou mundial. Nem está a criar outro centro de treino para produzir atletas de elite no meio fundo e fundo. Os seus objetivos são mais simples, começar por dar às raparigas “um espaço seguro”.
Já se completou um ano desde a trágica morte da fundista queniana Agnes Tirop. Na época, ela tinha 25 anos e havia acabado de bater o recorde dos 10.000 m. Foi encontrada esfaqueada na sua casa em Iten com o seu ex-marido Emmanuel Ibrahim Rotich a ser acusado do seu assassinato, o que ele negou.
A trágica notícia abalou então o mundo do atletismo, mais ainda porque Iten é um dos focos de fundistas na região. A morte de Tirop desencadeou discussões sobre a violência de género no atletismo queniano e a segurança das raparigas e mulheres que costumam ocupar os pódios.
Tirop não foi a única mulher atleta a ser vítima da violência em Iten no ano passado. Seis meses depois, Damaris Muthee Mutua, uma jovem de 28 anos que competia pelo Bahrein, foi encontrada morta pela polícia local, a um quilómetro e meio de onde Tirop foi assassinada.
Para Mary Ngugi, estes tristes acontecimentos não foram apenas casos extremos de abuso doméstico, mas de abuso que ela vê enraizado na cultura do atletismo. Ela prometeu transformar o seu desespero em ação, recorrendo à comunicação social para ganhar consciência internacional sobre os problemas culturais e também, para lançar há algumas semanas, o Nala Track Club.
Ngugi, de 33 anos, diz que o problema começa quando as raparigas são observadas numa idade jovem, com comida prometida, casa, mensalidades escolares pagas, sapatos e a hipótese de treinar a tempo integral com um grupo de outros atletas em centros de treino. Tornar-se uma atleta de elite é uma grande oportunidade financeira e Ngugi diz que as jovens mulheres podem ser exploradas por treinadores, maridos e agentes, à medida que sobem na escada do atletismo internacional.
Como a salvaguarda permanece praticamente inexistente, Ngugi quer oferecer uma alternativa. “A razão de tudo isto começar é por causa do que aconteceu com Agnes, mas também de tantos casos no Quénia”, diz ela. “Nem todos são mortes, mas mulheres que permanecem em casamentos abusivos, ou gravidezes de adolescentes nos centros de treino, devido a abusos que acabam com as carreiras das adolescentes, ou que sentem que precisam de dormir com essa pessoa para permanecer num centro de treino”.
A evidência sugere que a mudança é mesmo necessária. Em janeiro, o Ministério do Desporto do Quénia publicou um relatório e uma pesquisa realizada entre agosto e outubro de 2021 pelo Comité de Bem-Estar de Género no Desporto. A pesquisa foi liderada por Catherine Ndereba, ex-campeã mundial da maratona e incluiu depoimentos de quase 500 atletas femininas em várias modalidades e revelou que 11% das desportistas sofreram abuso ou assédio físico, emocional ou sexual. Um terço das entrevistadas era do atletismo.
Uma das recomendações dos relatórios era que fossem fechados todos os campos de treino de atletas juniores independentes e colocados em escolas primárias e secundárias específicas como Centros de Excelência Desportiva. Embora possa haver boa vontade de quem manda, Ngugi não viu grandes progressos e quer oferecer opções imediatas para as raparigas.
Ela sabe que sozinha não pode mudar toda a cultura de um desporto, especialmente porque é ela que está a financiar o Nala Track Club enquanto procura apoio financeiro mais sustentável. Atualmente, há apenas cinco raparigas no Nala Track Club, mas espera-se que se juntem mais algumas quando terminar o ano letivo, com o ex-treinador de Ngugi, Francis Kamau, a ajudá-la a espalhar a mensagem pela comunidade local.
Outro objetivo principal do clube é formar treinadoras. Na pesquisa do Ministério do Desporto, 84% dos atletas disseram que gostariam de ter mais mulheres como treinadoras, para ajudar a mudar a cultura. Ngugi concorda. “Quando eu cresci, a única mulher que vi no acampamento foi a mulher que costumava cozinhar para nós, eu nunca tinha visto uma mulher com um cronómetro na pista no Quénia.
“Tenho a certeza de que há tantas atletas retiradas que querem ser treinadoras, mas não sabem por onde começar. Não posso ajudar todas, mas talvez alguém em Eldoret ou em Ngong veja isso e pense que se eu estou a fazer isto em Nyahururu, eu posso fazer isso também.”
Ngugi fez uma parceria com a Female Coaching Network, com sede no Reino Unido, para iniciar os planos para um programa que fornecerá oportunidades de qualificação de treino para aspirantes a treinadoras na área e terá treinadores de elite de todo o mundo para ajudá-las.
Em última análise, Ngugi quer que as mulheres do atletismo queniano – de treinadoras a atletas – percebam o seu valor para além das pistas. “Queremos empoderá-las para que saibam que podem ser o que quiserem. Ser mulheres que podem sair pelo mundo e saber que são importantes, que são iguais a essa pessoa. Posso dizer não e não preciso de ficar num relacionamento abusivo. Não seremos capazes de parar estes casos em todo o Quénia, mas mesmo se salvarmos uma ou duas raparigas, isso ajudará.”