Júlia Conceição tem 54 anos e representa o FC Penafiel. Mulher habituada a sofrer nas provas, ia para a escola e regressava a casa, sempre a correr. Ultramaratonista, já representou Portugal no Campeonato Mundial de Trail em Annecy. Foi quarta do escalão no recente Campeonato Europeu de Maratona Masters no Funchal.
Júlia Conceição nasceu em Mansores, concelho de Arouca e tem 54 anos. Agente em geriatria, atualmente sem exercer por opção sua, começou a correr a sério há 13 anos. Mas a sua vida foi feita sempre a correr, mais fazendo lembrar as crianças quenianas, habituadas a correr desde sempre. “Desde que me lembro, a minha vida foi sempre a treinar. Desde a minha tenra idade que corria e saltava todos os dias entre montes e campos, uma vez que morava mesmo ao lado do monte. Vivia numa aldeia pequena chamada Mansores, pertencente a Arouca. Ia para a escola e regressava a casa sempre a correr, porque o tempo era escasso para além das tarefas domésticas que tinha de fazer”.
Primeira prova oficial de 10 km sem treinos
Júlia estreou-se numa prova oficial em 2010, na Corrida do Pai, no Porto. Foi uma experiência positiva, conforme relata: “No início, achava que ia demorar mais de uma hora para concluir a prova mas acabei por me surpreender ao terminar os 10 km em 51m13s, sem qualquer tipo de treino. Nessa altura, o meu desporto era a natação que praticava todos os dias”.
“Ia para a escola e regressava a casa sempre a correr, porque o tempo era escasso para além das tarefas domésticas que tinha de fazer”
50 provas por ano!
Júlia Conceição representa atualmente o FC Penafiel e treina todos os dias, só ou acompanhada por colegas de treino. Não dispensa um plano de treinos elaborado por si com a ajuda do treinador do clube Aires Sousa, de acordo com as provas em que vai participando ao longo da época.
Corre cerca de 50 provas por ano e não tem um local preferido para treinar. “Na rua, no parque, no monte ou na pista. Gosto de qualquer tipo de terreno”.
“Serra da Freita, serra mágica, a serra que me viu nascer. Saudades da minha serra preferida”
Serra da Freita versus UTMB
Júlia elege o Ultra Trail Serra da Freita como a sua prova preferida. “É uma prova em que participei muitas vezes e onde experienciei sempre coisas boas e mágicas. Não seria ela a serra mágica, a serra que me viu nascer. Saudades da minha serra preferida”.
Já o Ultra Trail de Mont Blanc (UTMB) foi a prova que lhe deixou recordações mais amargas. “Foi lá que fraturei o pé, o que me obrigou a desistir aos 123 quilómetros. No entanto, é apesar de tudo, uma prova bonita”.
“Correr em estrada é bastante diferente do que correr na montanha (trail)”
Estreia na Maratona no Porto
A sua distância preferida passa pela maratona, tendo corrido quatro no ano passado. Até hoje, correu 13 maratonas, tendo-se estreado nos míticos 42.195 metros no Porto, em 2010. Mas antes, já tinha participado em ultramaratonas de trail. “Correr em estrada é bastante diferente do que correr na montanha (trail), visto que é necessário manter uma velocidade constante sobre o alcatrão, sem haver alteração de piso e pausas. Valeu a companhia do meu filho que me acompanhou de bicicleta, encorajando-me ao longo da prova”.
Mais recentemente no dia 22 de janeiro, participou no Campeonato Europeu de Maratona Masters disputado no Funchal, tendo sido a 17ª da geral e quarta do escalão com 3h24m53s.
“No trail, é necessário ser destemida e ter uma dose muito grande de loucura. Lá isso, eu tenho”
Dose de loucura no trail
Júlia já participou em muitas provas de trail, com distâncias desde as curtas às ultra-longas. Atualmente, tem corrido mais na estrada do que no trail mas gosta de ambos, embora a exigência seja diferente. “No trail, é necessário ter força, resistência, técnica para subir e descer montes, ser destemida e ter uma dose muito grande de loucura. Lá isso, eu tenho. Isso deve-se à minha infância.
Momento marcante no Mundial de Trail em Annecy
Júlia elege o Campeonato Mundial de Trail disputado em Annecy, França, como o momento mais marcante da sua carreira desportiva. “Portugal ia ter a sua primeira representação de trail a nível mundial. Foi um momento memorável e um sonho realizado que nunca vou esquecer”.
Cuidados com a alimentação
Júlia tem cuidado com a sua alimentação embora diga que o seu cuidado se resume em não abusar do açúcar e das gorduras. Come um pouco de tudo mas lamenta ainda comer carne e peixe, ainda que não em grandes quantidades. Dá preferência a saladas e legumes, além dos hidratos de carbono que são o seu combustível para a corrida. Dá preferência à água ou sumos naturais e chás, dizendo não aos refrigerantes. De de vez em quando, gosta de saborear um copo de vinho tinto, cerveja preta, chocolate negro e uma taça grande de pipocas caseiras.
“As pessoas precisam de se divertir, encontrar-se com os amigos e o atletismo é ótimo para isso”
São precisos mais apoios no atletismo federado
Júlia acredita num futuro promissor para o atletismo federado no nosso país. Acredita na existência de jovens capazes de substituir os atuais atletas, veteranos na sua maioria. Mas para tal ser possível, é preciso também haver suficientes apoios e começar-se cedo nas escolas, a incentivar os jovens.
Atletismo popular a crescer
Já no atletismo popular, é mais otimista. “Vai haver cada vez mais, um número crescente de provas, como forma de escape das rotinas diárias, tornando os eventos desportivos em verdadeiras festas. As pessoas precisam de se divertir, encontrar-se com os amigos e o atletismo é ótimo para isso. É também uma forma de as pessoas praticarem desporto e sentirem-se ativas”.
Diferenças nas provas e nos atletas do pelotão
Comenta as principais diferenças encontradas nas provas, desde que começou a correr e hoje. “Quando comecei, as provas tinham mais o intuito da diversão, brincadeira, fugir da rotina diária, conhecer pessoas, viver experiências novas e superar desafios”.
Inscrições muito caras e discriminação do sexo feminino
Quanto a sugestões para uma melhor organização das provas, começa por referir o preço das inscrições que “deveria ser mais baixo e não cada vez mais alto”. Queixa-se também de algumas organizações que continuam a discriminar o sexo feminino. “Tal não deveria acontecer pois existem cada vez mais mulheres a participar em provas. Por isso, deveria haver igualdade de escalões”.
Visitas das lesões
As lesões têm-na visitado com alguma frequência, as piores foram fraturas dos metatarsos dos pés e entorses. Não dispensa os exames médicos de rotina e pensa correr enquanto tiver saúde e “fizer sentido para mim”. No mundo das corridas, aprecia as amizades e as partilhas das aventuras.
Tem alguns projetos em vista na modalidade mas por agora, vai dar continuidade ao trabalho que tem vindo a desenvolver. Se não estivesse no atletismo, a natação seria provavelmente a modalidade eleita.
“Vou sofrer, vou chorar, vou suportar, não aguento mais… mas vim cá para terminar. Era esse o meu objetivo”
Quando venceu o Ultra Trail de São Mamede
Estórias não faltam à nossa entrevistadas e das boas. Recorda a sua vitória nos 100 km do Ultra Trail de São Mamede em 2013. “É certamente a prova que mais gostei de participar, correndo com as cores do FC Penafiel. Foi uma prova muito emocionante, além de ter o meu amor à espera na meta. Fiquei em primeiro lugar na geral feminina, tendo em conta ainda que duas semanas antes, tinha ficado em segundo lugar na geral feminina dos 101 km Peregrinos, em Espanha. A vitória do Ultra Trail de São Mamede, ficará certamente para sempre na minha memória, uma vez que foi muito marcante. Reforçou a minha confiança e determinação para acreditar sempre no trabalho que se está a desenvolver. Quem luta, consegue”.
“Foi uma vitória muito grande ter conquistado o Ehunmilak de 170 km. Jamais esquecerei este lindo país basco”
Estória de superação na conquista dos 170 km de Ehunmilak
Os 170 km de Ehunmilak em 2017 foram para Júlia, uma grande prova de superação, uma prova inesquecível por vários motivos. “Primeiro, porque foi uma grande coragem da minha parte participar numa prova desta envergadura, com o objetivo de a terminar custasse o que custasse. Foi muito desgastante. Tive sempre a companhia do meu amor mas a certa altura, eu já não podia mais dos pés. Estavam uma lástima”.
A noite foi terrível, com frio gelado, vento forte, tempestade autêntica com nevoeiro cerrado, onde não se via mais do que um palmo à frente. Tudo isto na parte mais alta da montanha. Noite escura, foi assim durante toda a madrugada. Para Júlia, que já que tinha suportado tudo isto, faltava-lhe suportar 20 quilómetros para ter a suprema alegria de cortar a meta. “Comecei então a correr, cada vez mais rápido. Enquanto corria, só imaginava a meta à minha frente. Só pensava terminar o meu sofrimento o mais rápido possível, porque foi para isso que tinha ido”. Depois de tantas horas de sofrimento, Júlia conseguiu um grandioso nono lugar na geral feminina. “O tempo não importou, a posição para mim contou mais porque foi uma superação. Depois de ter caído tantos lugares e ainda conseguir recuperar o que me parecia impossível. Foi uma vitória muito grande ter conquistado o Ehunmilak de 170 km. Jamais esquecerei este lindo país basco.”