Emilia Kumós Pisoeiro nasceu na Polónia mas adotou Portugal como o seu país por amor. Detentora de um bonito curriculum competitivo, sagrou-se várias vezes campeã nacional e vice-campeã nacional na pista e corta-mato. Nesta entrevista, exprimiu o seu grande desencanto pela forma como foi ignorada pelo DTN na seleção nacional.
Emilia Kumós Pisoeiro tem 37 anos e nasceu na Polónia. É professora de Atividades Extra Curriculares e assistente de ação educativa no Agrupamento de Escolas de Maceira.
Começou a correr aos 14 anos por sugestão do seu professor de Educação Física. “Ele propôs-me um plano de treinos criado por uma treinadora de atletismo, Malgorzata Markowska, de uma outra localidade. Ia com ela para estágios e campeonatos nacionais e internacionais. Sou treinada por ela até finalizar o secundário. Quando vou para a Universidade, numa cidade distante da minha localidade de residência, Szczecin, ela passa-me para outro treinador com um grande estatuto e com resultados afirmados. Mas como este treinador estava noutra cidade, Wroclaw, tinha um outro atribuído na cidade da Universidade”.
Prova de estrada em França mudou a sua vida
Quando Emília estava no último ano da Universidade, a sua treinadora inicial perguntou-lhe se estava interessada em participar numa prova de estrada de 10 km em França. Ela acabou por ir, integrada numa seleção de três atletas que representaram a cidade de Boleslawiec. Venceu a prova que teve a presença de atletas de outros países europeus (alemães, suíços e portugueses). Foi lá que conheceu Paulo Pisoeiro, com quem veio a casar mais tarde e a viver em Portugal.
Estreia a correr na Polónia
Atleta de pista, Emília estreou-se a correr na estrada no seu país natal, em Wroclaw, então com 23 anos de idade. A prova teve 5 km e não lhe custou muito fazia 3.000 metros obstáculos, que era a sua especialidade. “Só pensava em vencer a minha maior adversária em pista, o que consegui porque sabia que tinha mais resistência do que ela”.
Em Portugal, a sua primeira prova de estrada foi no Juncal, próximo da sua residência. “Fiz apenas por brincadeira com o meu marido e custou-me bastante porque tinha piso irregular, com muitas subidas e descidas, ao qual não estava habituada”.
“Treina-se o atleta para os objetivos do clube e não se tem em conta os sonhos, as ambições, os objetivos do atleta”
Passar a vida a correr
Quando ela começou a correr em Portugal, treinava até 40 minutos diários e quase sempre acompanhada pelo Paulo. “À medida que comecei a ter bons resultados nas provas de estrada, intercalava treinos de corrida contínua diária de 40 minutos com séries, duas vezes por semana”. Depois de ter representado a Sociedade Recreativa da Jardoeira, a Juventude Vidigalense, o SL Benfica e o Clube de Atletismo Profª. Emília Pisoeiro (CAPEP), Emília passou a representar o Recreio Desportivo de Águeda, com um plano de treinos elaborado pelo professor Ricardo Esteves. Fazia então treinos bidiários. Agora, treina sem treinador e sem plano de treinos. Corre diariamente oito quilómetros de corrida contínua, sozinha, depois dos problemas de saúde do seu marido, felizmente já ultrapassados.
Para Emília, o início da sua vida desportiva em Portugal foi muito complicado, “numa constante correria na luta contra as 24 horas do dia, pois para além do trabalho a tempo inteiro como assistente auxiliar no agrupamento de escolas da Maceira, dividia-me com as aulas de enriquecimento curricular de educação física e os treinos de atletismo no Pentatlo Moderno de Pataias. Ainda, o acompanhamento escolar do nosso filho e das rotineiras lides domésticas. Para além das provas, maioritariamente de estrada quase todos os fins de semana”.
Momento alto da carreira nos Europeus de Juniores na Lituânia
Emília elege a sua participação nos 3.000 m obstáculos do Europeu de Juniores disputados na Lituânia, como o momento da carreira que mais a marcou.
As suas provas preferidas são as milhas urbanas e na pista coberta. Já os corta-matos longos, são as provas que menos lhe agradam.
Depois de gostar particularmente dos 10.000 m em pista, a meia maratona é agora, a sua distância preferida. Nunca correu uma maratona e prefere a pista à estrada.
Já experimentou o trail mas não pensa continuar. “É muito engraçado e bonito correr na natureza, mas são provas pouco competitivas”. E correr até quando? “Toda a vida!”
Emília criou em dezembro de 2015 o Clube de Atletismo Profª. Emília Pisoeiro. O objetivo principal era formar jovens atletas e em último recurso, ter um clube que projetasse o seu nome enquanto atleta. O clube suspendeu a sua atividade em 2017 por falta de disponibilidade de tempo.
“Faltou chegar mais longe e esse mais longe foi-me ‘roubado”
Bonito curriculum desportivo
Emília Pisoeiro apresenta um bonito curriculum. Já com a nacionalidade portuguesa e para além das muitas vitórias em provas populares, sagrou-se campeã de Portugal em 2018 e vice-campeã em 2019 dos 3.000 m obstáculos e vice-campeã no corta-mato curto em 2018, 2019 e 2020. Na pista coberta, foi 3ª nos 3.000 m em 2017 e 2ª em 2018. Em 2021, foi vice-campeã nacional dos 10.000 m, dos 5.000 m e dos 1.500 m.
Um curriculum que como nos disse Paulo Pisoeiro, “não teve a projeção que devia ter tido. Ela tem de ter a cabeça levantada, ter orgulho no que fez”.
“Quando o direito a sonhar nos é roubado, o que fica é uma realidade de que, por mais e melhor que faça, não vou alcançar esse sonho”
Pausa competitiva
No ano passado, Emília participou em oito provas. Ela tinha deixado de competir desde o Campeonato Nacional de Estrada disputado em Felgueiras, em setembro de 2021. Regressou depois em maio, porque foi convidada pela Organização da Corrida Cidade de Vendas Novas, por ter sido a última vencedora da corrida pré-pandemia. Este ano, ainda não correu alguma prova, treina apenas para manter a forma física.
Emília explica as razões para esta pausa competitiva: “2021 foi um ano muito complicado, em termos familiares e pessoais. Tive o problema de saúde do meu marido, com várias hospitalizações, cirurgia e sessões de fisioterapia e terapia ocupacional (problemas cardíacos dos quais já recuperou). Perdi o meu companheiro e apoiante nas competições. Senti-me sozinha e desprotegida.
Os tempos de pandemia e o correspondente cancelamento e desaparecimento de muitas provas, condicionou-me de certo modo, a motivação e os objetivos que tinha anteriormente”.
“Por mais que tentasse, por mais que fosse capaz, nunca iria alcançar os meus objetivos pelos meus próprios meios”
Grande desilusão por ter sido ignorada pelo DTN nacional
Mas houve uma outra razão mais grave que desiludiu profundamente Emília. “A machadada final e a enorme desilusão, é dada pela não seleção para representar Portugal na Silésia, Polónia, nem em Birmingham, Reino Unido, quando estava a fazer uma época extraordinária que culminou com o título de vice-campeã de Portugal nos 10.000 metros. É chamada para a Silésia, por exemplo, a atleta que ficou atrás de mim. E para a Taça da Europa dos 10.000 metros em Birmingham, levam dois atletas masculinos e nenhuma feminina.
Meses depois, veio à baila aquando da seleção para os Europeus de Corta-Mato, o facto de não ser chamada uma equipa sénior feminina. Há um grande bruá das atletas excluídas e no meio do atletismo em geral, há uma revolta generalizada contra o DTN nacional e a FPA. Mas, comigo foi uma indiferença e silêncio ensurdecedor.
Quando o direito a sonhar nos é roubado, o que fica é uma realidade de que, por mais e melhor que faça, não vou alcançar esse sonho.
Por mais vitórias que eu tenha alcançado ou vá alcançar, por mais longe que o meu nome tenha chegado, continuo a sentir-me invisível neste meio de atletismo, uma indiferença e hostilidade por quase todos os intervenientes desta modalidade.
Não foi tanto a frustração de não ser chamada para a Super Liga Europeia na Silésia, mas mais o choque traumático, meu, do meu marido, sem saber como devia reagir ao ‘o quê?’, ‘como é possível?’, como se tivéssemos ficado sozinhos, totalmente isolados num mundo silencioso de pessoas que estavam comigo e que lhes parecia ser natural.
Porque na minha cabeça, tinha a convicção que estava em muito boa forma, que era capaz de subir para uma fasquia superior, mas à minha volta, via atletas com menos resultados do que eu a serem mais reconhecidas e a atingirem o que eu não consegui. Infelizmente com isto, fizeram-me abrir os olhos que por mais que tentasse, por mais que fosse capaz, nunca iria alcançar os meus objetivos pelos meus próprios meios.
Só me apetecia chorar e fechar-me no quarto, martirizar-me com a notícia de não ser chamada à seleção, principalmente aos 10.000 metros de Birmingham. O meu marido telefonou ao DTN para questionar o porquê da não chamada da Emília, ao qual respondeu prontamente ‘quem era a Emília?’
E à medida que o meu marido o confrontava com factos, tentava humilhar o Paulo, de que era um mal-educado e que nunca fora mais do que um atletazeco popular. Foi o trabalho de uma vida, porque são muitos sacrifícios, sair do trabalho já de noite e ir para a passadeira fazer o segundo treino do dia e ter o filho em casa, não estar disponível para ele; dormir – comer – treinar – trabalhar – comer – trabalhar – comer – treinar – dar jantar ao miúdo e tentar fazer alguma coisa da escola com ele – dormir. A correria do atletismo gratuito, porque foram só as vitórias morais e os pequenos prémios das provas populares de estrada. Foi assim que me tornei atleta e cada vez mais competitiva, mas faltou chegar mais longe e esse mais longe foi-me ‘roubado’.
Sei que me vão julgar, mas estou, eu e o Paulo de consciência limpa e tranquila com tudo e todos, ao contrário de muita gente que irá pensar duas vezes ao lerem estas minhas palavras. Se tiverem um pingo de sensibilidade, vão ficar com um tremendo peso na consciência”.
“Não há critérios bem definidos para representar a seleção portuguesa; continuamos a viver do critério único e ambíguo do atleta ou dos dos atletas que agradem ao DTN”
Muito a mudar no atletismo português
Face ao exposto, é natural que Emília tenha uma posição muito crítica acerca do atletismo nacional. Eis o seu depoimento:
“O que eu penso, com estes dez anos de atletismo mais a sério, é que temos muitos bons atletas, mas algures no seu percurso, por motivos alheios ao desempenho desses atletas, acabam por ficar pelo caminho e os que se destacam e se mantém no topo, por assim dizer, têm ‘alguém’ por trás.
Neste momento, estando por fora da competição e observando as últimas competições nacionais e internacionais, passa para fora a imagem de que o atletismo está mais competitivo, mas o que sinto, é que, com trocas e dispensas de atletas entre clubes, conseguiu-se nivelar os resultados e até desequilibrou para baixo a maior potência nacional feminina (Sporting).
E o que se assiste, é um recurso generalizado à contratação de atletas ‘estrangeiros’ pelos clubes portugueses, exemplo, do último Campeonato Europeu de Clubes em Corta-Mato. Já não ficamos só pelo Sporting como aconteceu também com o Braga. Isto é a aposta evidente nos nossos atletas?! Por exemplo, o Sporting contratou na época passada uma atleta jovem promissora para no início desta época, a dispensar, pelo que eu tivesse percebido. Atleta que até agora, está a fazer a diferença entre os resultados obtidos pelas duas equipas. E depois, não há critérios bem definidos para representar a seleção portuguesa; continuamos a viver do critério único e ambíguo do atleta ou dos dos atletas que agradem ao DTN.
Sinto que enquanto não se remunerar o atleta de alta competição, de modo a que possa exclusivamente dedicar-se ao treino e às competições sem estar preocupado em como se sustentar a si e à sua família, tem de mudar-se a cultura do atletismo, de que tem de ser por desporto e que correr não cansa. Que o atleta representa um clube e que só por tal facto é bom, não interessa o lado do atleta e o mesmo em relação com o treinador. Treina-se o atleta para os objetivos do clube e não se tem em conta os sonhos, as ambições, os objetivos do atleta”.
“O atleta é o centro do treino, é nele que se aposta. Eles entram em provas praticamente todos os fins de semana”
Como se trabalha no atletismo na Polónia
As diferenças entre Portugal e a Polónia no atletismo são significativas, não sendo por acaso que a Polónia é uma grande potência europeia.
Emília conhece bem como se trabalha no seu país de nascimento. “Lá, os atletas começam muito cedo a praticar atletismo e são logo escolhidos nas provas escolares pelos professores e recomendados por estes a treinadores das cidades mais próximas das localidades dessas crianças. Inicialmente fazem estágios duas vezes por ano, estágio de inverno (na pausa escolar de inverno), treinos bi-diários e estágio de verão, cada estágio dura duas semanas. No inverno, vai-se para as montanhas que têm um estádio com pista e fazem já, séries e reforço muscular. Depois dos treinos mais puxados, faz-se recuperação muscular nas saunas.
O atleta é o centro do treino, é nele que se aposta. Eles entram em provas praticamente todos os fins de semana. Na pista, se é época de verão. Durante as aulas escolares, no outono e primavera, há corta-matos e no inverno, a pista coberta. Nestas provas, tenta-se obter marcas para a ida aos Nacionais. Nestes, os primeiros três classificados ou os que obtêm os mínimos, vão aos Europeus.
Em Portugal, não consigo ver isto”.
Cuidados na alimentação e no sono
Quanto à sua alimentação, não tem uma dieta rigorosa mas bem cuidada. “Por exemplo, não como fritos, não adiciono sal nem açúcar nas minhas refeições e como prioritariamente sopa, pratos de peixe cozido ou grelhado, acompanhado de legumes. E as horas de sono são muito importantes para mim, nunca menos de sete horas por noite”.
Não dispensa os exames médicos de rotina, fazendo regularmente, análises sanguíneas e o exame médico desportivo. Nunca teve lesões a que“desse muita importância” e nunca pensou em praticar outra modalidade que não o atletismo.
No mundo das corridas, aprecia particularmente “a sensação de invencibilidade e a possibilidade de me exceder cada vez mais”.
Melhor conhecimento dos atletas inscritos nas provas
Na organização da provas, Emília deixa a sugestão aos organizadores de terem um melhor conhecimento dos atletas que constem das listas de inscritos. “Porque, se não se for de uma equipa famosa, não sabem o nome do atleta e ridiculamente, acaba por um atleta que não vença a prova, ter mais protagonismo do que o vencedor. O mesmo sucede com os locutores das reportagens televisivas.”
Projetos futuros
Face à sua realidade atual, Emília não tem grandes projetos na modalidade. Pretende continuar os seus treinos, sem a intensidade de outrora e “sem as obrigações para com objetivos de clubes que pessoalmente, só exigem tempo, trabalho, esforço e muito sacrifício, como nos dez anos que vivi intensamente o atletismo. A única recompensa que retenho, foram as minhas vitórias e o pouco dinheiro que ganhava dos prémios dessas minhas conquistas.
Quando ganhou uma prova mas não constava na classificação
Emília conta-nos uma estória que ela classifica de surreal, passada em outubro do ano passado. Depois de ter vencido uma prova de estrada, disseram-lhe que não constava na classificação. “O organizador, confrontado com a situação, não assume o erro da leitura do chip. Para ele, era o meu caso em 2.000 ou mais atletas e como tal, a falha seria minha. Para eu receber o prémio da primeira classificada, as atletas classificadas atrás de mim tinham de me dar permissão. Disse-me ainda que não tinha de me conhecer entre tantos atletas que lhe passavam pelas organizações de eventos, enfim…”
Infelizmente, o desabafo sentido de Emília Pisoeiro corresponde ao retrato do dirigismo desportivo que campeia no atletismo português: amadorismo confrangedor, irresponsabilidade que, quando confrontada com os erros é retrucada com arrogância e má educação e falta de respeito pelos atletas.