Menos de 3% dos classificados para as repescagens chegaram às finais em Paris
Tivemos pela primeira vez em Jogos Olímpicos, as repescagens para os atletas que não se conseguiram apurar nas eliminatórias. Divulgamos o interessante trabalho do jornalista Jonathan Gault sobre os seus resultados práticos.
Quando a World Athletics anunciou em julho de 2022 que introduziria séries de repescagem para os JO de Paris, a principal pergunta entre os fãs de atletismo e atletas foi: repe-O QUÊ?
Então, todos nós lemos sobre como isso iria funcionar, substituindo amplamente as qualificações por tempos por uma corrida extra em cada evento, dos 200 m aos 1500 m, mais as duas corridas com barreiras. Tal, produziu uma segunda pergunta. Por quê?
Em entrevista coletiva dada em dezembro de 2023, o presidente da World Athletics, Sebastian Coe, admitiu que a ideia da repescagem foi essencialmente imposta à World Athletics pelo COI.
“Foi uma criação do COI”, disse Coe. “Não foi algo que escolhemos nós mesmos. Há prós e contras.”
Os prós, disse Coe, incluíam a hipótese de os atletas competirem com mais frequência e os fãs assistirem a mais corridas.
“Às vezes, os programas olímpicos são um pouco escassos”, disse Coe. “Então, isso dá aos nossos fãs em Paris, se eles puderem pagar para estar lá, mais uma oportunidade de ver os nossos atletas em mais ocasiões.”
Para preencher essa lacuna para Paris, a World Athletics fez vários ajustes no formato do Campeonato Mundial do ano passado. Entre eles, estava a eliminação das qualificações por tempos nos 1500 m, 3.000 m obstáculos e 5.000 m — um movimento que se mostrou universalmente popular. Mas as séries de repescagem foram deixadas de lado.
“Não sentimos necessidade disso no nosso Campeonato Mundial em Budapeste e não tenho a certeza se veremos necessidade disso em Tóquio em 2025”, disse Coe.
Em Paris, poucos atletas destinados às séries de repescagem, criticaram abertamente a ideia, o que não é nenhuma surpresa. Quer esses atletas apoiassem as séries da repescagem ou não, quando chegaram à zona mista, a maioria já havia começado a reformular a sua mentalidade para aceitar a sua nova realidade.
“Obviamente, isto coloca-o em desvantagem correndo uma série extra, mas é por isso que não quero passar pela repescagem”, disse Brandon Miller, atleta norte-americano de 800 m, após falhar o apuramento na primeira eliminatória em Paris. “Mas eu tenho que jogar as cartas que me foram dadas e fazer o meu melhor para tirar vantagem disso.”
O atleta australiano Ollie Hoare, um crítico vocal da repescagem na preparação para os Jogos, não conseguiu passar da primeira eliminatória dos 1500 m em Paris. Após a prova, ele disse que teria aceitado a sua eliminação sob as regras antigas, mas não iria deixar desperdiçar a outra oportunidade para se classificar.
“Se eu tive uma má corrida, não foi o meu dia, não terminei, então sinto que é assim que o desporto funciona”, disse Hoare. “Mas a repescagem é uma coisa nova e outra oportunidade de correr. E sempre que se tem a oportunidade de correr, deve-se provavelmente aproveitá-la.”
Repescagem em números em Paris
Então, como funcionou realmente as séries de repescagem em Paris? Vamos dar uma olhadela aos números.
No geral, as séries de repescagem adicionaram 40 corridas extras ao programa de atletismo. Então, melhoraram a quantidade de algumas das sessões matinais, se não a qualidade.
Também mudou a identidade de alguns dos qualificados. LetsRun.com comparou os atletas que se teriam classificado na primeira eliminatória se os qualificados por tempos ainda estivessem em vigor com os atletas que realmente passaram pelas séries de repescagem (que, vale ressaltar, também incorporou qualificados por tempos fora dos 1500 m).
Número de possíveis classificados por tempos que avançaram da série de repescagem em cada evento:
200 m masc. | 4/6 |
400 m masc. | 2/6 |
800 m masc. | 1/6 |
1500 m masc. | 1/6 |
110 m bar. masc. | 3/6 |
400 m bar. masc. | 5/6 |
200 m fem. | 5/6 |
400 m fem. | 1/6 |
800 m fem. | 2/6 |
1500 m fem. | 2/6 |
100 m bar. fem. | 3/6 |
400 m bar. fem. | 4/6 |
Mas a maior crítica às séries de repescagem foi que a segunda hipótese que ela pretendia oferecer não era uma hipótese muito grande. Corredores que já não eram rápidos o suficiente para se classificar, estão agora a serem colocados numa desvantagem ainda maior, por terem que correr uma prova extra.
Às vezes, a margem entre as qualificações automáticas e as qualificações por tempos não é tão grande. Além de Murphy nos 800 m em 2016, Josh Kerr conquistou uma medalha nos 1500 m olímpicos em 2021, após uma qualificação por tempos na primeira eliminatória.
Em 2024, alguém na posição de Murphy ou Kerr estaria tramado. Para chegar à final nos 800 m da repescagem, seria necessário correr quatro vezes em quatro dias (primeira eliminatória na quarta-feira, repescagem na quinta-feira, meias-finais na sexta-feira, final no sábado). Na segunda série da repescagem dos 1500 m, os três classificados tiveram que correr em 3.32, 3.33 e 3.33 e, sem surpresa, terminaram em 9º, 11º e 11º nas suas meias-finais, na sua terceira prova em três dias.
Então, como se saíram os atletas da repescagem nas meias-finais em Paris? Não muito bem.
Atletas na repescagem nos JO de Paris
Evento | Posições de repescagem nas meias-finais | Avançou para a final | Resultado na final |
200 m masc. | 7, 5, 8, 7, 7, 8 | 0/6 | |
400 m masc. | 6, 7, 6, 7, 5, 6 | 0/6 | |
800 m masc. | 7, 8, 8, 5, 8, 7 | 0/6 | |
1500 m masc. | 10, 12, 8, 9, 11, 11 | 0/6 | |
110m bar. masc. | 2, 5, 8, 7, 6, 8 | 1/6 | 6º (Freddie Crittenden) |
400m bar. masc. | 4, 5, 6, 7, 8, 8 | 0/6 | |
200 m fem. | 7, 8, 8, 5, 8, 7 | 0/6 | |
400 m fem. | 6, 7, 8, 8, 5, 4 | 0/6 | |
800 m fem. | 5, 6, 7, 5, 7, 8 | 0/6 | |
1500 m fem. | 10, 12, 7, 10, 9, 6 | 1/6 | 11º (Águeda Marqués) |
100 m bar. fem. | 6, 7, DQ, 4, 8, 7 | 0/6 | |
400 m bar. fem. | 5, 6, 7, 9, 6, 4, 7 | 0/7* | |
Total: 2/73 |
* Houve um empate no 2º lugar numasérie de repescagem, avançaram ambos para as meias-finais
Dos 73 atletas que se classificaram para as meias-finais através da repescagem em todos os eventos, apenas dois avançaram para a final — uma taxa de qualificação de 2,7%.
E mesmo isso, é enganador. Um dos atletas de repescagem que chegou à final foi o norte- americano Freddie Crittenden, atleta dos 110 m barreiras, que correu intencionalmente na sua série da primeira eliminatória, para não agravar uma lesão. Não se pode culpar Crittenden por tentar maximizar as suas hipóteses de sucesso em Paris. Ao enviar-se para a repescagem, ele deu ao seu corpo, dois dias extras para se curar, uma decisão que acabou por lhe valer a pena. Mas a situação de Crittenden é dificilmente um exemplo do sistema funcionando conforme o planeado.
Faz sentido que poucos atletas de repescagem se tenham classificado para a final em Paris, dada a prova extra. Mas como se compara tal, aos atletas na mesma distância sob o antigo sistema? Quantos atletas que precisavam de uma qualificação por tempos na primeira eliminatória dos Jogos Olímpicos anteriores, acabaram a avançar para a final?
Número de qualificados na primeira eliminatória que avançaram para a final, em JO entre 2012 e 2020
Evento | Avançou para a final em 2020 | Avançou para a final em 2016 | Avançou para a final em 2012 |
200 m masc. | 0/3 | 0/4 | 0/3 |
400 m masc. | 0/6 | 0/3 | 0/3 |
800 m mas. | 0/6 | 1/3 | 0/3 |
1500 m masc. | 2/6 | 2/6 | 1/6 |
110 m bar. masc. | 0/4 | 0/4 | 0/6 |
400 m bar. masc. | 0/4 | 0/6 | 0/6 |
200 m fem. | 0/3 | 0/6 | 0/6 |
400 m fem. | 0/6 | 0/8 | 0/3 |
800 m fem. | 1/6 | 1/8 | 0/6 |
1500 m fem. | 2/6 | 1/6 | 2/6 |
100 m bar. fem. | 0/4 | 0/6 | 0/6 |
400 m bar. fem. | 0/4 | 0/6 | 1/4 |
5/58 = 8,6% | 5/66 = 7,6% | 4/58 = 6,9% |
Nenhuma destas percentagens é elevada, mas são todas substancialmente maiores do que a percentagem de repescagem de 2,7% que vimos em Paris. E os números na tabela acima, podem ser artificialmente baixos porque, em anos anteriores, alguns eventos só apresentaram três ou quatro qualificados na primeira eliminatória.
A repescagem parece ter um impacto maior nos eventos de meio fundo do que nos sprints. De 2012 a 2020, 10 em 36 (27,8%) dos qualificados por tempos da primeira eliminatória dos 1500 m, acabaram por chegar à final. Este ano, em Paris, foi apenas 1em 12 (8,3%). E isso faz sentido. As preliminares de sprint são essencialmente onde todos dão tudo desde o início, exceto os atletas mais rápidos. As provas de meio fundo não são, o que significa que um atleta superior pode perder devido a um erro tático. A série de repescagem é também mais uma punição para os atletas de meio fundo, pois as provas de 800 m ou 1500 m são mais exigentes quando se trata de recuperação do que uma prova de 200 m.
Também vale a pena notar que nos 400 m masculinos, oito dos 19 atletas de repescagem em Paris (32%) nem sequer competiram na sua série de repescagem, muitos deles optando por priorizar a estafetao 4×400 m.
Toda a gente importa-se muito com os Jogos Olímpicos porque as apostas são enormes, todas as grandes estrelas estão lá, e os resultados importam realmente. A repescagem não atende a nenhum desses critérios. Ela diminui as apostas da primeira eliminatória, porque qualquer um que não se qualificar, tem agora uma segunda hipótese. Ela introduz um monte de novas provas, nenhuma das quais apresenta grandes estrelas (já que elas ter-se-ão qualificado automaticamente). E os resultados da repescagem mal importam, porque 97% dos corredores serão eliminados de qualquer maneira, nas meias-finais.
Vale a pena manter um sistema em vigor onde corremos 40 provas extras no programa para que alguns atletas tenham 1-2% de hipóteses de chegar à final? Se é o COI, e o seu objetivo é preencher o cronograma e garantir que a experiência olímpica dos atletas não se limite a uma prova de 20 segundos, então claro. Paris conseguiu que 70.000 pessoas comparecessem às sessões matinais, e a repescagem deu a elas, algo extra para assistir.
Mas para os fãs de atletismo que assistem em casa, a resposta deve ser clara: não.