Médico português conta, pela primeira vez com detalhes, os bastidores dos confrontos entre o Ministério do Desporto, a ABCD e o COB às vésperas dos Jogos Olímpicos
Em agosto de 2016, a Agência Mundial Antidopagem (AMA) lançou duras críticas ao Governo brasileiro, bem como à sua filiada brasileira, pelos critérios praticamente nulos na aplicação de controlos aos atletas do país.
Segundo denunciou então a AMA, no mês que antecedeu a Cerimónia de Abertura dos Jogos Olímpicos, praticamente nenhum atleta brasileiro foi submetido a controlos antidoping.
O jornal brasileiro “O Estado de S. Paulo” publicou na passada 4ª feira uma importante entrevista com Luís Horta, ex-consultor internacional da Autoridade Brasileira de Controlo de Dopagem. O artigo é assinado por Jamil Chade, correspondente do jornal em Genève.
Dado o interesse da extensa entrevista, reveladora da situação do doping no Brasil, reproduzimo-la na íntegra.
“O Ministério do Desporto e o Comité Olímpico do Brasil (COB) dificultaram o controlo de doping de atletas do país às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio e “sufocaram” a operação de combate às irregularidades no desporto. As denúncias são feitas pelo médico português Luís Horta, que foi contratado como consultor internacional da Autoridade Brasileira de Controlo de Dopagem (ABCD) e que, antes dos Jogos, deixou o país.
Segundo ele, as autoridades chegaram a exigir que os nomes dos atletas que seriam testados fossem revelados com antecipação para o Ministério do Desporto, assim como local e hora do exame, que deveria ser uma surpresa.
Um ano depois das polémicas envolvendo o controlo do doping no Brasil e vivendo hoje em Lisboa, Horta fala pela primeira vez sobre os detalhes do que ocorreu dentro do COB, do Ministério do Desporto e da ABCD, com manobras das autoridades federais para impedir a viagem de equipes de técnicos para colher amostras de atletas, e o confronto aberto com o COB.
O médico também revela como, depois de treinar dezenas de técnicos para realizar os testes de doping na Rio-2016, os organizadores dos Jogos ignoraram os esforços feitos com dinheiro público e optaram por chamar “desconhecidos” para trabalhar no evento olímpico.
Horta, que em agosto do ano passado já havia soado o alerta sobre o COB e o governo, descreve agora, com detalhes, a atitude das autoridades brasileiras e relata como teve o seu trabalho minado.
Doutor em medicina desportiva e professor universitário, Horta foi presidente da Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) e presidente da Comissão de Laboratórios da Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês). Na sua avaliação, o doping no Brasil é algo “gravíssimo” e o médico diz que decidiu expor os problemas no país justamente para “ajudar o desporto brasileiro”.
Como foi a sua chegada ao Brasil e por qual motivo o senhor se envolveu com a operação de combate ao doping no país?
A ideia original surgiu de um convite de Marco Aurélio Klein (ex-secretário nacional para a ABCD). Em 2010, assinámos um acordo entre Brasil, Portugal e a WADA, na presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A partir daí com Klein, ele fez a sua formação inicial em Lisboa e depois, entre os conselhos que lhe dei, sugeri que, num país como o Brasil, com tantos conflitos de interesse, deveria recrutar pessoas com um perfil ético acima da média. Um ano mais tarde, ele formou a sua equipa. Mas disse-me que precisava que eu desse a formação a eles. A posição, portanto, que eu tinha era um contrato de consultor da Unesco para a ABCD para ajudar a desenvolver o programa antidopagem do Brasil.
E o que o senhor encontrou quando chegou ao Brasil?
Fiquei muito contente com a constatação das autoridades nacionais de que era preciso criar uma política de Estado contra a dopagem. Eu também ajudei a criar essa política de Estado em Portugal. Portanto, era algo que me agradou muito. O principal objetivo era o de criar um programa forte, independente e que não tivesse conflito de interesses para, acima de tudo, harmonizar o controlo de dopagem. O combate já existia no Brasil. Mas era muito desarticulado. Iniciativas existiam. Mas não havia uma estratégia harmonizada. O que ainda me agradou muito era o investimento que o governo colocaria. Era muito dinheiro e surgiu a mesma questão que já tinha existido em Portugal, que era de se perguntar se investir nisso era a prioridade, diante de tantos problemas sociais que o país gastasse com isso. Era uma pergunta legítima. Muitas vezes, eu ia ao meu trabalho em Portugal e passava pelo que vocês no Brasil chamam de favela. Todos os dias me colocava a questão: vivo num país com favelas e estamos gastando dinheiro com a luta contra a dopagem? Mas um dia entendi que essa luta não era apenas uma questão do desporto, principalmente quando vemos o problema do tráfico, o impacto para a saúde pública, a utilização por ginásios.
E o que ocorreu quando o senhor chegou ao Brasil?
Nos dois primeiros anos, as coisas correram muito bem. No Brasil, assim como em Portugal, a burocracia é muito grande. Portanto, o início foi difícil. Mas tivemos uma grande ajuda da Casa Civil. Foi fundamental. As coisas pareciam caminhar. Criámos uma ferramenta para qualquer atleta saber se um medicamento tinha substâncias proibidas ou não. Montámos um programa muito bem elaborado, prevendo controles em competições e fora de competições, coleta de urina e sangue, o início do passaporte biológico. Criámos ainda o regime jurídico contra a dopagem, algo fundamental e que eu considero que o Código Brasileiro Antidopagem foi um dos legados que eu deixei no Brasil.
À medida que os Jogos Olímpicos do Rio se iam aproximando, como foi o trabalho do senhor e da ABCD?
Alguns primeiros sinais de obstáculos aparecem antes mesmo da exoneração de Marco Aurélio Klein. E aparecem quando tivemos uma teleconferência com o COB, na qual o diretor executivo de Desportos, Marcus Vinícius Freire, dizia que não estava contente com a forma pela qual os testes fora de competição estavam ocorrendo. Ele dizia que estávamos fazendo controlos demais e muitos atletas estavam registrando falhas. E isso estava trazendo muitos problemas na preparação dos atletas, até com risco de que acumulassem três falhas, com algum tipo de punição. Eu era o responsável dessa área e explicámos com muito cuidado ao COB qual era a estratégia, que ela estava de acordo com as melhores estratégias do mundo. Quando pensávamos que tudo estava resolvido, houve uma reunião no Rio de Janeiro na qual eu não fui. Era para tentar resolver a situação. Mas ela não correu nada bem.
O COB recusa ter pressionado para reduzir o número de exames, o que já foi reconhecido pela ABCD. Porquê?
Marcus Vinícius Freire deixou a sala de reuniões, onde estava o então secretário nacional para a ABCD, em desacordo com o que era dito. Isso criou um grande mal-estar na ABCD. Depois disso, surgiram mensagens por escrito no telemóvel de Marcus Vinícius Freire para Klein, onde ele foi muito deselegante comigo. Ele dizia que eu estava apenas para ficar bem com a Wada e que estava prejudicando o treino dos atletas.
E o que ocorreu depois desse mal-estar?
Era o momento da transição e o começo do novo governo (de Michel Temer). Quando entrou o novo governo e o novo responsável pelo Desporto, começámos a sentir que estavam colocando entraves logísticos para a nossa operação.
De que forma?
Começámos a sentir que era cada vez mais difícil conseguir viagens para que os nossos oficiais de controle fizessem os testes em atletas. Tínhamos problemas também para transportar os nossos materiais. Sofríamos muitos atrasos. Fazíamos um plano de controlo para uma semana e não conseguíamos cumprir por conta dos entraves logísticos. Chegou a um ponto que o Ministério do Desporto passou a exigir que, com o pedido de viagem, fosse anexado o local, o dia e a hora dos testes e o nome dos atletas. Ora, isso já diria tudo.
O Ministério do Desporto nega ter feito ingerências sobre os exames e restrições a viagens. E o que o senhor fez?
Eu já estava com dificuldades para dormir. Mas, um dia pela manhã, cheguei à decisão. Eu disse ao Marco Aurélio Klein que existia uma clara estratégia para sufocar o trabalho e a ABCD. Foi o que aconteceu. Dias depois, ele foi exonerado. Ele ficou sabendo inclusive por um jornalista. Klein jamais recebeu uma explicação sobre a sua exoneração nem mesmo um agradecimento sobre o que ele tinha feito. Eu vi que, obviamente, fariam a mesma coisa comigo. Como eu já estava renovando o meu contrato, decidi que iria voltar para Portugal.
E o que ocorreu com o controle do doping na Rio-2016?
Uma força tarefa havia sido criada para a Rio-2016, envolvendo o COI, a Wada, a Rio-2016 e a ABCD. Tivemos muitas reuniões para nos preparar e tudo parecia correr bem. A nossa estratégia era formar oficiais de controle de dopagem e de recolha de sangue para que fossem usados para os Jogos. Mas aí fomos confrontados por uma lista de pessoas que estariam presentes nos Jogos. Essa responsabilidade era, de facto, da Rio-2016. Quando olhámos a lista, descobrimos que a maioria das pessoas que tínhamos formado não estava incluída. Formámos 106 oficiais de controle e 23 oficiais de recolha de sangue. Nenhum desses 23 estava na lista da Rio-2016. Alguns dos oficiais incluídos, até sabíamos quem eram. Alguns deles chegaram a trabalhar para a CBF durante a Copa do Mundo. Mas existiam muitos outros nomes dos quais não tínhamos conhecimento de quem eram. A ABCD tinha feito um rastreamento dos nomes de oficiais de controlo que existiam no País e essas pessoas nem faziam parte desse mapeamento. Alguns dos indivíduos eram de determinados Estados. Eu entrei em contato com as pessoas que lá trabalhavam pela ABCD, alguns dos quais há mais de 20 anos, e eles disseram que tão pouco conheciam aqueles nomes. Isso causou uma grande fricção. Claro, a responsabilidade em fazer a lista era da Rio-2016. Mas todos nós queríamos que o Brasil estivesse representado pelos melhores e que a imagem do País não fosse colocada em questão. E foi o que ocorreu.
Rio-2016 afirma ser equivocada a ideia de que tenha elaborado listas por iniciativa própria.
De que forma isso tudo afetou o controle do doping nos Jogos?
No lugar de usar os oficiais de recolha de sangue que a ABCD treinou, eles decidiram usar uma empresa privada. Chamámos a atenção de que eles têm experiência em recolhas num posto de enfermagem. Mas não do controle de dopagem. O que ocorreu, na prática, foi que as recolhas em alguns momentos não foram feitas. Assim, o Laboratório no Rio de Janeiro, com investimentos pesados do governo em tecnologia de ponta, não recebeu as amostras de sangue em quantidade suficiente. Grande parte do investimento, não foi utilizado. Outro problema registrado foi com os escoltas, que são as pessoas que acompanham o atleta desde o momento que ele é notificado para o controle de dopagem até a recolha. Como em Sochi, em 2014, uma das grandes críticas da Wada havia sido com os escoltas, nós formámos quase uma centena deles para a Rio-2016. Esses líderes de escolta, muitos deles com escolaridade superior ou militares, não foram usados pelos organizadores dos Jogos.
Após os Jogos, a Wada fez críticas muito duras ao Rio. Essas falhas foram deliberadas ou acidentais?
Não tenho provas, porque eu não já estava no Brasil. Mas o que podemos pelo menos afirmar é que houve uma falta de planeamento muito grande, um despreparo enorme da Rio-2016 e que tudo isso poderia ter sido evitado se tivessem aproveitado as pessoas que a ABCD treinou e formou. Inclusive, durante os Jogos, quando foi informado que havia um problema com os oficiais de recolhas de sangue, a ABCD ofereceu os seus 23 especialistas formados. Mas a Rio-2016 não aceitou com a desculpa de que seria difícil credenciar aquelas pessoas. Uma coisa absolutamente inadmissível.
O senhor citou o diretor executivo de Desportos do COB. Mas onde Carlos Arthur Nuzman estava em toda essa discussão? Ele reuniu-se com vocês?
Não. Enquanto eu estive no Brasil, eu vi-o talvez duas vezes e encontrei-o por ir à abertura ou encerramento das reuniões da força-tarefa. Estávamos longe de Nuzman. Mas penso que tudo que ocorre dentro do COB é de responsabilidade do seu presidente.
Como foi a sua saída da ABCD?
A partir do momento que Klein foi exonerado, no fim de junho, tivemos um novo responsável e, mesmo depois de nomeado, não apareceu na ABCD. Eu mantive-me por mais alguns dias na ABCD para terminar alguns relatórios e na esperança de que aparecesse o novo secretário (Rogério Sampaio) para passar a informação do sistema de inteligência, que estava em apenas duas pessoas: eu e Klein. Tínhamos problemas para resolver. O laboratório estava descredenciado pela Wada e tínhamos amostras no laboratório que não tinham sido examinadas. Tínhamos de tomar uma decisão sobre o destino dessas amostras. Estávamos a poucas semanas dos Jogos. Mas a pessoa não apareceu. Eu ainda fiquei em julho em Brasília e deixei recados para o novo secretário dizendo que estava disposto a falar sobre todos os detalhes. Ele acabou aparecendo. Mas nunca solicitou a minha informação, o que é algo estranho.
O senhor saiu com um sentimento de que o objetivo era ganhar medalhas a todo custo?
Parece que havia essa estratégia. Se um organismo, que tem uma importância enorme na realização dos Jogos e na preparação da missão de atletas, tem uma atitude dessas num momento crucial, sufocando as nossas atividades, e as pessoas que entram não estão interessadas em resolver os problemas que existiam, é, no mínimo, estranho e leva-nos a pensar que muito provavelmente havia uma estratégia.
Com tudo o que o senhor viu no Brasil, qual é a real dimensão do doping no desporto nacional?
É grave. É muito grave. Tanto eu como Klein tivemos acesso a todas as informações. Éramos os únicos que tínhamos toda essa informação. Antes de chegar, eu já sabia que a situação era difícil. Mas nunca pensei que fosse tão grave e que as estratégias de dopagem fossem tão sofisticadas. Tivemos ainda acesso à informação de atletas que compravam produtos em borracharias (locais de comércio e prestação de serviços relacionados a manutenção de rodas e pneus de carros, motos entre outros), em farmácias sem receituário e, portanto, a situação é realmente gravíssima. Acima de tudo, com o nosso sistema de inteligência, conseguimos que vários atletas dessem uma espécie de delação premiada. Isso foi fundamental para construir um relatório completo sobre quem fornecia, quais os médicos e treinadores envolvidos, como os testes eram manipulados. Entregámos tudo ao Ministério Público que hoje tem muita informação sobre instituições e pessoas envolvidas”.