Fernando Andrade é um dos corredores mais conhecidos do pelotão e organiza há 41 anos a Meia Maratona de S. João das Lampas, a segunda mais antiga do país. Já correu 77 maratonas e ultra-maratonas. Dedicou-se ainda ao triatlo durante sete anos.
Fernando Andrade é aos 62 anos de idade, um dos corredores mais conhecidos do pelotão português. Nascido em S. João das Lampas, tem-se mantido fiel às origens. Assistente técnico da Junta de Freguesia local, corre como convidado da equipa Tranquilidade-Açoreana Clube de Atletismo.
A “culpa” foi do PREC
O atletismo surgiu na vida do Fernando por “culpa” do PREC (Processo Revolucionário em Curso). Estávamos então nos anos 1975/1977 e o Fernando viu-se rodeado de um número significativo de crianças que gostavam de correr regularmente. Ele achou que devia estar minimamente habilitado a lidar com a situação e fez um curso intensivo de animador desportivo promovido pela Direcção-Geral de Desportos, que também estava interessada em promover o chamado “Desporto à Porta de Casa”.
Fernando conta-nos como acabou ele também a correr. “A ideia não era ser eu a correr mas sim estimular e orientar a miudagem nessa prática, só que, comecei a achar que não deveria ficar-me pelas orientações e deveria dar o exemplo, correndo, aplicando os conceitos básicos do treino. Depois, como forma de premiar os miúdos, levava-os às provas que, nessa altura, eram frequentes nos programas das festas das redondezas, tanto mais que a célebre medalha de prata de Carlos Lopes nos Jogos Olímpicos de Montreal em 1976, dava um novo alento à modalidade e era estimulante para a miudagem. Foi assim que surgiu o atletismo na minha vida”.
Deslumbrado com a Meia Maratona da Nazaré em 1978
Não se recorda da sua primeira prova mas há uma que ele nunca esquecerá, a Meia Maratona da Nazaré em 1978. “Aquilo era um mundo novo. Nunca tinha visto tamanha grandeza numa corrida. Organizámos uma excursão, para atletas e acompanhantes e ficámos deslumbrados com o que vimos. Tanta gente a correr! Tanta gente a colaborar! Os abastecimentos! Os tempos de passagem! A chegada controlada! O ambiente de festa. Inesquecível”.
“Se houve alguma prova em que gostei menos de participar não me lembro. Eu gosto é de correr”
Há 41 anos, sempre sem treinador
Treina 3/4 vezes por semana, habitualmente ao final do dia. Não tem um esquema rígido de treino e nunca teve um treinador. “A intensidade é sempre de acordo com a forma com que me sinto. Para além das ‘luzes’ que adquiri no referido curso de animador desportivo, devo sublinhar que a Revista Spiridon ensinou-me muito, principalmente no que diz respeito a longas distâncias”.
Corre em média entre 20 e 25 corridas por ano. Destas todas, há algumas que ele considera imperdíveis. São elas a Maratona do Porto, o Trail Noturno Lagoa de Óbidos e a Ultra Maratona Atlântica Melides-Tróia. Das mais curtas, tem um carinho especial pelas Corridas dos Sinos, das Fogueiras, de S. João no Porto, de Santo António em Lisboa e a S. Silvestre da capital.
Já quanto às provas que menos lhe agradaram, não refere uma que seja. E justifica: “As Organizações farão o possível para que os atletas saiam satisfeitos. Umas vezes conseguem, outras não, mas se os atletas experimentarem colocar-se do lado de organizadores, hão-de ver que a corrida em si, vale mais do que tudo o resto que possa ser criticável. Por isso, não poderei apontar o dedo a qualquer organização. Se houve alguma prova em que gostei menos de participar, não me lembro. Eu gosto é de correr”.
“O trail é um regresso às origens, ao contacto com a natureza, à dobragem de obstáculos, à apreciação de paisagens”
E vão 77 maratonas e ultras maratonas!
Os míticos 42.195 metros são a distância preferida de Fernando. Já participou em 77 maratonas e ultras maratonas. Estreou-se na Maratona Spiridon, no Autódromo do Estoril, em 1983. “Foi quando fiz o meu melhor tempo, 3h03m. Foi uma sensação indescritível. A última foi o recente TNLO-Óbidos. Na minha ‘carreira’, houve vários momentos marcantes, com especial destaque para aquelas sensações de terminar uma maratona”.
Diferenças entre o trail e a estrada
Como corredor experimentado que é na estrada e nos trails, Fernando tem uma opinião definida acerca das diferenças entre elas. “O importante é sorver o que a corrida nos proporciona, independentemente dos objectivos de uma boa classificação”
Considera o trail menos exigente do que a maratona no que respeita ao esforço psicológico, mas mais exigente no aspecto físico. “O trail é um regresso às origens, ao contacto com a natureza, à dobragem de obstáculos, à apreciação de paisagens. A maratona exige um esforço constante, é mais monótona, mas tem o encanto de exigir de nós um autocontrolo muito grande para resistirmos aos imponderáveis da distância. Ambas se recomendam, mas haverá sempre quem prefira uma das modalidades. Mais raros serão aqueles que conhecendo as duas, digam que nunca mais fazem uma delas”.
“Não se coloca prazos naquilo que se faz por paixão”
No triatlo durante sete anos
A sua modalidade preferida é o atletismo mas já fez uma incursão pelo triatlo entre 1997 e 2004. “Gostei muito. Mas por uma questão de logística, acabei por regressar ao atletismo”.
Pensa correr enquanto puder. “Como dizia a nossa saudosa amiga Analice Silva, hei-de correr até quando Deus quiser. Não se coloca prazos naquilo que se faz por paixão”.
As lesões não gostam dele pois raramente faltou a uma prova devido a elas.
Faz exames médicos de rotina (análises e prova de esforço), pelo menos de dois em dois anos. “Bem sei que deveria ser anualmente, mas…”.
Não tem cuidados especiais com a alimentação, com suplementações e regimes alimentares especiais. Tem em atenção as recomendações que a população em geral deve seguir, dando preferência a alimentos saudáveis. “Mas não sou exemplo para ninguém nas preferências que tenho”.
“A Corrida é uma ‘fábrica de amizades’ em que não há adversários, mas companheiros”
Mais praticantes mas piores marcas
Sobre o atletismo em Portugal, Fernando é claro na sua apreciação: “no que diz respeito à corrida, vejo o que toda a gente vê: mais praticantes, piores marcas. Mas se me pergunta o que acho melhor: termos meia dúzia de atletas com marcas internacionais, ou termos milhares de praticantes sem marcas de grande interesse, sou pela segunda opção, pois vejo que um país com uma população toda ela ativa, é bem melhor do que se tivesse uma população no sofá a ver os seus campeões na televisão”.
Na sua opinião, a massificação a longo prazo, pode proporcionar mais bases para que surjam praticantes de maior valia.
Correr ao lado dos campeões
No mundo das corridas, Fernando aprecia particularmente o facto de o atletismo ser a única modalidade desportiva onde é possível um simples corredor do pelotão correr ao lado de um campeão olímpico.
Diz-nos que a corrida é uma “fábrica de amizades”, em que não há adversários mas companheiros “que umas vezes estão melhor que nós, outras somos nós que estamos melhor que eles (ou estão sempre melhor que nós). Mas vivemos muito bem com isso. E ficamos felizes por voltar para casa e esquecermo-nos de saber em que lugar, ficámos”.
“Na Meia Maratona de S. João das Lampas que faz 40 anos agora, o trabalho que dá organizá-la hoje não é, sequer, um quinto do que dava na 10ª edição!”
Diferenças abismais!
Correndo há 41 anos, Fernando conhece bem as diferenças entre as corridas de agora e as de então. “Se disser que o que há de comum entre elas é o acto de correr, não falho por muito”.
Enumera depois uma série de diferenças entre o antes e o agora:
– “Dantes, era preciso estar atento às provas que eram anunciadas ou esperar que surgisse o convite das organizações.
– Dantes, as provas eram gratuitas, pois havia o conceito de que, sendo os corredores a fazerem a festa, não tinham de pagar coisa nenhuma, recaindo as despesas por conta dos patrocínios que as organizações conseguissem. Mas depois – e aí começam as responsabilidades dos atletas – passou a haver abusos com o número de inscritos. Havia quem, por exemplo, inscrevesse 30 atletas, para aparecerem apenas 10, o que causava um trabalho e despesas desnecessárias às organizações. Havia que disciplinar isso. Quando se começou a pagar a taxa de inscrição, esse factor atenuou-se.
– As inscrições eram feitas pelo correio, com o cheque a acompanhar.
– Os tempos eram tirados manualmente; as listas de resultados eram feitas em “stencil” (o que é isso? Perguntarão os mais novos) para irem ao duplicador e serem distribuídas. – A internet veio revolucionar os procedimentos. As organizações passaram a não ter trabalho com isso, podendo orientar as atenções para outros aspectos que se prendiam mais com a qualidade dos seus eventos. No caso da Meia Maratona de S. João das Lampas que faz 40 anos agora, posso dizer que o trabalho que dá organizá-la hoje não é, sequer, um quinto do que dava na 10ª edição!”
Como bem organizar uma prova
Fernando não é apenas um atleta do pelotão. É “apenas” o organizador da segunda meia maratona mais antiga do país, logo a seguir à da Nazaré. Logo, é uma das pessoas mais indicadas para dizer como se deve organizar uma prova. Eis alguns dos seus conselhos:
– Tudo começa pela escolha de uma boa data, que não cause atropelos a outras provas que existam na vizinhança.
– A escolha de um bom percurso (com o mínimo de entroncamentos para se poupar no policiamento).
– Garantir o orçamento feito.
– Garantir a segurança dos atletas.
– Escolher um bom sistema informático.
– Criar um ambiente acolhedor.
41ª Meia Maratona S. João das Lampas no dia 9 deste mês
É já no dia 9 que se realiza a 41ª edição da Meia Maratona de S. João das Lampas. Não é fácil uma prova manter-se de pé durante tanto tempo, para mais com um percurso bem difícil, sendo conhecida por muitos pela Meia Maratona de S. João das Rampas.
A prova ganhou credibilidade por parte dos atletas, confiança por parte dos patrocinadores e carinho das populações. Foi ganhando raízes e consolidando os seus propósitos: levar a festa desportiva a diferentes localidades da Freguesia.
Fernando lembra o seu período áureo, com a presença de grandes atletas nacionais e internacionais. Mas a crise que assolou o país, levou à redução do orçamento e à extinção dos prémios monetários. Os “craques” passaram a primar pela ausência mas manteve-se a mesma atenção para com os atletas do pelotão que, na sua esmagadora maioria têm elogiado a prova. Para Fernando “enquanto pudermos, estaremos cá para dar o nosso melhor para não desapontar os que confiam em nós”.
Trilho das Lampas e uma “alma gémea”
Se a Meia Maratona é uma prova de sucesso, que dizer do Trilho das Lampas, uma espécie de meia maratona em versão de Trail? Claro, só pode ser mais uma prova de sucesso. Os resultados foram animadores logo na sua primeira edição, passando a fazer parte do Circuito Nacional da ATRP. Mais, a Organização teve de passar a limitar o número de inscritos para não prejudicar a prova.
Não satisfeito com as duas provas que organiza, o nosso entrevistado decidiu-se a criar uma “alma gémea” não competitiva : uma “Meia Noturna” em Novembro que já vai na nona edição e pela Páscoa, o “Ensaio do Trilho”. Ambas são gratuitas, feitas em treino, portanto, sem intuitos competitivos e que conseguem reunir cerca de duas centenas de participantes. Mais do que em muitas provas oficiais.
Engano no percurso que meteu negociação
Fernando deve ter milhentas estórias para contar. Aqui vai uma, passada na 20ª Meia Maratona de S. João das Lampas.
Alcídeo Costa vinha destacado ao Km 12,5, na passagem por S. João das Lampas. Mas alguém se enganou e mandou a mota da GNR seguir sem contornar o Largo conforme devia, atalhando cerca de 500 metros. Apercebendo-se disso, há um elemento da Organização que vai corrigir o erro e encaminha os restantes atletas pelo percurso certo. Mas havia o problema com o Alcídio, ia haver confusão com os perseguidores quando soubessem da falha.
Enquanto Fernando trocava impressões com os colegas, ouviu as inevitáveis “bocas” do público: “há 20 anos nisto e estes gajos nunca mais aprendem!”
Claro que ele ficou revoltado. “Ainda sem saber como é que haveria de solucionar o problema, agarro numa bicicleta e vou ao encontro do Alcídeo, que já vinha ao Km 19. Ele já se tinha apercebido que o tinham levado a encurtar caminho. Negoceio com ele e garanto-lhe o prémio, mesmo que não fosse o primeiro a chegar, mas deveria dar a volta que tinha ficado por dar. Iria atrás da bicicleta que eu levava. Assim fizemos. Conduzi-o até à meta. Felizmente, a margem que ele tinha do 2º era suficiente para que não houvesse confusão. Ele entra no pórtico e festeja. Só dali a bastante tempo é que entra o 2º, Delfim Conceição, que fez uma festa ainda maior. E eu respirei de alívio”.