Os constantes casos de doping no Quénia têm originado muitos artigos na imprensa internacional. O jornalista Marley Dickinson é o autor deste interessante artigo.
Se acompanha as provas de fundo nos últimos cinco anos, deve estar ciente do aumento de casos positivos de doping no Quénia, cujos atletas dominaram o cenário das principais maratonas durante quase três décadas. Desde 2000, o país conquistou um total de 30 títulos na Maratona de Boston e as performances notáveis dos recordistas mundiais da maratona, Eliud Kipchoge e Brigid Kosgei, colocaram o atletismo queniano na vanguarda das provas de fundo. Ainda assim, abaixo daqueles poucos no topo, há centenas de aspirantes talentosos a corredores fundistas da nação da África Oriental, dispostos a fazer o que for preciso para sobreviver.
Numa entrevista aprofundada à BBC, Brett Clothier, chefe da Unidade de Integridade do Atletismo (AIU) explicou que o Quénia enfrenta um problema único que a maioria dos países não enfrenta – a abundância de talentos que está a seguir ao nível de elite. “O problema é que existe uma enorme pirâmide de atletas de alto nível”, explicou Clothier. “A diferença de capacidade, naquela pirâmide, entre os de cima e os de baixo não é muita, por causa da profundidade do seu talento.”
Clothier acrescentou que, no passado, eles testaram o topo dessa pirâmide, ou seja, grandes maratonistas, campeões nacionais e atletas de campeonatos mundiais, mas os de baixo não foram submetidos a testes fora da competição. “Aquela pirâmide tem centenas, ou mesmo milhares de atletas. Então, mesmo que estejamos a controlar muito bem os que estão no topo, por causa da pressão dos atletas de baixo, que não estão a ser testados fora da competição, os atletas de cima estão a correr riscos, e há uma pressão para se manterem no topo.”
A atração de incentivos financeiros é uma importante força motriz por trás do doping no Quénia. As provas de estrada tendem a oferecer prémios monetários lucrativos e cachets de participação, atraindo uma grande classe profissional de corredores que veem potencialmente o doping como um meio de garantir uma vida melhor. A extensa pirâmide de atletas de primeira classe no Quénia cria pressão para o sucesso, mesmo para aqueles que ainda não foram submetidos a testes fora da competição. Clothier apontou que esses atletas não precisam de ir muito longe para encontrar doping para melhorar o desempenho. “Quando se tem este mercado ilícito, tem-se a oportunidade de as pessoas beneficiarem financeiramente do doping e de pessoas que têm a oportunidade financeira de vender o doping para melhorar o desempenho”, disse Clothier. “O que vemos é um mercado impulsionado pelo dinheiro e pela demanda.”
Há 165 quenianos que correram abaixo de 2h07m na maratona. Para colocar em perspetiva, apenas três norte-americanos realizaram o mesmo feito. A USADA, a agência de doping do país, recebe anualmente o apoio de grandes atores, incluindo o governo dos Estados Unidos e o Comité Olímpico e Paraolímpico dos EUA (USOPC), para ajudar a criar um ambiente desportivo seguro e testar regularmente os atletas.
O problema do Quénia é que ele ainda não tem financiamento ou recursos dentro da sua agência antidoping para enfrentar completamente o grupo maior abaixo daqueles no topo. A AIU e o governo queniano aumentaram o financiamento para a Agência Antidoping do Quénia (ADAK) em cinco milhões por ano nos próximos cinco anos. “O financiamento pode ser uma verdadeira viragem do jogo”, disse Clothier. “Nenhuma outra agência antidoping nacional está neste nível de testes na nossa modalidade”. No ano passado, os testes no Campeonato Nacional do Quénia aumentaram quase 400%, o que Clothier acredita ser uma grande melhoria.
O presidente da World Athletics, Sebastian Coe, apoia totalmente os esforços da Federação e do governo do Quénia para resolver o problema. Embora os fãs da corrida possam sentir-se desencorajados ao ver a queda de grandes vencedores de maratonas e medalhados em Campeonatos Mundiais que estão a fazer batota, Clothier insiste que cada caso representa um progresso em tornar o atletismo um desporto mais limpo. A luta do país contra o doping continua, mas o aumento de testes e o compromisso de resolver o problema, oferecem esperança de uma mudança real. Com Coe e Clothier apoiando os esforços para lidar com o doping no Quénia, há motivos para otimismo de que as iniciativas antidoping do país levarão a um ambiente atlético mais limpo e justo, beneficiando atletas limpos e preservando a integridade da modalidade.