Armando Aldegalega tem 81 anos e ainda corre, ganhando a muitos com idade para serem seus filhos e até netos! Em 1962, foi o primeiro português a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos disputados em Madrid. Esteve duas vezes em Jogos Olímpicos e em Campeonatos da Europa, sempre na maratona. Dono de um curriculum vastíssimo, é de uma enorme simplicidade e um exemplo para todos nós, um SENHOR como cidadão e atleta.
Aldegalega nasceu em Setúbal em 1937. Está naturalmente reformado mas não inativo. Depois de se retirar da alta competição, manteve-se ligado à modalidade como treinador adjunto de Bernardo Manuel (atualmente em Luanda). Treina ainda alguns atletas do Sporting e trata dos equipamentos do clube.
Quando o futuro de Aldegalega passava à porta de casa
O atletismo apareceu na sua vida de forma curiosa, aos18 anos de idade. Residia então em Setúbal e os corredores do Independente tinham por hábito passar a correr à sua porta. Um dia, Aldegalega ia a sair de casa para o trabalho e apanhou-os em mais um treino. Como iam todos para o mesmo lado, Aldegalega acompanhou-os à “civil”. Aguentou o andamento deles até ao fim e logo recebeu um convite para ingressar no clube.
Estreou-se na Légua Nacional onde foi segundo, não conseguindo apurar-se para a final em Lisboa. Mas a assistir à sua prova estavam o atleta Fernando Marques e o dirigente sportinguista António Pardal, que logo o convidaram a correr pelo clube leonino.
Aceitou mas como não sabia ler nem escrever, teve de tirar a 4ª classe para poder correr oficialmente. E até hoje, nunca mais parou.
Melhor maratonista nacional
Aldegalega venceu dez vezes a Maratona Nacional com 16 anos de intervalo entre a primeira em 1964 e a última em 1980, quando já tinha 47 anos! O seu recorde pessoal é de 2h20m01s, conseguido em 1971, no Campeonato da Europa de Helsínquia.
Foi ainda recordista nacional dos 10.000 m (30.31,2 em 1965), 15.000 m (1.21.41 em 1977), 20.000 m (1.03.56,5 em 1964), hora (18.780 m em 1964), 30.000 m (1.38.09,4 em 1971), todos na pista e da maratona por quatro vezes entre 1966 e 1971.
Porta-bandeira nos Jogos Olímpicos
O momento da carreira que mais o marcou foi a participação nos Jogos Olímpicos, na maratona. Esteve em Tóquio em 1964 (44º) e em Munique em 1972 (41º), onde teve a honra de ser o porta-estandarte da bandeira portuguesa.
Representou o país por 35 vezes. Esteve nos Campeonatos da Europa em Roma 1968 (25º) e Helsínquia 1971 (15º). Ainda no Cross das Nações e nos Jogos Pan-Americanos em Madrid, onde conseguiu a proeza de ser o primeiro português a ganhar uma medalha de ouro. Pode consultar o seu vastíssimo curriculum em:
“Treino conforme o corpo pede. Não faço séries cronometradas. Não me preocupo com o tempo”
Melhores marcas mundiais numa maratona na Bélgica mas com menos 1,8 km!
Já a prova que lhe deixou recordações mais amargas foi a Maratona Internacional da Bélgica, onde terminou com 2h13m. “Podia ter ganho mas fui terceiro, cheguei a andar isolado. A partir de certa altura, abrandava constantemente com medo de não conseguir o tempo que tinha como objetivo. Fui passado na parte final por um italiano e um tunisino”. Os três, obtiveram então as três melhores marcas mundiais, o que levantou naturais suspeitas. A distância foi novamente medida e tinha menos 1,8 km que os oficiais 42.195 metros. Claro que os tempos não foram validados.
“Agora, corro conforme o motor quer e não como o cérebro quer”
Da maratona aos 10 km como distância preferida
Atualmente, treina seis vezes por semana, cerca de uma hora, seguido de exercício físico como alongamentos. “Treino conforme o corpo pede. Não faço séries cronometradas. Não me preocupo com o tempo”.
A sua distância preferida passa agora pelos dez quilómetros e reduziu o número de provas em que participa, andando agora nas 10/12 por ano.
Nunca se entusiasmou pelos trails, limitando-se a participar uma vez numa prova de montanha na Costa da Caparica.
O motor é que manda, não o cérebro
Para quem já corre há 64 anos, perguntar a Aldegalega até quando pensa correr é uma pergunta desnecessária. A resposta só podia ser uma: Até quando puder. “Se a saúde ajudar e não tiver nenhum entrave nas pernas e adaptado à realidade. Conforme o motor querer e não como o cérebro quer”.
E se não tivesse escolhido o atletismo, qual seria a modalidade preferida de Aldegalega? O futebol, pois então. “Ainda cheguei a jogar em equipas populares nos torneios organizados pelo Vitória de Setúbal”.
O peso da idade na corrida
Em entrevista dada à Revista Atletismo (então em papel), em Dezembro de 2009, Aldegalega referiu o peso da idade em termos de corrida, especialmente depois dos 65 anos. Aos 60 anos, corria a Meia Maratona em 1.14/.1.15 e 12 anos depois, em1.30. E agora? “Começo a correr e não penso no tempo. Faço à volta de 1.50”. É um tempo ótimo para a idade.
“Os veteranos devem participar com prudência nas competições. Ganhar a nós próprios”
64ª Maratona aos 79 anos!
Há 15 anos que não corria uma maratona. Mas em 2017, a Luzia Dias e um amigo dela convenceram-no a correr mais uma, em Lisboa. As expetativas não eram muitas, Aldegalega pensou em correr os 42.195 metros num tempo à volta das cinco horas. E foi isso que fez. “Fiz duas horas à meia maratona e quase três na segunda parte. Podia ter feito menos tempo mas entusiasmei-me”. E a 65ª, está na calha? “Não devemos dizer nunca mais mas não está nas minhas previsões”.
Destaque em Mundiais e Europeus de Veteranos
Durante muitos anos, Aldegalega foi presença assídua em Mundiais e Europeus de Veteranos, registando a conquista de 46 medalhas. No Europeu de 1988 por exemplo, ganhou ouros nos 1.500, 5.000 e 10.000 m. Foi ainda campeão mundial de corta-mato em 1985 e bronze em 1989 e 1997.
Galardoado
Aldegalega foi várias vezes galardoado ao longo da sua vida. Entre outras, recebeu as Medalhas de Mérito Desportivo do Sporting e da Associação de Atletismo de Lisboa. Ainda as Medalhas de Honra de Setúbal e de Loures (onde reside). Foi também distinguido pelo Comité Olímpico Português.
Em 1972 e 1975, recebeu o troféu Francisco Lázaro. O prémio era atribuído ao atleta nacional que obtivesse maior número de vitórias durante um período de três anos.
Conselhos aos mais novos
Baseado na sua experiência, Aldegalega dá o seu conselho aos atletas mais novos: “Não se pode ter só talento. Há que ter vontade, aceitar os ensinamentos do técnico. Ter calma e dedicação, os resultados hão-de aparecer”.
E aos mais velhos
O número de veteranos nas provas populares vai crescendo. Se muitos correm apenas por prazer, outros ainda são muito competitivos. Para Aldegalega, “todas as pessoas devem poder fazer algo pelo seu corpo mas dentro das medidas do possível. Ter em atenção a assistência médica. Preparar o corpo e a mente, não exagerar a treinar”. Conselhos sábios de quem sabe do que fala. “Os veteranos devem ainda participar com prudência nas competições. Ganhar a nós próprios”.
“Os métodos de Moniz Pereira deram grandes resultados mas estagnámos no fundo. Fomos os melhores da Europa, estão a inventar um bocado”
Treinos de um maratonista no princípio dos anos sessenta
Nos anos sessenta, não havia profissionalismo no atletismo nacional, os atletas tinham de ter uma profissão. Moniz Pereira era o treinador de Aldegalega que treinava apenas uma vez por dia, cerca de hora e meia de corrida continua. “Saíamos do Estádio de Alvalade e íamos pela Segunda Circular até Monsanto e depois regressávamos. Ao domingo, um treino longo de 2 a 2.30 horas. Como competia em corta-mato e 10.000 metros, fazíamos o treino de pista tradicional para essa distância como o intervalado.”
“É uma saudável alegria ver tanta gente a participar”
Estão a falhar os métodos de treino
Para Aldegalega, a crise que se vive há alguns anos no fundo nacional tem muito a ver com os atuais métodos de treino. “Os métodos de Moniz Pereira deram grandes resultados mas estagnámos no fundo. Fomos os melhores da Europa, estão a inventar um bocado. Agora, tentam inventar com computadores, com bicicletas à frente dos atletas… Não sou contra a moderna tecnologia mas agora, não tem resultado. Devia-se voltar aquando deu resultados, aos tempos de Moniz Pereira e Bernardo Manuel”
Atletas que deixam de correr após abandonarem a alta competição
A esmagadora maioria dos atletas de alta competição abandona a modalidade quando se retira. Claro que há exceções mas são em número reduzido. Para o nosso entrevistado que deixou a alta competição aos 40 anos, “para manter uma preparação física e mente saudável, eles deviam continuar, adaptados à nova situação. Falta-lhes os ganhos como incentivo. Alguns até criticam quem continua a correr!”.
“Prefiro morrer de pé do que morrer deitado!”
Importância das corridas de 10 km
No mundo das corridas, Aldegalega aprecia particularmente a participação popular. “É uma saudável alegria ver tanta gente a participar. As corridas de 10 km têm dado um grande contributo para que a população se dedique à modalidade. Correr é saudável”.
Quanto a sugestões para uma melhor organização das provas, Aldegalega lembrou a grande evolução havida, desde os seus tempos de jovem. “Há sempre fatores que se podem melhorar, a moderna tecnologia ajuda muito. Estamos no bom caminho”.
Raramente visitado pelas lesões
Ao longo de uma extensa carreira, Aldegalega raramente foi visitado pelas lesões. “Apenas pequenas coisas”. Não dispensa os exames médicos de rotina e quanto à alimentação, nunca teve uma grande preocupação com a mesma. “Mas quando tinha uma competição importante, tinha muito cuidado com o estado físico, com aquilo que comia uns dias antes”.
Quando ia atrás do Carlos Lopes e pediram-lhe para ir à frente ajudá-lo!
Estórias devem ser milhentas. Uma dela passou-se na Volta a Paranhos, no Porto. Aldegalega, então já com 30 e muitos anos, ia num segundo grupo, atrás de Carlos Lopes, então um jovem, que ia no primeiro grupo. Até que um espetador lhe pediu: “Armando, vai lá à frente ajudar o Lopes”. Ao que Aldegalega logo lhe respondeu: “Vai lá é dizer-lhe para me vir ajudar!”.
Ciclistas que não levavam bicicleta
Outra estória passou-se no longínquo 1964, num dos treinos de fim de semana orientados por Moniz Pereira. “Íamos para a Praia Grande, em Sintra. O grupo das distâncias longas treinava até Sintra e quando íamos a passar por Colares, ouvimos uma senhora perguntar: ‘Então os ciclistas agora não trazem bicicleta?”.
Antes morrer de pé
Numa das muitas provas em que participou, Aldegalega foi mimoseado com um comentário nada simpático de um rapaz que ia de bicicleta: “Oh Armando, ainda hás-de morrer a fazer a maratona!”. Claro que não ficou sem resposta: “Prefiro morrer de pé do que morrer deitado!”.
Quando desfaleceu no final de uma Meia Maratona
Esta estória foi menos agradável e passou-se na Meia Maratona da Moita. Aldegalega tinha tido uma semana muito cansativa e aos 12 km, ainda pensou em desistir. Cortou a meta e desmaiou. Apesar de ter recuperado logo, deixou os presentes muito alarmados. Foi ao hospital, fez uma série de exames mas estava tudo bem. “As pessoas pensavam que eu nunca teria problemas desses. Mas claro, eu sou como os outros, também os tenho. Isso pode acontecer a qualquer um”.
A terminar, lembrou uma frase antiga de outro veterano já falecido, António Ruivo. “Se o Estado gastar dois mil contos (dez mil euros atuais) com os veteranos, vem depois a ganhar dinheiro pois eles deixam de ir aos hospitais, tomar medicamentos, melhoram a saúde”.
Foi um prazer entrevistar Armando Aldegalega. Dono de um curriculum vastíssimo, é de uma enorme simplicidade e um exemplo para todos nós, um SENHOR como cidadão e atleta.