A impressionante medalha de ouro nos 1500 metros de Kip Keino nos JO do México de 1968 estimulou uma grande expansão da corrida no Quénia, desafiou as perceções sobre a raça e inspirou uma geração ao redor do mundo
Corria 6 km descalço de manhã e outros 6 à tarde, até à escola
Kipchoge Keino nasceu em 1940, em Kipsamo, nas colinas Nandi, no oeste do Quénia. Os seus pais morreram quando ele era muito jovem e foi criado pela sua tia.
Como muitas crianças na zona rural do Quénia, tinha que ir a correr para a escola primária. “Corria descalço, seis quilómetros até a escola pela manhã”, disse ele uma vez. “Então, eu corria de regresso a casa para o almoço, novamente para a escola da tarde e voltava no final do dia. Fiz isso todos os dias até sair da escola”.
Quando não estava a correr para a escola e a regressar, Keino era enviado muitas vezes para pastorear as cabras da família, o que poderia envolver trote atrás delas durante horas a fio. Toda essa atividade física, feita com os pés descalços e em grandes altitudes, foi a base para uma carreira como corredor de longa distância.
Na polícia queniana
No início dos anos 1960, o atletismo ainda era uma modalidade puramente amadora. Então, não era fácil a um adolescente pobre dedicar-se às corridas. Após terminar a escola, Keino tornou-se instrutor de treino físico na polícia queniana, onde os seus dotes de corredor foram logo notados. Ele passou a fazer parte da equipa de corrida da polícia. O desporto da Interforces era – e ainda é – levado muito a sério no país, então ele teve licença para treinar, especialmente desde que começou a vencer provas.
O seu primeiro grande sucesso foi quando fez parte da equipa queniana para os Jogos da Commonwealth de 1962 na Austrália, onde ficou em 11º lugar na corrida das três milhas. Classificou-se então para os JO de 1964 em Tóquio, onde foi quinto na final dos 5000 m, mas não conseguiu chegar à final dos 1500 m.
Recordista mundial dos 3.000 e 5.000 metros
Plenamente estabelecido agora como atleta internacional, Keino bateu em 27 de Agosto de 1965, o recorde mundial dos 3000 m em mais de seis segundos, na sua primeira tentativa naquela distância. Ainda naquele ano, ele bateu o recorde mundial dos 5000 m, que pertencia ao lendário Ron Clarke.
Nos Jogos Olímpicos do México 1968
Kip Keino, estava na frente da final dos 10.000 m nos Jogos Olímpicos do México 1968, quando, a poucas voltas do fim, sentiu uma grande dor na lateral do corpo e desmaiou na pista. Quando os maqueiros vieram buscá-lo, ele insistiu em levantar-se e dar as últimas voltas. O seu compatriota Naftali Temu venceu a prova, conquistando a primeira medalha de ouro olímpica do Quénia.
Quatro dias depois, Keino voltou à pista na final dos 5000 m e, apesar da recorrência das dores abdominais, conseguiu ganhar a medalha de prata, com Temu a conquistar o bronze. Tinha começado o ataque queniano às medalhas olímpicas, mas o que aconteceu a seguir mudou tudo.
Keino não ficou satisfeito com a sua medalha de prata. Ele sentiu que era seu dever, como um dos melhores corredores do seu país, a trazer uma de ouro para casa. Três dias depois dos 5000 m, na manhã da final dos 1500 m, para a qual também se tinha classificado, Keino ainda sentia dores de estômago. Ele foi visitado na cama por um médico, que lhe disse que ele tinha um problema sério de vesícula biliar e aconselhou-o fortemente a não correr. Keino respondeu ao médico: ” Vou correr os 1500 m. É um evento muito curto, então deixe-me correr”.
Correr a final dos 1.500 metros contra a opinião do médico
O médico mandou Keino ficar retido na cama e dormir. Mas quando o médico saiu, ele equipou-se e foi apanhar um autocarro para o estádio. No entanto, no caminho, o autocarro ficou preso no trânsito. “Percebi que estava atrasado”, disse Keino. “Então, eu saí do autocarro e corri o caminho todo, algo como dois quilómetros, até ao estádio”. Quando ele entrou no estádio, já estavam a chamar os corredores para a final dos 1500 m.
Um dos finalistas era o norte-americano Jim Ryun, recordista mundial da distância com 3m33s. Ele era o grande favorito para a medalha de ouro, invicto há mais de três anos, e com 47 vitórias consecutivas nos 1500 m e na milha. Desconfiado do impacto da grande altitude da Cidade do México, Ryun calculou que um tempo de 3m39s seria o suficiente vencer. Ele devia saber que Keino era uma ameaça, mesmo que o mundo exterior o estivesse ignorando.
Dado o tiro de partida, o jovem queniano Ben Jipcho disparou num ritmo feroz, com Ryun a deixá-lo ir.
Jipcho correu a primeira volta em 56 segundos, bem dentro do ritmo do recorde mundial. Com Keino colocado no terceiro lugar, o comentador da BBC, David Coleman, observava: “Os quenianos estão a tentar fazer valer a altitude e acabar com Jim Ryun”.
Pode muito bem ter sido esse o plano, embora Keino se lembre que viu que o ritmo estava difícil e decidiu ir.
Não há dúvida de que a altitude no México desempenhou um papel no sucesso de Keino (e do Quénia) em 1968. Com a maioria dos atletas quenianos a virem da região de alta altitude do Vale do Rift, eles já estavam adaptados às condições, o que não acontecia com os norte- americanos e europeus. “Parece a África”, disse Temu sobre as condições na Cidade do México.
A duas voltas do final, Keino passou a liderar, atingindo os 800 m em 1m55s, fazendo Coleman balbuciar no seu microfone que o ritmo era ‘quase suicida’. Ryun, entretanto, estava mantendo o seu plano e ia afastado do grupo líder, no oitavo lugar.
Todos esperaram que Keino cedesse sob o sol escaldante da tarde, mas o seu ritmo permaneceu implacável e, quando chegou aos 200 m finais, ainda estava bem fresco. Cortou a meta com um novo recorde olímpico de 3.34,91, conquistando a medalha de ouro com quase três segundos de avanço, no que ainda é a maior margem de vitória na história da distância. Jim Ryun foi segundo.
Na época, pensava-se que a corrida de longa distância era mais adequada aos corredores brancos
Para o grande público da época, os corredores da África Oriental não eram considerados competidores sérios para as longas distâncias. Embora o etíope Abebe Bikila tenha vencido a maratona em 1960 (famosa corrida em que correu descalço) e 1964, o Quénia só tinha ganho uma medalha de bronze, nos 800 m em Tóquio, em 1964. Então, acreditava-se que a corrida de longa distância era mais cerebral e, portanto, mais adequada para os corredores brancos supostamente mais “sofisticados” da Europa e da América.
Em 1968 no México, a loucura de tal pensamento estava-se manifestando corrida após corrida – os corredores quenianos conquistaram oito medalhas nos Jogos, incluindo três medalhas de ouro – mas nenhuma teve mais impacto no desporto do que a final dos 1500 m.
Depois de Keino, as coisas mudaram rapidamente. Nos Jogos Olímpicos seguintes, em Munique 1972, os quenianos conquistaram mais seis medalhas, com Keino de volta para ganhar a prata nos 1500 m e um ouro inesperado nos 3.000 m obstáculos, evento que ele mal havia disputado antes. Ele entrou na prova apenas porque a final dos 5000 m chocava com os 1500 m.
“Não tinha experiência (em corridas de obstáculos)”, disse ele depois. “Eu não tinha treinado saltar, então na maioria das vezes, eu pisava em cada obstáculo”. Todos os 23 outros competidores na final tinham melhores recordes pessoais do que ele, bem como melhor técnica nos obstáculos, mas ele acabou por vencer com um novo recorde olímpico.
Legado de Keino
Keino já está há muito retirado da corrida e montou uma escola, um campo de treino para os futuros atletas e um orfanato – tudo o que ele dirige até hoje.
O maior legado de Keino foi inspirar e incutir fé numa geração de corredores mais perto de casa. O domínio queniano da corrida de longa distância, ao lado da Etiópia, pode em grande parte ser rastreado até aquela tarde na Cidade do México, quando um corredor de uma vila na África chocou o mundo.
Quem passar algum tempo no Quénia e perguntar aos corredores quem mais os inspiraram a dedicarem-se à corrida, ainda ouvirá o nome Kip Keino repetido várias vezes. “Kip Keino é o pai da corrida queniana”, dizem muitos dos atuais corredores quenianos.
É o caso por exemplo de Simon Biwott. O vencedor da Maratona de Berlim de 2000 (em 2h07m42s) e medalhado de prata da Maratona no Campeonato Mundial de 2001 em Edmonton, credita a Keino o seu interesse em correr. “Quando eu estava na escola primária, não sabíamos muito sobre atletismo”, afirmou Biwott. “Mas sabíamos sobre Kip Keino. Na nossa aldeia, as meninas cantavam sobre Kip Keino, então sabíamos o nome dele. Não sabíamos bem o que era, mas pensámos que este atletismo devia ser um negócio sério”.
“Kip Keino deixou para trás não apenas um legado na corrida queniana, mas na África e no mundo desportivo”, disse o irlandês Colm O’Connell, um dos treinadores de maior sucesso na história do Quénia, que viveu e treinou em Iten , no Vale do Rift, desde 1976. “Ele colocou um marcador na corrida da meia distância, uma área que pode ter sido considerada uma prerrogativa do mundo ocidental na época. Ele desempenhou um papel importante em colocar a nação independente recém-estabelecida do Quénia no mapa”.