A conceituada revista brasileira “Contra-Relógio” vem publicando uma série de artigos recordando o passado na modalidade, artigos esses integrados na comemoração do seu 25º aniversário.
Num desses artigos, Tomaz Lourenço recordou como eram as corridas nos anos 90. Com algumas semelhanças com a realidade portuguesa, talvez mais nos anos 80, aqui deixamos o seu relato. A situação alterou-se radicalmente no nosso país e hoje, as nossas organizações são quase sempre exemplares.
“Para os corredores atuais das nossas mais diversas provas, é até difícil explicar como era a realidade de 25 anos atrás, quando a Contra-Relógio surgiu. Mas vamos dar umas breves lembranças e alguns factos concretos que mostrarão o que os participantes enfrentavam nas tais corridas pedestres na última década do século passado.
Como precisava divulgar o lançamento da CR e angariar assinantes (a revista só foi para bancas em julho de 2004), íamos (eu e Cecília) praticamente todos os domingos a uma prova, na Grande São Paulo, interior ou litoral, mais raramente noutros estados. As diferenças não eram muito grandes entre elas, ou melhor, eram bem parecidas na desorganização e falta de respeito para com os corredores.
Para começar, com raras exceções, as inscrições eram feitas na hora e geralmente de graça. Dessa forma, o horário da partida anunciado nunca era cumprido, além das anotações dos inscritos serem uma total bagunça, o que resultaria depois numa grande confusão na hora dos prémios dos escalões etários, detalhe quase obrigatório nas provas, cerimónia que se alongava muito depois da corrida ter acabado.
O facto das inscrições serem quase sempre de graça fazia com que os “organizadores” (é quase uma força de expressão, pois o que imperava era certo caos) não assumissem responsabilidade sobre o evento e suas falhas. E acabava valendo a regra de que ao nada pagar para correr, também nenhum direito, tinham os corredores para reclamar. Era quase um favor que era feito a eles.
Em muitas provas a partida/chegada era perto de ginásio ou imóvel público, então a questão dos wc’s (poucos e mal cuidados) era menos grave, mas geralmente era cada um para si… Esse detalhe acabou tornando-se uma bandeira da revista, a ponto dos corredores brincarem que este editor tinha fixação por wc’s. Um exemplo é definitivo desse desleixo e tratamento desrespeitoso com os participantes. Quando corri a minha primeira (e única) São Silvestre, em 1991, fiquei abismado ao descobrir que a organização tinha disponibilizado somente uma dezena de toscos wc’s na Avenida Paulista, para os quase 5 mil participantes. E as mulheres precisavam ser muito corajosas para entrar nas corridas brasileiras, não representando por acaso mais de 5 a 10% dos inscritos. Mesmo na S. Silvestre, que já era uma prova bem popular, elas foram 370 na edição de 1993, enquanto os homens totalizaram 4.915. Outro exemplo: na Volta ao Cristo de 1994, em Poços de Caldas, completaram 385 homens e apenas 26 mulheres!
Muito excecionalmente, havia uma ambulância no local, mas, quando havia, nada de médico dentro. Aliás, diversas foram as situações em que vi a ambulância sendo usada como “batedor” na frente da prova, com a sirene devidamente ligada. E isso por vezes era o máximo que se fazia em relação ao trânsito, que apenas em pouquíssimos eventos tinham as ruas bloqueadas aos carros.
Outro tópico que me chamou a atenção e que considerava inaceitável, eram as filas ANTES da meta. Isso mesmo, ANTES! As provas usavam para apuração, o recebimento de uma senha com o número da pessoa, entregues na linha final e colocadas num espeto, processo que tinha a sua lentidão e a fila se formava… Algumas até tentavam tirar o tempo, com uma pessoa clicando um aparelho/relógio específico, mas que só tinha utilidade se a passagem pela meta acontecesse, correndo.
Simples mas organizadas
Entre as boas corridas no Brasil nos anos 90, podemos destacar uma dezena delas, como a da Usina Ester, em Cosmópolis, em que os participantes faziam voltas por estradas de terra de um canavial. Também a da Metal Leve na capital paulista, a da EPTV em Campinas, as de Apucarana e Cornélio Procópio, a dos Fuzileiros Navais no Rio, sem contas as provinhas corretas da Corpore no Parque Ibirapuera.
Mesmo as maratonas eram bastante fracas, com falhas diversas, incluídas aqui as de Brasília, Blumenau, Porto Alegre e Rio, inclusive sem rigor na aferição da distância do percurso.
O que havia em comum entre as boas e as más corridas era os prémios em dinheiro, que estava sempre presente para os primeiros colocados da geral e também para os escalões etários, em muitos casos. Para os organizadores da época, esse detalhe acabava sendo uma preocupação muito grande porque tinham quase que obrigatoriamente garantir esses prémios, caso contrário a participação seria pequena.
Por outro lado, não contavam com apoios ou patrocínios e o pouco dinheiro que entrava vinha das inscrições, por sua vez muito baratas. Para os prémios, era destinada metade do arrecadado ou mais. É verdade que gastavam quase nada com o resto, na medida em que poucas davam medalhas de participação, camisola idem, água sim ou não e por aí seguia.
Naturalmente que os pagamentos atraíam corredores rápidos da elite e dos escalões (os tempos finais daquela época eram bem melhores que os atuais), mas também os “cortadores de caminho”, mas isso é outra história…