David Faustino descobriu em 2000 que qualquer pessoa podia correr a maratona através de um programa que viu num canal desportivo alemão. Vinte anos depois, já correu 45 maratonas e 149 ultramaratonas, quase sempre na companhia da sua esposa, Isabel Moleiro. Cem milhas é a sua distância preferida. Já correram em todos os continentes menos na Oceânia.
David Faustino é aos 55 anos, um dos corredores mais conhecidos do ultratrail nacional. Nascido em Creteil, arredores de Paris, é engenheiro químico e descobriu o mundo das corridas em 2000, de uma forma bem curiosa. Estava de férias no Algarve quando viu um programa no canal alemão desportivo DSF sobre donas de casa que conseguiam correr uma maratona. Faustino era então um cidadão totalmente sedentário e com excesso de peso, mais de 90 quilos. “Eu não sabia que as maratonas estavam abertas aos corredores populares. Abriu-se-me uma janela! Uma pessoa normal poder correr uma maratona? Descobri que pessoas comuns podiam correr!”
Regressado do Algarve, Faustino comprou pela primeira vez na sua vida, uns ténis de corrida mas depois, não sabia onde treinar. Residindo em Lisboa, não se lembrava de ter visto alguém a correr na rua. Falaram-lhe do Estádio Universitário e do Jamor mas não se via a correr num estádio. Acabou por ir para a zona das docas e aproveitava para o fazer nos fins de semana passados em S. Martinho do Porto, onde tem uma casa.
“A corrida é um contraponto à nossa vida do dia a dia, uma forma de nos libertarmos”
Seis anos apenas a treinar até à primeira corrida
Durante seis anos, apenas treinou. A sua estreia nas provas populares foi na Corrida do Tejo em 2006. Até então, tinha treinado sempre sozinho. “Fiquei grato por ter tido a oportunidade de correr, poder ver outras pessoas como eu a correr. E admirado por não ser o último, terminei em 53 minutos. Houve um deslumbramento, abriu-se-me um mundo novo.”
Atualmente, corre umas 30 provas por ano em representação dos Serviços Sociais da CGD. Treina dia sim, dia não e nunca teve um treinador. Elabora o seu plano de treinos sempre que tem um objetivo específico a cumprir, particularmente em ultradistâncias, e na transição do trail para a estrada. Consegue conciliar facilmente a corrida com o trabalho e a família, até porque a sua esposa Isabel Moleiro, também é ultramaratonista. “Nunca deixei de trabalhar para correr e o inverso também”.
“Se não formos levados ao extremo, não sabemos os nossos limites”
PT281 Ultramarathon, a sua prova preferida
A sua distância preferida são as 100 milhas (160,9 km). “Mais do que isso, já tem muita logística”. E como surgiu o gosto pelas ultradistâncias? “Descobri a longa distância porque tinha coisas que não encontrava na velocidade”.
A sua prova preferida é a PT281 Ultramarathon, disputada entre Belmonte e Proença-a-Nova, na distância de 281 km. Este ano, a prova disputou-se em plena pandemia, em 23 de Julho. Faustino tinha como objetivo chegar no mesmo dia do vencedor. Conseguiu tal desiderato por sete minutos ao ser 13º da geral com 53h53m. “Nunca dormi durante a prova, cheguei relativamente bem. Aprendi com as outras vezes que lá fui”. E acrescenta: “Gosto do local da prova e do seu formato, todos os anos tenho feito menos tempo. É das poucas provas onde ainda aprendo coisas. Todos os anos, trago muito mais coisas do que as que lá deixo. Venho de lá a conhecer-me melhor, com uma autoconfiança maior”. E completa: “Se não formos levados ao extremo, não sabemos os nossos limites”.
Já quando à prova que menos lhe agradou, não refere uma em particular. Mas sabe bem aquilo que não lhe agrada nos trails: “Não gostei de provas onde senti que tinha dificuldades desnecessárias. Por exemplo, para quê atravessar um rio com água pela cintura com pedras soltas, muito escorregadias e propícias a quedas, se podíamos ir pela ponte que estava mesmo ali? E depois, temos à saída do rio um fotógrafo! Devia sim estar um bombeiro para acudir no que fosse preciso”.
“A corrida é um contraponto à nossa vida do dia a dia, uma forma de nos libertarmos”
45 Maratonas e 149 Ultramaratonas!
Faustino já correu 45 maratonas, tendo-se estreado na Maratona dos Descobrimentos, em 2008. “Foi uma experiência boa, tinha o objetivo de fazer 3h30m e fiz 3h23m. Foi decente o tempo”. Quanto a ultramaratonas, já correu 149. A distância maior percorrida foram os 281 km da PT281.
Como é evidente, para poder terminar estas ultradistâncias, há que fazer treinos longos. Eis apenas alguns dos muitos que ele e Isabel Moleiro já fizeram:
– De Torres Vedras a S. Martinho do Porto, 65 Km em 8 horas; Noutra ocasião, foram numa sexta-feira à noite de Lisboa até Vila Franca de Xira (43,5 km em 5h24m) e no dia seguinte, de Vila Franca até ao Cadaval, via Montejunto (45 km em 7h30m). Estes tempos incluíram as paragens efetuadas durante os percursos, que foram realizados em autosuficiência.
Do Ultra Trail Mont Blanc ao Nepal
Faustino e Isabel Moleiro já correram em todos os continentes menos na Oceânia. No Nepal por exemplo, estiveram em 2016, tendo participado numa prova nos Himalaias com 7 etapas, num total de 190 km e 13.400 m de desnível positivo acumulado e a mais de 5.000 m de altitude. Claro que foi uma experiência única, com direito a um filme de 46m28s feito quando corria e que está disponível no site da revista.
Agora durante a pandemia, puderam treinar mais do que o habitual porque quase não tem havido provas. Ainda assim, participaram em quatro. A PT281 (Faustino foi 13º e Isabel 3ª); as 24 horas na pista em Villenave d’Ornon, região de Bordéus (Faustino foi 7º com 190,666 km e Isabel venceu em femininos com 179,171 km), as 12 h da #Beactive no Jamor (Faustino foi 2º com 100 km em 11h30m25s e Isabel 3ª com mais 2 minutos) e o Ultratrail do EstrelAçor. Aqui, fizeram 140 km, tendo sido barrados pela Organização, que suspendeu a prova na Torre devido às condições meteorológicas.
Momento da carreira desportiva mais marcante
Faustino deu-nos uma resposta curiosa e diferente do habitual. Para si, o momento mais marcante da sua carreira desportiva está no dia em que comprou os ténis de corrida. “Foi aí que dei o impulso, que começou tudo o resto”. E utilizou um provérbio chinês: “Uma caminhada de 100 km inicia-se com o primeiro passo”.
“A corrida está incorporada nos hábitos de vida das pessoas…É um fenómeno que veio para ficar”
Saber gerir as corridas para evitar as lesões
Pensa correr enquanto puder e não dispensa os exames médicos de rotina. Quanto a lesões e apesar de tantas maratonas e ultras no seu curriculum, tem “um historial tranquilo”. A explicação é simples: “A minha forma de encarar as corridas permite-me uma abordagem conservadora, gerir de forma razoável a distância”. Antes de chegar a um abastecimento, já visualizou tudo o que vai fazer, o que tem na mochila e vai ou não tirar. E assim, perde menos tempo do que muitos concorrentes.
Tem os cuidados elementares com a alimentação e se não estivesse no atletismo, teria optado pelo ciclismo e canoagem.
No mundo das corridas, Faustino aprecia o facto de elas serem um assunto frequente de conversa, um outro ponto de interesse para além dos tradicionais. “A corrida é um contraponto à nossa vida do dia a dia, uma forma de nos libertarmos. Termos uma liberdade que não temos de outra forma”.
Na sua opinião, as grandes diferenças entre as provas de estrada e o trail encontram-se no uso do cronómetro. “Na estrada, o tempo mede-se em minutos e segundos. No trail, em horas. O ritmo é outro”.
Mais gente a correr mas sem se refletir no nível dos resultados
Vê com pessimismo o futuro do atletismo, a nível de resultados. “Não é muito brilhante a nível da alta competição. Tem havido um crescimento brutal nas bases mas sem aplicação na vertente dos resultados”. Mas mostra-se otimista no que respeita ao atletismo popular. “A nível popular, a corrida está incorporada nos hábitos de vida das pessoas, como ocupar o seu tempo. É um fenómeno que veio para ficar”.
Quanto a sugestões aos organizadores de provas, não tem dúvidas: “Terem coragem de fazer coisas diferentes. Faz-me muito do mesmo, há a tendência para copiar o que faz o vizinho do lado, exemplo dos trails muito técnicos”.
“Como era possível antes não ter gostado disto? Na minha vida, houve um antes e um depois”
Melhor cidadão a nível físico e psíquico
Faustino sente-se naturalmente muito melhor fisicamente desde que começou a correr. A nível psíquico, é preciso entender “a mente sã em corpo são”. “Sentimos coisas boas depois do esforço de correr. Faz parte da natureza do ser humano não contrariar demasiado o lado animal que ainda temos. A corrida permite libertar esses impulsos”.
Passados 20 anos, Faustino acha curioso, alguém que viveu tantos anos sem qualquer interesse na prática da corrida, passar a ter tanto interesse. “À priori, não tinha interesse, hoje não prescindo disto”. E complementa: “Comecei a correr porque quis desafiar-me. Tanto tempo depois, tento manter o mesmo impulso. Como era possível antes não ter gostado disto? Na minha vida, houve um antes e um depois”. Como é fácil de deduzir, as suas férias são frequentemente marcadas em função das provas.
Não tem um ídolo na modalidade mas tem uma admiração especial pelo grego Yannis Kouros, dono de vários recordes mundiais de longa distância como as 24 horas em pista, falhada a recente tentativa do catalão Kilian Jornet..
“Correr deve ser um divertimento, não se esqueçam de ser felizes na corrida”
Saber ser feliz na corrida
A terminar, Faustino deixa um conselho aos atletas do pelotão: “Nunca esqueçam a vossa condição. Correr deve ser um divertimento, não se esqueçam de ser felizes na corrida. Tirem o máximo potencial de prazer. Cuidado com os níveis de competitividade, são um bocado tóxico”.
Foi um prazer entrevistar David Faustino. Mais do que uma entrevista, foi um bate papo entre dois apaixonados pela corrida (com ele a falar muito mais e nós a ouvi-lo atentamente) que demorou 3h20m (!), mais do que o nosso recorde pessoal à maratona, que é curiosamente o mesmo tempo – 3h11m. Seria bom se tivéssemos muitos Davides Faustinos no pelotão popular.
Vídeo Ultramaratona de David Faustino e Isabel Moleiro nos Himalaias
Os ultramaratonistas David Faustino e a sua esposa Isabel Moleiro participaram em 2016, numa prova nos Himalaias, Nepal, com 7 etapas num total de 190 km e 13.400 metros de desnível positivo acumulado e a mais de 5.000 metros de altitude.
Faustino levou uma câmara de filmar consigo (na cabeça, onde costumamos levar o frontal em provas noturnas) e filmou a prova. São 46m28s muito interessantes para quem aprecia a natureza, as altas montanhas dos Himalaias, onde é possível apreciar a elevada dificuldade dos percursos e como vivem as populações locais que vão surgindo aqui e ali.