O jornal A Bola publicou no seu site um extenso artigo de António Sousa, ex-técnico do meio fundo e fundo da Federação Portuguesa de Atletismo.
Nele, António Sousa aborda várias questões ligadas à modalidade como a importância dos grupos de treino, o que foi feito e falta fazer, a utilização do CAR do Jamor, a ameaça da naturalização massiva, a ausência da prática desportiva nas crianças, o quadro competitivo, as fragilidades do DTN e a falta de dirigentes com qualificações para o Alto Rendimento, o nulo papel exercido pela Associação Portuguesa de Organizadores de Provas de Estrada (APOPA) e as candidaturas à futura presidência da Federação.
Com a devida autorização de António Sousa, publicamos seguidamente o seu artigo na íntegra.
«Com as mesmas condições de treino seremos tão bons ou melhores que eles»
A profecia do professor Mário Moniz Pereira, proferida há quase 50 anos, mantém-se atual * As questões socioeconómicas * Os grupos de treino e os estágios nacionais
Há muitos anos, 1975, um Senhor conseguiu convencer os decisores políticos de então com uma frase que resumia toda a sua convicção na qualidade do seu trabalho e do valor dos atletas portugueses: «Com as mesmas condições seremos tão bons ou melhores que eles». E a história deu-lhe razão. Eu, não me querendo comparar de forma alguma ao grande Mestre Mário Moniz Pereira, tenho também a convicção de que, se os nossos atletas treinarem mais e melhor que os outros, serão tão bons ou melhores que eles.
A sociedade de hoje está muito longe daquela que existia há anos, tendo havido uma melhoria significativa nas condições de vida da população portuguesa, em comparação com os anos 70, 80 e 90. A expectativa de vida da maioria dos nossos jovens é hoje muito diferente da que se verificava nas últimas décadas do século passado: famílias muito numerosas, com rendimentos muito baixos, entre outros aspetos sócio culturais, levaram muitos dos nossos jovens a abandonar precocemente os estudos para ingressarem no mercado de trabalho. Oficinas, fábricas, construção civil e agricultura foram o início da vida laboral de muitos dos nossos atletas, antes de cumprirem o serviço militar obrigatório.
Confrontados com a escolha entre uma destas atividades profissionais e a prática do atletismo associada a uma profissão menos exigente fisicamente, e melhor remunerada (nos anos 70, por exemplo, trabalhos administrativos), e posteriormente com a escolha de uma destas profissões, onde a qualquer altura poderiam fazer um interregno, regressando mais tarde sem prejuízo na carreira, e a possibilidade de se dedicarem exclusivamente ao atletismo, usufruindo de uma compensação remuneratória superior ao salário que usufruíam enquanto trabalhadores, os atletas não tinham grande dificuldade na escolha que faziam, até porque nada tinham a perder, muito pelo contrário.
Este não é o cenário com que se confrontam, felizmente, os nossos jovens de hoje. O serviço militar deixou de ser obrigatório, com vários prós e contras, e a escolaridade obrigatória passou para os 18 anos de idade. A falta de empenhamento académico condiciona o sucesso laboral. As opções a favor da prática desportiva de alto rendimento adiam a entrada no mercado de trabalho e, consequentemente, uma melhor progressão na carreira laboral, onde, se tudo correr bem, os atletas vão passar uma parte significativa das suas vidas.Ou seja, comparativamente, as escolhas que os nossos atletas têm hoje de fazer são bastante diferentes daquelas que se faziam há décadas: se nos anos 70, 80 e 90 a escolha passava por ser pedreiro, hoje passa por ser engenheiro!
Se no século passado a noção de uma carreira desportiva longa poderia, em alguns casos, ser aliciante, hoje não faz qualquer sentido. O jovem deve conciliar a sua prática desportiva com as atividades académicas, existindo bastantes casos de jovens com muito sucesso nas duas vertentes, inclusive médicos, que após terminarem os estudos – salvo raras exceções, em que o sucesso desportivo foi realmente excecional -, utilizaram/utilizam as ferramentas que o Alto Rendimento ‘lhes deu’, como a resiliência, a perseverança, o empenhamento, a disciplina, a capacidade de conquista de grandes objetivos, entre outras, para tentarem ser tão bons ou melhores na sua profissão. Ser ‘apenas”’ atleta, por maior que tenha sido o sucesso – e temos vários exemplos -, é passar a maior parte da vida a ter sido!
Em países como o Quénia – onde estive recentemente e me fez lembrar Portugal nos anos 70 e 80 – Etiópia, Somália ou Uganda, por exemplo, as características da sociedade e as oportunidades que se colocam aqueles jovens são semelhantes às dos nossos jovens no século passado, acrescentando um fator muito importante que é o reconhecimento social e económico do sucesso desportivo. Entre guardar gado e/ou trabalhar o campo, desde o nascer até ao pôr do sol, ou treinar afincadamente com a expectativa de ganhar muito dinheiro a correr pelo mundo, a escolha é obvia, e a motivação é sempre muito elevada dia após dia, ano após ano. Se alguma coisa não correr bem com esta opção, o gado e o sol continuam lá!
Será este um fator determinante na obtenção de bons resultados? Teremos nós, e os outros países do primeiro mundo, condenados ao insucesso no meio-fundo, já que, felizmente, não perspetivamos voltar aos índices de pobreza do século passado, nem, infelizmente, a um crescimento económico muito significativo em África?
Quando mais de 180 japoneses fazem, por ano, abaixo de 63’ na meia-maratona – todos licenciados ou universitários -, mais de 85 americanos correm abaixo de 13’45 nos 5000m e mais de 45 inglesas ou 20 australianas abaixo de 4’20 aos 1500m, não me parece que nenhum destes países apresente dificuldades socioeconómicas maiores que as nossas. A minha resposta às questões anteriores tende para o não.
Se a falta de resultados de relevância e com alguma profundidade, no escalão sénior, não é totalmente explicável, nem muito, no meu entender, pelo ‘aburguesar’ da sociedade ou devido à conciliação académica ou laboral, como tem sido sistematicamente enunciado por todos os que escrevem ou falam sobre o tema, o que tem condicionado o sucesso na transição júnior/sénior em Portugal?
Depois da análise da situação, como podemos intervir para a alterar? Era esta a questão que me inquietava e que se acentuou a partir do momento que aceitei ser técnico nacional de meio-fundo. Em todas as opções que me deixaram tomar enquanto exerci o cargo, esta foi uma questão que esteve sempre presente.
O grupo de treino
Nos anos 70 e 80 existiam, marcadamente, dois tipos de posicionamento dos atletas: os melhores, que treinavam para o corta-mato e para a pista, e os menos capacitados, chamados amadores, que faziam as provas de estrada e desafiavam os outros no Campeonato Nacional de Corta-Mato e em algumas provas de pista, na expectativa de ‘darem nas vistas’ e virem a ser contratados pelos principais clubes. Ambos se organizavam em grupos de treino e amiúde se ‘juntavam’ na corrida continua.
Os principais ’polos’ eram o Sporting Clube de Portugal, dinamizado pelo Professor Mário Moniz Pereira – que fazia prospeção de talentos a nível nacional -, o Futebol Clube do Porto, orientado pelo Alfredo Barbosa, com a ajuda inicial do Professor Fonseca e Costa (que depois se mudou para o Belenenses, continuando a formar atletas e a obter resultados muito relevantes) – que concentrava a grande maioria dos jovens talentos que iam despontando no norte do país -, o Sporting Clube de Braga, pela mão da Professora Sameiro Araújo – com um domínio avassalador no feminino -, e o Sport Lisboa e Benfica, que fazia depender a coordenação do meio-fundo ao treinador responsável pelo grupo de treino contratado (foi assim com o Professor António Campos e com vários outros treinadores, como o Professor Jorge Ramiro – treinador de António Leitão, Fernando Couto e de muitos jovens promissores nos anos 80) e os já citados Fonseca e Costa e Alfredo Barbosa, entre outros. A grande maioria dos treinadores, estes e outros espalhados pelo país, tinham sido atletas ou aprendido os fundamentos do treino do Professor Mário Moniz Pereira.
Existiam os estágios nacionais, coordenados pelo Professor Mário Moniz Pereira, onde a filosofia de treino – disciplina, rigor, empenhamento, autoridade – era transmitida de geração em geração.
Passámos dos grupos de treino, onde a seleção natural impunha as suas regras, em que os mais fracos ajudavam os mais fortes, em que os ‘gregários’ lutavam diariamente para chegarem a ‘chefes de fila’ – hoje no grupo de treino, amanhã no país, depois no mundo -, para a caricata situação atual onde, praticamente, cada atleta tem um treinador.
O atletismo a nível mundial, tal como noutras atividades, é um conjunto de ‘tribos’: os da velocidade, os dos saltos, os da marcha, os do meio-fundo, os da estrada, os da pista, etc, que andam juntos pelo mundo, não somente de competição em competição, mas também de estágio em estágio, o que lhes permite treinar com e como os melhores.
Há muito que os novos colonizadores – empresários europeus ligados ao atletismo, montaram a sua ‘fábrica’ no Quénia, Etiópia e mais recentemente no Uganda, criando e controlando as condições para que desses centros de treino saiam semanalmente atletas para dominar a grande maioria das competições com prémios monetários.
Rosa Mota, pela perspicácia do Dr. José Pedrosa – um médico que abdicou da sua carreira -, foi o único meio fundista português que entrou nesse meio e que muito cedo se apercebeu de que, se queria ser a melhor do mundo, teria de treinar nas mesmas condições que as suas principais adversárias. Nos anos 80 e 90 a grande Meca dos fundistas era Boulder, no Colorado (Estados Unidos), onde estavam radicados muitos dos melhores fundistas do mundo.
Rosa Mota passava lá grandes temporadas e todos sabemos o que conquistou. Também por isso é ainda a recordista nacional da maratona, passados quase 38 anos. Recordo que Rosa Mota foi uma atleta que durante praticamente toda a sua carreira desportiva pertenceu a um pequeno clube da cidade do Porto, o CAP, e que nesse tempo os investimentos nos estágios eram suportados pelos próprios atletas.
Não é por acaso que nos países, já citados, com maior densidade de resultados, (Quénia, Etiópia, Estados Unidos, Japão, Grã-Bretanha ou Austrália), a organização por grupos de treino numerosos é uma constante. Com a globalização e a facilidade de comunicação proporcionada pelas redes sociais, o que vamos assistindo é ao surgimento de grupos de atletas que se juntam para treinar nos locais de referência para estágios em altitude.
Nos anos 90, com o acentuar da importância mundial da maratona e correspondente incremento nos prémios monetários, com a perda da relevância dos treinadores – hoje na sua maioria ‘reféns’ dos atletas e/ou dos clubes -, com o aumento determinante da influência dos empresários, e com o surgimento de clubes exclusivamente de meio-fundo – Terbel, Skoda, mas principalmente o Maratona Clube de Portugal e a Conforlimpa -, que contratavam os atletas para objetivos competitivos de apenas meia época – a de inverno -, todos estes pressupostos se foram alterando e se, durante essa década, os resultados ainda se foram mantendo – muito pela auto disciplina e rigor no treino, resultante da cultura de treino desenvolvida nas décadas anteriores, que os treinadores impunham -, à medida que esse ‘fio condutor’ foi desaparecendo de geração em geração, a qualidade e densidade de resultados também foi desvanecendo.
O que foi feito e o que falta fazer
Foi identificado um grupo de jovens atletas com potencial para atingir o Alto Rendimento, tendo, também, em consideração o seu contexto. Foi proporcionado a maior exposição possível, anual, à altitude, não apenas com o objetivo óbvio, mas também para proporcionar aos atletas o contacto com os melhores grupos de treino do mundo. Foi proporcionado um contacto competitivo internacional de alto nível. Houve rápida adaptação ao novo sistema de qualificação para as grandes competições internacionais, colocando ‘pacers’ nas competições nacionais mais pontuadas, nas provas onde a obtenção desses pontos pudessem fazer a diferença na qualificação pelo World Ranking (WR)*. O patrocínio do LIDL foi fundamental no apoio a várias destas atividades, pois cobriu uma parte considerável da despesa.
A posição da Federação em relação à qualificação pelo WR é outro dos assuntos que tem vindo a ser protelado mesmo depois da confusão que deu a incompreensível seleção de alguns atletas para os Campeonatos do Mundo e que depois foram excluídos da convocatória para os Campeonatos da Europa.
Andei durante alguns meses a desenvolver com uma empresa nacional a construção de um sistema wavelight, a aquisição do sistema original era demasiado dispendiosa, mas mesmo a um quinto do custo do original a Federação não se mostrou interessada na aquisição desta ferramenta, utilizado atualmente na grande maioria das provas de meio-fundo para marcar o ritmo.
*A influência da Federação nos resultados dos Campeonatos de Portugal, através da contratação de “pacers”, só se justifica, em meu entender, devido a essas competições serem as mais pontuadas a que muitos dos nossos melhores atletas tem acesso, estando em desvantagem em relação a alguns dos seus adversários de nível semelhante, de países que tem meetings muito pontuados, o que pode fazer toda a diferença na possível qualificação por quota para as denominadas “grandes competições”.
O que falta fazer?
Entre a minha falta de imaginação e as dificuldades criadas pela Federação falta muito por fazer, mas o que destaco é o Centro Nacional de Treino de Meio Fundo (CNTMF):
– Juntar em grupos de treino os melhores atletas, num Centro de Treino Nacional, apetrechado com todas as valências fundamentais para a obtenção de resultados de nível internacional, complementado com a preocupação constante de formar e integrar esses jovens para uma vida plena pós Alto Rendimento.
O CAR Jamor, que se mostrou totalmente disponível para colaborar e acrescentar valor sempre que o solicitei – o meu agradecimento ao Professor José Serrador e os seus técnicos – já tem algumas das valências fundamentais, tais como alguns dos instrumentos de controlo e avaliação do treino e a sala de altitude para a primeira fase de adaptação ao treino em altitude. Com as necessárias melhorias no centro de estágio, principalmente na nutrição, e do apoio médico condizente com o alto rendimento, somando um técnico especialista em S&C de apoio ao Treinador responsável pelo CNTMF, seria um bom local para a sua implementação. Este Centro seria também o responsável pela urgente e fundamental formação adequada de atletas e treinadores.
Enquanto for cada um por si, escondido nas suas inseguranças, metido no seu cantinho, com o ‘seu método’, sem respeitar as regras básicas do treino desportivo, despachando competições ‘à la carte’, mês após mês, nunca seremos internacionalmente competitivos.
Felizmente temos uma geração de jovens, entre os 20 e os 24 anos, com muito potencial para continuarem a obter resultados de relevância internacional. O Isaac Nader e a Mariana Machado são, porventura, os que se tem destacado mais, mas o Etson Barros, o Nuno Pereira, a Patrícia Silva, o Rogério Amaral, o Ruben Amaral, o Duarte Gomes e a Camila Gomes, entre outros, já demonstraram possuir as capacidades e o foco necessários para o sucesso.
Os recentes resultados obtidos por estes jovens comprovam que muitos dos fatores referenciados ainda não são um impedimento para a obtenção de resultados de relevância internacional: Etson Barros (nascido em 2001) medalhado nos Campeonatos da Europa nos sub 18, sub 20 e sub 23; Mariana Machado (2000) medalhada nos Campeonatos da Europa de sub 20 e sub 23; Nuno Pereira (2000) medalhado nos Campeonatos da Europa de sub 20; Isaac Nader (1999) medalhado nos Campeonatos da Europa de sub 23.
A ‘carreira desportiva’ é uma fase da vida que ajuda a desenvolver hábitos de vida saudáveis – prática regular de atividade física, menor probabilidade de adições como o tabagismo, alcoolismo e/ou outras drogas sociais, alimentação equilibrada – e a desenvolver ferramentas fundamentais para a vida, como melhoria da autoestima, autodisciplina, capacidade de concretizar objetivos, entre outras. Os que conseguirem atingir relevância mundial poderão prolongar um pouco mais a sua carreira, sabendo que estão a prejudicar a sua integração no mercado de trabalho, os restantes deverão usar as capacidades adquiridas no desporto para o resto da sua vida.
Para mim, a criação de um departamento especial nas Forças Armadas para atletas de Alto Rendimento, à semelhança do que existe em vários países europeus e no Brasil, por exemplo, continua a ser a melhor opção para resolver muitas das fragilidades do nosso sistema desportivo. As Forças Armadas necessitam e possibilitam a formação na grande maioria das especialidades profissionais, o que viabilizaria a integração de todos os praticantes, que assim o desejassem, durante e no pós-carreira, garantindo uma estabilidade fundamental na aposta dos nossos melhores atletas numa carreira desportiva.
A ameaça da naturalização massiva
– Uma modalidade cuja Federação está totalmente dependente dos apoios públicos e em que os atletas dependem quase exclusivamente das opções de dois clubes para poderem subsistir, precisa urgentemente de arranjar alternativas;
– A naturalização massiva de atletas estrangeiros, sendo um assunto muito difícil, não deve ser tabu e merece uma discussão urgente no seio da modalidade. A forma displicente como está a ser tratado, na minha opinião, é irresponsável. Não é por ‘assobiarmos para o lado’ e fingirmos que não se está a passar nada, ou até tomar decisões que incentivam, que o assunto se resolve, a não ser que a opção seja ter uma Seleção Nacional como o Catar ou o Bahrain, por exemplo, muito mais competitiva, muito mais medalhada, mas muito menos identificada com os portugueses.
Nunca se questionaram porque é que os atletas de elite cubanos, alguns já naturalizados e vários outros em processo de naturalização, com muito mais afinidades com a nossa vizinha Espanha, onde podiam, enquanto atletas espanhóis usufruir de muito melhores condições, optam por pedir a nacionalidade portuguesa? Quem está a facilitar/promover estas naturalizações?
Cada vez mais crianças obesas e a parecerem ‘deficientes motores’
Os nossos jovens, nos anos 70, 80 e 90 do século passado, comparativamente aos nascidos posteriormente, usavam diariamente nas suas brincadeiras jogos que estimulavam e potenciavam o desenvolvimento biológico, nos aspetos relacionados com o seu desenvolvimento motor. Existem, na infância, fases de desenvolvimento biológico fundamentais e, naturalmente, crianças mais ativas, estimuladas fisicamente e convenientemente nutridas, terão clara vantagem desportiva sobre as restantes.
É uma evidência. Os hábitos mudaram significativamente, a organização urbana, a sensação de insegurança, a diminuição do número de crianças e do trabalho das coletividades na organização da prática desportiva das mesmas, entre outros fatores, levaram a que tenhamos cada vez mais crianças com excesso de peso, crianças que nem um gesto básico como correr conseguem executar convenientemente, parecendo autênticos ‘deficientes motores’. Constato isto diariamente na escola. A falta de ‘competitividade’ é outra característica que vamos verificando em acentuado crescimento nas nossas crianças e jovens. Hábitos associados a práticas desportivas lúdicas, como levar o cantil com água para a aula, mesmo que seja inverno e existam vários pontos de água nas redondezas. ou os auriculares para ouvir música, são disso exemplos.
A obrigatoriedade de participar na fase concelhia do corta-mato e Mega Sprinter para as escolas poderem ter Desporto Escolar é muito insuficiente. O atletismo é uma modalidade que não cuidou da formação de professores, em que a sua maioria não se sente confortável a ensinar. Nos 27 anos que levo de ensino, com dezenas de colegas, muito poucos se atreveram e atreviam a ensinar seja o que for sobre atletismo. É fundamental ir de encontro às motivações dos professores de Educação Física para que o atletismo possa evoluir nas escolas, quer através de ações de formação práticas creditadas quer da massificação de ações do Kids Athletics nas escolas.
O quadro competitivo
É possível obter resultados relevantes a nível internacional sem um treino estruturado? Passámos de um quadro competitivo com dois pontos fortes por época – Campeonato do Mundo de Corta-Mato, em março, e Jogos Olímpicos/Campeonato do Mundo ou da Europa, em agosto – para um quadro competitivo totalmente ‘esquizofrénico’ com objetivos relevantes (para a federação, clube ou atleta) ao longo de todo o ano, sem tempo para treinar convenientemente. Se nos escalões jovens ainda conseguimos obter resultados relevantes, nos seniores é impossível, salvo raras e pontuais exceções.
A teoria do buffet, em que cada um deve fazer as suas opções, não funciona, porque, como já referi, os treinadores já não são os coordenadores do processo, a dependência dos clubes é enorme e os atletas portugueses sempre quiseram ‘agarrar o mundo com as duas mãos’.
A solução, para o exemplo da dupla periodização – porque podemos planear de objetivo em objetivo, como fazem os maratonistas, por exemplo, passa por criar, no quadro competitivo, períodos sem objetivos competitivos relevantes para que se possa treinar, permitindo, assim, um período preparatório geral (PPG) – fundamental para criar uma base sólida de treino – e um período preparatório específico (PPE) em janeiro, fevereiro e março e depois em setembro e outubro, com um período de transição (PT) após o Campeonato da Europa de Corta-Mato e após a grande competição de verão.
Formação
Lacunas graves na formação física (treinabilidade – na transição júnior/sénior, o atleta tem de ter a capacidade de assimilar o volume e a intensidade do treino necessários para ser internacionalmente competitivo) e psicológica para o alto rendimento também dificultam a transição júnior/sénior. A grande maioria da formação prestada pela Federação, no meio-fundo e fundo, está completamente ultrapassada na forma (evangelização) e conteúdo, na minha opinião, condicionando o ‘mindset’ dos treinadores e atletas para chegarem ao Alto Rendimento.
Apoios
A grande motivação tem de ser intrínseca e não baseada na recompensa monetária, ainda que os atletas que atingem resultados de excelência sempre tenham sido bem pagos. Até atingir esse patamar o atleta tem de ir fazendo escolhas, tomando decisões que lhe permitam treinar. Encarar esta atividade como uma profissão, como a única aposta, pode ser muito limitativo pela pressão e por todos os fatores negativos conotados com as atividades laborais, para além de que é muito redutor enquanto ser humano. Com o valor despendido com o Plano de Preparação Olímpica (PPO), com o orçamento anual da Federação e dos principais clubes, tendo em consideração os ordenados e a dimensão do mercado nacional, não podemos dizer que existem falta de apoios. O que existe é uma distribuição errada das verbas disponibilizadas.
Contexto
Uma sociedade pouco competitiva, que perante qualquer dificuldade detetada a solução é recorrentemente baixar a exigência, que não valoriza esta atividade, que incentiva e estimula, desde tenra idade, a igualdade entre todos (os bons e os maus), usando demasiadas vezes o politicamente correto, o igualitarismo em detrimento da meritocracia, também não ajuda ao desenvolvimento. O campo de recrutamento tem diminuído, quer pela baixa natalidade, quer pelo surgimento de novas ofertas desportivas, como por exemplo o triatlo ou o skate, entre outras, sendo estas muito mais aliciantes. A questão do doping, para mim, é irrelevante nesta discussão, porque, para além da enorme hipocrisia reinante neste assunto, é um problema transversal a toda a sociedade mundial, onde o desporto, naturalmente, também está inserido.
Não são só os treinadores e os atletas que têm de ser de Alto Rendimento, todos os agentes à sua volta (médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, fisiologistas, massagistas, psicólogos, empresários, dirigentes, departamento de comunicação…) tem de ter competências para o Alto Rendimento!
Temos um déficit enorme de dirigentes com qualificação mínima para o Alto Rendimento, a grande maioria ainda está no atletismo dos anos 80, não teve a capacidade de acompanhar a evolução que foi sendo incrementada pela WA, principalmente nos últimos anos. É impensável, num país europeu, uma federação ter como DTN alguém que não sabe trabalhar com ferramentas tão básicas como o Excel, por exemplo, ou, muitíssimo mais grave tendo em conta as suas funções, que não domine os critérios de qualificação para as grandes competições.
Passei por situações muito constrangedoras em algumas competições, nestes anos de federação, de sentir vergonha para encarar os dirigentes da associação europeia, ao ponto de lhes ter de implorar que permitissem que alguns atletas portugueses pudessem participar no Campeonato da Europa de Corta-Mato, por exemplo, pois em vez de termos inscrito os nossos meio-fundistas, inscrevemos velocistas e/ou lançadores que por casualidade tinham o mesmo nome.
Outra situação que aconteceu, também, com alguma frequência foi não se ter efetuado o pagamento necessário para que pudéssemos participar… felizmente estes constrangimentos melhoraram muito com a entrada do Alexandre Costa e do Rui Silva. Com a entrada do vice-presidente Fernando Tavares como responsável pelo Alto Rendimento, o DTN, pelas suas capacidades, passou de contador de estórias e “moço de recados” do Paulo Bernardo, a contador de estórias unicamente. Outra situação inaceitável é o facto das notícias publicadas pela Federação, quer na sua página on-line, quer nas redes sociais, apresentarem sistematicamente erros grosseiros, como se de um blog de um qualquer praticante amador se tratasse. A Federação tem a responsabilidade de combater a iliteracia que domina a nossa modalidade e repetidamente faz o oposto.
A situação mais constrangedora que me recordo de ter vivido nestes 30 anos que tenho de atletismo, e que revela bem a incompetência do diretor responsável pelas competições, foi a ocorrida nos Campeonatos Nacionais de Corta-Mato em Vale de Cambra. Andei a semana toda a alertar que a prova de seniores masculina, se fosse realizada naqueles moldes, iria ser um caos, nem era preciso perceber muito de atletismo para ver isso. No dia anterior à prova voltei a insistir no assunto, mas o mesmo persistiu, como costume, na sua inabilidade… um triste espetáculo em que clubes, atletas e principalmente o atletismo foi muito maltratado.
Elegibilidade para as grandes competições
Este é um tema discutido em vários países. Alguns países só convocam atletas com marca de qualificação direta, outros convocam os atletas que são elegíveis no dia do fecho do período de qualificação, não considerando os convidados pela WA por desistência da vaga, existe também a opção de inventar critérios subjetivos e convocar alguns dos atletas “convidados” para preencher as cotas, e ainda a possibilidade de levar todos os possíveis, independentemente do nível internacional que o atleta tenha, como fez a nossa federação para Oregon, e depois deu a confusão que vimos quando percebeu o erro que tinha cometido e resolveu, para uma prova com uma exigência menor como eram os Campeonatos da Europa, levar uns e deixar de fora outros…
A minha proposta foi que fossem estabelecidos níveis mínimos de qualidade internacional que o atleta tinha de ter para poder representar a seleção nacional. Esse nível estaria dependente da competição, para um Campeonato do Mundo o nível seria muito superior ao exigido para um Campeonato da Europa e o mesmo aconteceria caso se tratasse dos escalões jovens ou seniores.
A tabela internacional, não sendo perfeita, pode ser uma referência para se chegar a esse nível. A minha proposta foram 1140 pontos para o Campeonato do Mundo e 1120 para o Campeonato da Europa, nos seniores. Há quem defenda que os critérios não devem ser tão rígidos, que deviam ser tidas em consideração algumas variáveis relativas, como por exemplo a probabilidade de sucesso tendo em consideração a posição anual no ranking mundial/europeu.
Em teoria eu concordo com esta abordagem, mas todos sabemos como costumam funcionar essas “ponderações” nos diversos critérios. As minhas propostas raramente tinham sucesso na DTN, porque a maioria dos TN julgam em causa própria, estão reféns dos seus próprios interesses, das associações, clubes e atletas que representam e não do que realmente importa para o desenvolvimento e credibilização do atletismo nacional. Esta situação verifica-se, mais disfarçada ou mais descarada, por exemplo, nos critérios para acesso aos apoios de alta competição, seleções nacionais e muitos outros, em que a falta de imparcialidade chega a ser confrangedora.
A Associação Portuguesa de Organizadores de Provas de Atletismo só existe para votar.
Durante décadas a federação fez questão de manter um afastamento, como se fosse uma cerca sanitária, às provas de estrada, encaradas como um parente pobre da nossa modalidade. Devido ao seu enorme crescimento e importância, no final dos anos 80 e principalmente nos anos 90, altura em que também os portugueses começaram a escolher a corrida como a sua principal atividade para a promoção da saúde e bem-estar, o Professor Fernando Mota, então presidente da Federação, resolveu fazer uma aproximação e promoveu a criação da Associação Portuguesa de Organizadores de Provas de Atletismo (APOPA), muito baseado no sistema francês.
Mesmo com muita relutância, que ainda se mantém, durante alguns anos assistimos a diversas tentativas na harmonização da sua regulamentação, mas após a saída do Professor Fernando Mota, muito por falta de conhecimento/identificação, das direções seguintes, notou-se uma regressão nessa mesma harmonização, que se tem vindo a acentuar bastante nos últimos anos. A relevância da APOPA, atualmente, só existe enquanto membro extraordinário da Federação com direito a voto.
Sabendo-se que as corridas de estrada são a forma mais popular de contacto com a nossa modalidade, parece-me que deveríamos aproveitar esses momentos para investir mais na promoção do atletismo como uma modalidade global, com corridas, saltos e lançamentos, com corta-mato, montanha e trail. É urgente a criação de um departamento dentro da Federação, dedicado inteiramente às provas de estrada e corta-mato, constituído por pessoas totalmente identificadas e conhecedoras de todas as vertentes inerentes a estas competições, pessoas proativas, que em estreita colaboração com os principais organizadores façam, por exemplo, os contactos institucionais necessários com o estado e autarquias, certificação da medição e cronometragem das provas e a elaboração do calendário nacional e regional destas competições.
A elaboração de um ranking independente levaria à melhoria da qualidade organizativa das provas. Os Campeonatos Nacionais, na minha opinião, deveriam ser o exemplo de como bem organizar uma competição, servir como uma formação prática para os outros organizadores. Não é a isso que temos assistido nos últimos anos, com situações que nos envergonham a todos, tendo como pináculo o Campeonato Nacional de corta-mato em 2021 (Vale de Cambra) ou quando dominámos o ranking europeu feminino dos 10km com tempos obtidos numa prova comprovadamente mal medida.
É candidato a presidente da Federação?
Existe, em Portugal, uma enorme carência de ativos que entendam o suficiente de atletismo para dirigir a Federação. A minha vida é o atletismo, estarei sempre disponível para contribuir para a melhoria da nossa modalidade, mas não tenho qualquer ambição diretiva, nem considero que tenha o perfil exigido para esse importantíssimo cargo. Em linguagem do atletismo dos anos 90 diria que não tenho mínimos para essa competição. Espero que o Paulo Bernardo e o Luís Jesus, por exemplo, tenham o mesmo discernimento.
As próximas eleições, no último trimestre de 2024, podem ser muito importantes para o futuro da nossa modalidade. Depois de décadas do mesmo dirigismo está na hora de mudar, como fizeram os espanhóis, italianos e ingleses, por exemplo.