(Fotos de corridas em 2008)
As corridas populares em Portugal conheceram um enorme desenvolvimento após o 25 de Abril. O Grande Prémio do Natal é a prova mais antiga do calendário nacional datando desde 25 de Dezembro de 1946, então com triunfo de Filipe Luís. Foi durante muitos anos apenas acessível a atletas federados e do sexo masculino. Só em 1977, as mulheres puderam participar com Teresa Gomes a vencer. Mas no mundo das corridas, tudo ou quase tudo, mudou com o 25 de Abril.
Para conhecer melhor a evolução das provas após o 25 de Abril, falámos com Joaquim Sobral e Umbelina Nunes, ambos ex-atletas de pista e que ainda correm em provas populares. São ambos profundos conhecedores da realidade nacional pois colaboram desde a fundação da Xistarca em 1986, empresa pioneira na organização de provas populares.
No início, as inscrições eram gratuitas
As inscrições eram gratuitas, rara era a prova que levava dinheiro aos atletas. Resultado: em provas com por exemplo mil inscritos, só apareciam 500 ou 600 no dia de levantar o dorsal. Se os clubes tinham por exemplo, 30 atletas, mandavam a lista com eles todos sem procurarem saber quem estava interessado em ir a essa prova. Mais, o mesmo corredor chegava a estar inscrito por dois ou mais clubes!
A solução passou por passar a pagar-se as inscrições no ato de levantar os dorsais. Mas os clubes se tinham por exemplo, os tais 30 atletas, mandavam a lista com eles todos. Depois, como só 15 ou 20 é que iam correr, quem levantava os dorsais só queria pagar esses 15 ou 20.
Quantas horas de trabalho perdidas em fazer dorsais. E o custo com as t-shirts e medalhas feitas a mais, águas, etc, etc?
E assim se encontrou uma nova solução: o pagamento passou a ser feito no ato da inscrição. E agora, está quase tudo informatizado.
Quem continua a utilizar o método antigo das inscrições gratuitas, continua a debater-se com o mesmo problema de há 30/40 anos. É o exemplo da Corrida do Avante que todos os anos, tem centenas de corredores inscritos que não aparecem.
Das filas pirilau aos funis
Longe vai o tempo em que tudo se fazia à mão, desde os dorsais às classificações. E que dizer das longas filas pirilau que se formavam, às vezes 200/300 metros antes da meta. Lembramo-nos por exemplo de uma prova de 10 km que terminou nas imediações de Belém, em que demorámos quase tanto tempo na fila como a correr!
Das filas pirilau, evoluiu-se para o sistema dos funis com o dorsal a ser colocado num espeto. Era mais rápido e quando não se conseguira cortar a meta a correr, sempre se ficava mais próximo dela. Era um sistema que exigia muita atenção de quem vigiava o seu funcionamento, até porque havia quem mudasse do seu funil para outro mais adiantado.
Sobral conta-nos uma estória passada consigo nos espetos: “Tínhamos os espetos 1, 2 e depois o 3. Mas depois troquei, pus o 5, o 7 e só depois o 6. Houve então quem me chamasse ‘Troca as mãos!’Mais tarde, as classificações foram corrigidas, teria sido grave se a troca fosse com os primeiros espetos”.
E os chips
Na década de 90, surgiu o primeiro grande avanço tecnológico. Falamos da leitura do dorsal através do código de barras. Deixou de haver funis e as classificações saíam mais rapidamente. Os prémios deixaram de ser atribuídos muito tarde, muitas vezes a prolongarem-se pela hora de almoço.
E depois, tivemos os chips. Para compreendermos a sua importância, alguém consegue imaginar por exemplo a Meia Maratona da Ponte 25 de Abril ainda com um sistema de funis na meta?
Durante muito tempo, os corredores tinham que entregar os chips após a meta, método que ainda existe nalgumas provas. Mas na maior parte das situações, passámos para os chips descartáveis. Neste mundo em constante evolução, que sistema virá a seguir?
As partidas
No início, todos queriam estar nas primeiras filas, particularmente os veteranos que lutavam pelos prémios. As Organizações tinham de dizer quem podia ou não lá estar, o que gerava frequentes conflitos. A partir da década de 90, passou a haver zonas delimitadas para os melhores atletas. E agora, principalmente nas provas com milhares de participantes, já temos as partidas por blocos. Mesmo assim, ainda encontramos corredores que se infiltram nas primeiras filas, nada condizentes com o seu nível desportivo.
As “guerras” com os prémios dos veteranos
E que dizer das “guerras” que havia com a distribuição dos prémios aos veteranos? Na fase em que só havia taças e medalhas, havia quem apresentasse fotocópias com a data de nascimento falsificada. O seu objetivo era correr em escalões superiores, para mais facilmente trazer a dita taça ou medalha para casa.
A situação melhorou quando começou a haver prémios monetários. Como os veteranos que subiam habitualmente ao pódio, se conheciam todos uns aos outros (até sabiam as datas de nascimento de cada um!), eles próprios controlavam os “infiltrados”.
Sobral conta-nos uma estória passada numa prova em que havia prémios monetários aos dez primeiros: “No final, eu filtrei os nomes deles e respetivos escalões, antes da entrega dos prémios. Conhecia o sexto mas não o quinto. Fui ter com o sexto para ver se conhecia o quinto. Disse-me logo que ele tinha feito anos na 4ª feira anterior e mudado de escalão. Eles sabiam as datas de aniversário, uns dos outros!”.
Outra situação ainda existente tem a ver com a troca de dorsais de mulheres veteranas por homens. Mais facilmente, elas, que nem sequer correram, são depois chamadas ao pódio.
Agora, a situação é mais pacífica porque são raras as provas com prémios monetários. Mas ainda acontecem…
Quando a pasta dos inscritos foi para o lixo!
Esta estória passou-se na Corrida do Metropolitano, prova que esgotava sempre 2/3 semanas antes. As inscrições eram recebidas através dos CTT e com o pagamento lá dentro. Já estariam lançadas mais de 1.500 para um limite de duas mil e Sobral deixava às vezes a pasta das inscrições em cima do caixote do lixo.
Um dia de manhã, não encontrou a pasta. Perguntou à senhora da limpeza se tinha visto a referida pasta. Que sim, tinha-a posto no lixo porque estava junto ao caixote!
Como é que Sobral conseguiu resolver a situação? “Servi-me da minha experiência. 70 a 80% das inscrições eram sempre das mesmas equipas. Tive de lembrar-me quais eram essas equipas já inscritas e telefonar aos seus responsáveis. Arranjei uma desculpa e lá repetiram as inscrições”.
Quando chegou o dia da entrega dos dorsais, foram feitos mais cem para prever algumas falhas. Claro que houve quem reclamasse por não ter o seu nome na lista dos inscritos. “Chegaram 1988 em 2000, número limite. Tenho a certeza que muitos me enganaram dizendo que se tinham inscrito. Foi uma coisa surreal!”.
A entrega dos dorsais
Quem corre há muitos anos, lembra-se certamente de nas imediações da partida, haver as listagens com as equipas e os atletas individuais. Como os dorsais eram todos entregues na manhã da prova, formavam-se longas filas que por vezes, obrigava as Organizações a atrasar um pouco a partida da prova.
Conta-nos Sobral: “Como não duvidávamos das pessoas, havia quem pedisse um dorsal que não era dele. Quando chegava o corredor verdadeiro, já não tínhamos o dito dorsal. Isto passava-se muito nas provas com um número limitado de inscrições que esgotavam rapidamente”.
Uma vez numa Corrida do BNU, o José Francisco (nome suposto) pediu o seu dorsal. Mas logo atrás, estava o verdadeiro José Francisco que logo gritou: “Esse sou eu!”. O aldrabão fugiu com o dorsal mas acabou por ser apanhado.
Para fazer face a esta situação, a solução foi passar a pedir a data de nascimento. Sobral contou-nos que numa das edições da Casa Senna, ele deu-se ao trabalho de escrever nas costas dos dorsais dos Individuais, as sus datas de nascimento, “Apanhava-os uns atrás dos outros!”.
E os batoteiros?
Não é só em Portugal que existem batoteiros nas corridas. Eles são uma praga que existe em todo o lado. Depois de em 2017 terem sido desclassificados perto de seis mil corredores, a Maratona da Cidade do México voltou a ter em Agosto de 2018, o mesmo número de batoteiros.
Em Novembro último, a Organização da Meia Maratona de Shenzen, na China, declarou que 237 corredores foram apanhados em flagrante ao utilizarem atalhos para encurtar o percurso da prova. Além dos corredores que burlaram o trajeto, a Organização também descobriu 18 corredores que usaram números falsos de identificação.
E em Portugal? Quantas vezes não vimos corredores a cortar caminho? Principalmente nos percursos de ida e volta em que os corredores se cruzam. Ainda na última edição do Campeonato Nacional de Estrada, vimos uma corredora a cortar caminho. Chamámos-lhe a atenção de que estava a fazer batota, ainda se pôs a rir!
Na Corrida do 1º de Maio por exemplo, havia quem apanhasse o metro e saísse no Areeiro. Depois, lá fazia os quilómetros finais. E na Maratona dos Descobrimentos, quando ela tinha a partida e a meta instaladas em Belém? Havia quem “corresse” muitos quilómetros de comboio, era tão fácil.
Na última Meia Maratona da Ponte 25 de Abril, a Organização tinha controlos de passagem aos 8, 14, 17 e 20 km. Dos batoteiros apanhados, a maior parte só tinha uma passagem aos 8 km, nas outras, zero. E houve quem nem sequer tivesse passado pelo controlo dos 8 km, chegou a Alcântara e foi logo para a meta! Mas também houve alguns que só falharam o controlo dos 17 km, o que até era admissível. Mas depois, como é que eles conseguiram correr entre os 14 e os 20 km em 16m04s? Mais rápido ainda, houve um “chico esperto” que passou aos 14 km em 1h36m52s. Falhou o controlo dos 17 km e passou aos 20 km em 1h46m04s. Apenas 9m12s em 6 km!
Eis outras situações relatadas por Sobral e Umbelina.
2/3 vezes nos funis
Havia quem entrasse 2/3 vezes nos funis para irem buscar os prémios de presença, nem que fosse a simples camisola. “Ainda nos ameaçavam quando os confrontávamos!” A solução foi passar a riscar-se os dorsais após a passagem pela meta.
A praga das fotocópias dos dorsais
Esta é outra especialidade que não é apenas portuguesa, ainda esta semana divulgámos o batoteiro que na maratona de Sevilha correu com um dorsal fotocopiado e lhe saiu uma ida à maratona de Nova York.
O problema começou a surgir quando os dorsais começaram a ser distribuídos um ou dois dias antes da prova. Os “espertos” começaram a fazer fotocópias e a correrem com elas. Mas às vezes, com pouca esperteza como aqueles dois que na Meia Maratona da Ponte 25 de Abril, entraram na meta juntos, tendo ambos um dorsal com o mesmo número!
Umbelina Nunes é especialista em apanhar estes batoteiros. “Quando riscamos o dorsal, percebemos que são de outro papel que não o original”. Quando ela lhes diz que correram com uma fotocópia, ficam muito admirados, “como sabe?”.
A mudança de escalão
Para Sobral, as veteranas eram piores que eles. Quando sabiam quem ia correr, queriam mudar de escalão e correr naquele que lhes desse mais dinheiro. E muitas vezes, queriam fazê-lo no final das provas. Esta foi uma prática que a Xistarca sempre recusou, as alterações só podiam ser feitas antes do início das provas, se os regulamentos o permitissem.
Havia ainda quem telefonasse 2/3 dias antes da prova para saber quem ia correr no mesmo escalão! Esta prática pode ser facilmente resolvida como o fazem muitas Organizações. Basta haver no regulamento uma alínea em que o escalão é determinado pela data de nascimento do atleta no dia da prova.
Correr com vários dorsais
Esta estória passou-se numa prova disputada nos arredores de Lisboa. Houve 3/4 mulheres a correrem com dois dorsais, um de sénior e outro, de veterana. Se ela se chamava por exemplo Maria Francisca Carvalho, num dorsal tinha Maria Carvalho e no outro, Francisca Carvalho. Na meta, alguém da Organização dizia para meter o de sénior ou o de veterana.
Na Corrida do Destak, houve quem corresse com um dorsal original com duas fotocópias atrás. O objetivo era entrar três vezes na meta e levar três prémios de participação!
E há quem corra apenas com o dorsal. O chip vai para outro conhecido. Depois na meta, um diz que perdeu o chip. E o outro, diz que perdeu o dorsal!
Problemas com o seguro e nas classificações com as trocas de dorsais
São conhecidos os problemas que as trocas de dorsais podem originar. Quando sobram dorsais numa equipa, eles são muitas vezes oferecidos a atletas que andam à procura de um. O problema está em depois, esses atletas não irem regularizar a troca junto das Organizações. Podem surgir problemas nas classificações, particularmente quando envolvem atletas premiados. Ou mais grave ainda, se houver algum acidente (e já aconteceu), quem correu com um dorsal que não lhe pertencia, não está segurado.
Na Corrida da Lagoa de Santo André
Um corredor passou duas vezes pela meta. Umbelina reconheceu-o e chamou-lhe a atenção. “Não passei”, dizia ele repetidamente. Mais tarde, foi-lhe pedir desculpa porque não sabia que ela o conhecia tão bem!
Ainda na Corrida do Destak, houve quem quisesse cortar a meta sem dorsal. Umbelina não o deixou, houve empurrões e a camisola dele rasgou-se Ainda queria que lha pagassem!
Troca de escalões numa corrida em Odivelas
Sobral conta-nos esta última estória passada numa corrida em Odivelas: “Antes da partida, fulano pediu para trocar o escalão de veterano 1 para sénior. Troquei. O fulano fez a prova com um veterano 2 que venceu. No final, ele ficou em 2º lugar. O 1º sénior ganhava 100 euros e o 2º, 50 euros. Como o 1º veterano 1 ganhava 75 euros, o fulano quis depois trocar outra vez de escalão. Claro que não deixámos”.