Os gregos disputaram duas maratonas seletivas, a segunda, apenas cinco dias antes da maratona olímpica! Partiram 17 atletas e acabaram nove. Depois de uma noite de farra, o pequeno-almoço dos atletas no dia da prova, meteu leite e cervejas. Bebeu-se vinho nos abastecimentos. Um grego chegou em terceiro mas foi desclassificado por ter sido visto a apanhar boleia.
Os primeiros Jogos da Era Moderna disputaram-se em Atenas, no longínquo ano de 1896. Um ano antes, um jovem militar que trabalhava nas obras do Estádio Olímpico, soube pelo seu general da disputa da prova da maratona. Ambicionou corrê-la e concretizou o seu sonho.
Barão de Coubertin e a origem da Maratona Olímpica em 1896
Os Jogos de 1896 não teriam sido então possíveis sem as ideias de dois homens: Michel Breal e Pierre Frédy, o famoso Barão de Coubertin.
Foi dentro de um ambiente histórico propício que encontramos o Barão de Coubertin. O francês conheceu numa das suas viagens, uma versão inglesa das antigas Olimpíadas, que lhe serviu de inspiração para retomar os Jogos Olímpicos, mas agora de forma universal.
Uma vez aprovada a reedição dos Jogos Olímpicos em Atenas no ano de 1896, começaram os debates para a sua formatação. E foi nesse ambiente, que surgiu a ideia de homenagear a Grécia, promovendo uma corrida em memória a Fidípedes. Essa ideia não veio de Coubertin, mas de outro francês, Michel Breal, académico, que sugeriu uma prova que relembrasse os passos de Fidípedes: saindo da cidade de Maratona até à colina Pnyx, tradicional ponto de encontro da antiga Atenas.
Não havia a certeza da distância que ele teria percorrido, sendo fixada então em 40 km. Mesmo não havendo uma certeza sobre a veracidade do mito, a iniciativa foi aprovada e recebida com paixão pelos gregos, que viam o regresso da tradição dos tempos de glória da antiguidade clássica. Mal sabiam eles que estavam a criar uma tradição, pois a Maratona, como evento desportivo, não tem raízes históricas antes de 1896. Os gregos também olhavam para a ideia de Breal como uma possibilidade de se afirmarem no mundo desportivo, já que, nas pistas, o mundo estava na mão dos ingleses e norte-americanos.
Dúvidas quanto à capacidade de Spiridon Louis em correr a maratona
Regressamos agora ao jovem Spiridon Louis. Cumprindo o serviço militar, ele escutava as histórias e as expectativas do seu general sobre a maratona, acreditando na vitória de um grego. Desde o anúncio dessa corrida, em 1895, muitos jovens, sobretudo garotos gregos pobres, estavam-se a preparar para corrê-la. Houve até quem exagerasse no entusiasmo e na inexperiência: alguns relatos da época, indicam que três jovens morreram por excesso de treino. Talvez por ver, na vitória, uma forma de ascensão económica e social, alimentada por notícias de doações de gregos ricos da época para o campeão.
Assim, é compreensível a dúvida e até a desconfiança do general sobre a capacidade de Spiridon em correr a prova. Com 23 anos, ele morava perto de Atenas, no Vilarejo de Amarroussion, e quando não estava de serviço como cavalariço, era um pequeno agricultor, que entregava água em Atenas, trotando 15 km ao lado da sua carroça. Não era, à primeira vista, a pessoa mais indicada para a grande competição.
Duas seletivas gregas com 40 km, uma delas a cinco dias da Maratona Olímpica!
Para o jovem Spiridon poder correr a maratona olímpica, tinha primeiro de passar pelas seletivas, os famosos “trials”. Então, outra surpresa histórica: embora a Maratona Olímpica de Atenas seja comumente considerada como a primeira oficial da história, aconteceram pelo menos duas outras antes dela, ambas de 40 km, para selecionar os 13 gregos que iriam aos Jogos Olímpicos.
A primeira seletiva ocorreu em 10 de Março de 1896 e contou com a presença de 12 homens, tendo vencido o grego Karilahos Vasilakos em 3h18m. A última seletiva, bem mais participada, com 38 corredores, foi no dia 5 de Abril, apenas cinco dias antes da partida oficial da prova! O vencedor fez o tempo de 3h11m, com Spiridon, a ser quinto, o suficiente para obter uma vaga para a maratona olímpica.
Selecionados, os 13 representantes do país anfitrião, juntaram-se mais cinco competidores de outras nações. Um alemão, que desistiu da prova; o australiano Edwin Flack, vencedor dos 800 e 1.500 m nesses Jogos; o norte-americano Arthur Blake, prata nos 1.500 m; e o francês Albin Lermusiaux, bronze também nos 1.500 m. Além destes, havia o húngaro Gyulia Kellner, o único, além dos gregos, que tinha corrido antes, uma competição de 40 km.
Os participantes foram transportados para a cidade de Maratona na véspera da prova e, depois de dadas as boas-vindas, pediram que lhe trouxessem vinho. Muito vinho. Os relatos indicam que eles comeram, riram, cantaram e se banquetearam até bem tarde, de forma bem diferente do nosso atual “jantar de massa”. No dia seguinte, tomaram um pequeno-almoço reforçado, que incluía leite e duas cervejas, às 11 horas.
A partida da maratona
A partida da prova foi dada em Maratona, às 14 horas do dia 10 de Abril. Logo no seu início, os velocistas isolaram-se, esquecendo que tinham 40 km pela frente. Foram acompanhados por ciclistas e soldados, com a missão de desobstruir a estrada repleta de gente curiosa em ver esses excêntricos corredores, que iam para uma jornada de três horas sob sol a pino, nas duras estradas de terra batida.
A população estava nas ruas, oferecendo comida e bebidas, e aplaudindo, sem distinção de nacionalidades. Atrás, o segundo grupo de atletas, onde estava Spiridon Louis, e na retaguarda de todos, uma carruagem repleta de médicos em alerta. Cada atleta era acompanhado, seja em bicicletas ou em carruagem, pelos seus assistentes, que ficavam responsáveis pela hidratação, alimentação e, em alguns casos, até por fazer massagens e o que mais fosse preciso para que o seu corredor não esmorecesse.
Aparentemente, os velocistas que se aventuraram na desconhecida distância, pareciam não ter sentido os efeitos de terem disputado a final olímpica dos 1.500 m três dias antes e dominaram amplamente a prova até ao km 32. No km 24, no Vilarejo de Harvati, por exemplo, há a indicação de que o líder, o francês Lermusiaux, tinha um minuto de avanço do australiano Flack e quatro do americano Blake, que abandonaria logo depois. Entre os gregos, Spiridon e o vencedor do primeiro “trial”, Vasilakos, vinham bem próximo deles.
O primeiro “muro” e abastecimento de vinho!
Tudo indicava uma vitória fácil do francês, se não fosse o episódio que podemos considerar o primeiro “muro” da história das maratonas: após um trecho sinuoso, entre as montanhas, o francês perdeu simplesmente completamente as forças, caiu e desistiu da prova ao km 32. O australiano também já começava a sentir os efeitos do cansaço e, mesmo na liderança, diminuíra muito o ritmo. Spiridon Louis cumpria o que prometera ao seu padrasto: ao km 21, ao receber uma caneca de vinho (este era considerado um ótimo repositor de energia numa época pré-suplementos), soubera da distância a que estava dos seus concorrentes e afirmara “Eu vou alcançá-los!”. Dito e feito.
Ombro a ombro com o australiano Flack, Spiridon levava os espectadores ao delírio, que gritavam “Vida longa à Helade” (como os gregos chamam ao seu território). No km 33, Spiridon ultrapassou o australiano, mantendo uma distância de não mais do que 20 passos. Não demorou muito para que o australiano também sucumbisse, ao km 37, desmaiando perto da sua carruagem de apoio. Spiridon estava agora na liderança, isolado. Mas uma trapalhada de um juiz quase pôs tudo a perder: no afã de lhe dar mais energia, ele deu-lhe conhaque, ao invés da água solicitada pelo grego. Louis cuspiu imediatamente, esbracejou, mas continuou firme no primeiro lugar, rumo a Atenas e ao Estádio Olímpico.
Da desilusão à euforia no Estádio Olímpico
Os 71.800 espectadores maioritariamente gregos, que esgotaram a lotação do estádio, esperavam ansiosos a chegada do vencedor. Para eles, aquela prova era a última hipótese de salvar a honra do país e dos fundadores dos Jogos Olímpicos, uma vez que, naquele evento, tinham ganho apenas uma medalha de ouro e numa competição de ginástica, de menor expressão para eles.
Para conter a ansiedade e entreter o público, a organização programara uma competição de salto com vara no mesmo período de tempo e contratara ciclistas que vinham periodicamente dar informações sobre a competição que se ia desenrolando. E foi um desses mensageiros que, vendo o francês caído e o australiano ainda na frente, saiu precipitadamente em direção ao estádio e anunciou que o vencedor seria o australiano. Suspiros desapontados, lamentos e um silêncio sepulcral tomaram conta do lugar.
Foi quando um tiro de canhão anunciou a entrada do líder em Atenas. O marinheiro responsável em levantar as bandeiras do mastro no estádio, ao ver o ateniense do dorsal 17 em passos firmes na liderança, apressou-se em levantar a grega. Uma tempestade de entusiasmo e euforia, tomou contou dos presentes, que gritavam “Elleen! Elleen!” (O grego! O grego!).
Sob forte calor, às 16h56, entrava no Estádio Olímpico, Spiridon Louis em estado deplorável: o seu equipamento branco e azul claro estava encharcado de suor, coberto de poeira, os sapatos quase completamente gastos, e a sua exaustão estampada no rosto, roxo e manchado de sangue. Centenas de pombas brancas foram soltas; as pessoas, eletrificadas de felicidade, faziam de tudo para estar próximos do seu novo herói: mulheres acenavam lenços, algumas lançavam as suas joias, homens tentavam alcançar Spiridon e ofereciam-lhe comida e dinheiro como recompensa. O rei e o príncipe gregos esqueceram as formalidades protocolares, desceram e correram ao lado de Louis, embargados de emoção.
Vitória em 2h58m50s e terceiro desclassificado por ter apanhado boleia
Entretanto, Spiridon só queria saber onde era a meta, que cruzou em 2h58m50s. Cortou-a e logo em seguida, caiu. A chegada dos gregos Vasilakos, com 3h06m03s e de Belokas, 17 segundos depois, completara a euforia do público, mesmo que depois, Belokas fosse desclassificado por uma denúncia de ter apanhado uma boleia a meio do percurso. Dos 17 que partiram, apenas 9 completaram a prova, sendo 8 deles gregos. O único estrangeiro foi o húngaro Kellner, no terceiro lugar. Todos os velocistas que se aventuraram nos 40 km, abandonaram e encontravam-se no posto médico.
A queda por exaustão de Spiridon Louis, longe de dramaticidade, personificava o mito, naquele momento: ele era o Fidípedes moderno. Nem nos melhores sonhos do rei, de Coubertin, de Breal e do próprio Spiridon, o projeto da maratona daria tão certo. Pierre de Coubertin, quase 40 anos depois, ainda afirmava que a corrida do aldeão de Amourosion “foi uma das performances mais extraordinárias de que eu me possa lembrar”.
O impacto daquela maratona fugiu aos planos iniciais de Breal, que era apenas fazer uma única maratona, não fazendo parte dos próximos Jogos Olímpicos. Mas a cobertura da imprensa internacional levou a que outras provas do mesmo género começassem a aparecer em outros países, independentemente dos Jogos Olímpicos.
Proliferação de maratonas
A primeira maratona olímpica passou a significar para muitos, um ato possível de superação do homem, criando um encantamento e uma procura por alguns setores da sociedade. Alguns meses depois daquele 10 de Abril de 1896, já existem notícias da criação de provas similares para além da Grécia: na França, Estados Unidos, Noruega, Hungria e Dinamarca.
Além destes países, até a viragem do século, Alemanha, Itália e Suécia já organizavam também as suas maratonas particulares. A delegação norte-americana em Atenas tinha muitos membros de Boston, e um ano depois, acontecia a primeira edição da hoje histórica Maratona de Boston. Coincidência? Além disso, a modalidade fora incorporada no programa oficial dos Jogos Olímpicos.
Entretanto, Spiridon foi elevado à categoria de herói nacional. Procurado pelo rei, foi-lhe oferecido o que ele quisesse. Não há consenso sobre o que o aldeão de Amarroussion tenha escolhido. Muitas histórias foram criadas, nenhuma comprovada, desde a clemência a um suposto irmão preso, até um pedido humilde de uma carroça melhor e um cavalo mais vigoroso para transportar água.
O facto é que, para desespero dos seus adversários, que procuravam a ascensão sócio económica através desta competição, Spiridon continuaria na mesma condição social até à sua morte e não houve mais notícias de outras competições em que ele tenha participado. E mesmo só correndo duas maratonas, sendo apenas uma oficial, e no espaço de cinco dias, ele conquistou mais do que muitos maratonistas ao longo dos séculos seguintes.