Plácido Berci viveu sete meses no Quénia. Escreveu depois um livro sobre o mundo dos corredores quenianos.
Quais os segredos dos atletas quenianos que lhes permite um amplo domínio nas grandes provas de média e longa distância? Há muitas justificações, sendo uma delas a altitude onde vivem.
O jornalista brasileiro Plácido Berci viveu sete meses no Quénia e mergulhou no mundo dos corredores. As suas experiências foram agora publicadas no livro “Nuvem de Terra”.
Em 2016, Plácido viveu seis meses na capital queniana, em Nairobi, e um mês na pequena cidade de Iten, no Vale do Rift, onde vivem e treinam os corredores mais resistentes do planeta. Na terra dos kalenjin – etnia à qual pertencem os grandes corredores quenianos -, o repórter hospedou-se no hotel de Wilson Kipsang, vencedor de cinco Maratonas Majors, acompanhou diferentes pelotões numa série de treinos, fez as mesmas refeições que os atletas e fez algumas reportagens sobre o escândalo de doping que quase tirou o país dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
No fim da sua estadia no Quénia, constatou que o sucesso dos corredores quenianos deve-se a um conjunto de fatores, não a uma suposta benção dos deuses do atletismo, como alguns acreditam. A consolidação da cultura do atletismo, a genética privilegiada – com baixos índices de gordura e corpos longilíneos –, os 2.400 metros de altitude de Iten, a alimentação com pouca carne vermelha e muitos carbohidratos, além da seriedade na hora de encarar o desporto, resultam nos desempenhos que merecem elogios no mundo do atletismo.
A cultura do atletismo faz com que, quem não corre, tenha vontade de correr. O segredo não é a alimentação, é a disciplina”
“Existem várias lendas para explicar o sucesso deles. Alguns dizem que o ugali (massa que resulta da mistura entre farinha de milho e água) é o segredo. Outros dizem que é a altitude, mas nem é tão alto assim. Na América do Sul, temos cidades mais altas. O que eu vi é que lá foi criada uma filosofia de atletismo, que é seguida à risca por muitos deles. A cultura do atletismo faz com que, quem não corre, tenha vontade de correr. O segredo não é a alimentação, é a disciplina”, afirma Plácido.
Mais do que uma imersão no mundo dos corredores quenianos, o livro é recheado de relatos curiosos sobre a cultura local.
Os segredos dos atletas quenianos
Plácido fala de aspetos como a alimentação, a disciplina, o doping e o estilo de vida.
Alimentação
“ No Vale do Rift, as comidas são muito naturais. É uma região muito rural, com presença de fazendeiros de médio e grande porte. Existe ali a cultura da agricultura de subsistência, com legumes naturais, sem agrotóxicos. Eles costumam comer proteína três vezes por semana. E é muito difícil comerem carne vermelha.
Eu morei em Iten por um mês e emagreci quatro quilos. É uma alimentação muito diferente, com muitos carbohidratos. Eles também tomam muito chá, uma espécie de herança que adquiriram dos britânicos. A primeira refeição do dia é apenas um chá.”
Disciplina
“Boa parte dos corredores quenianos mora em campings, que geralmente pertencem a italianos. Cada um tem em média 20 atletas. Lá, eles têm uma rotina bem disciplinada, com alimentação regrada. Eles vivem para correr e descansar. Saem para correr, voltam e ficam a conversar em frente aos dormitórios. Não fazem mais nada além disso. É uma região bem pacata, muito simples.”
Doping
“Foram 43 casos de doping em três anos. Todos os casos provocados por EPO. Eu fazia muitos boletins para o Sportv sobre o tema, mas não falava muito com os atletas sobre isso. Eu sentia que era um assunto proibido. Quando cheguei a Iten, o jornalista alemão havia acabado de divulgar o escândalo do doping. Eu via que o pessoal estava meio desconfiado. Alguns vinham e diziam que eu trabalhava com o alemão. Foi um pouco complicado.
Aos poucos, eu percebi que era a tentação de conseguir o resultado mais rápido. As pessoas que foram punidas pela WADA sofreram uma punição ainda mais severa da sociedade. Alguns atletas nunca mais passam em Iten sem serem hostilizados. O Kipsang até me disse certa vez, que um atleta não se transforma em seis meses no que Wilson Kipsang demorou dez anos para se tornar.”
Estilo de vida
“O que eu achei curioso na minha passagem por lá, é como o atletismo pode mudar a vida das pessoas. O Kipsang, desde criança, sempre teve tino para o negócio. Queria fazer com que um dólar virasse dois, queria investir em alguma coisa. Ele abriu um hotel bem simples numa cidade queniana. Era uma maneira de ajudar a população local e de gerar empregos. Hoje, ele é uma celebridade local.
Os outros grandes maratonistas também são muito admirados. Em geral, o estilo de vida dos quenianos é muito simples. O conceito de vida ali é diferente. Eles não têm a pretensão de ter uma casa tecnológica, com TV de ecrã plano, por exemplo. Se eles ganharem dinheiro, é provável que queiram ter uma pequena propriedade rural, com a sua própria horta.
O que acontece lá muito, são os treinadores italianos ou britânicos apresentarem um mundo diferente a eles. O menino tem 17 anos, viveu a vida inteira no interior do Quénia e, de repente, vai correr uma prova em Londres. Ali ele descobre que o mundo é diferente. Esse tipo de viagem começa a mexer com as pretensões deles.”