Ricardo Nascimento, advogado e atleta amador, escreveu no ‘Observador’ um delicioso texto sobre a polémica decisão da Federação em criar uma licença para quem corre. Dado o seu interesse, reproduzimos o referido texto a que deu o título “Licença Para Suar”.
Se isto pega, imagine-se o que aí vem: carteiras profissionais para nadadores de maré vazia. Declarações para ciclistas de domingo. Alvarás para quem joga à bola no recreio.
Oferecer Correr é simples. Ou era.
Primeiro os pés, depois os
pulmões. O cérebro vem atrás,
distraído, é algo terapêutico.
Nas provas, um corredor
inscreve-se, veste uma t-shirt
com patrocínios e faz figuras
tristes nas fotos. Mas agora,
graças à Federação
Portuguesa de Atletismo,
correr deixou de ser só isso.
Passou a ser uma questão
jurídica. Uma espécie de
desporto com contrato.
A nova ideia é elegante na sua
loucura: se a corrida tiver
classificação e custar mais de
cinco euros, o cidadão comum
precisa de uma licença. Três
euros por evento ou trinta e
cinco por ano, com direito a
seguro e tudo. Um negócio
redondinho, tipo Netflix do
sofrimento voluntário. Quem
quiser correr legalmente tem
de se filiar — nem que seja
por um dia. O Estado não
exige, mas a Federação faz de
conta que sim. É uma espécie
de parafiscalidade por amor
ao regulamento.
O mais bonito é que ninguém
sabe muito bem de onde veio
esta urgência. Fala-se em
“legalizar provas”. Mas que
provas? De quê? E quem
estava ilegal? Será que correr
10 km em Rebordosa era um
ato subversivo? Uma ameaça à
ordem pública? Um atentado
ao Estado de Direito em
sapatilhas?
A Constituição — essa avó
esquecida que ainda sabe
umas coisas — diz, com
ternura, que ninguém pode
ser obrigado a fazer parte de
uma associação. E que o
desporto é para todos. Não diz
“para todos os licenciados”,
nem “mediante o pagamento
de licença para suar.” Mas
pronto, ninguém quer ser o
chato que cita artigos da lei
fundamental do país, num
domingo de manhã, quando o
dorsal está preso com alfinetes.
O problema aqui nem é o
dinheiro. O problema é a
ideia. A ideia de que correr —
esse gesto humano anterior ao
verbo — passa a precisar de
autorização. Que é preciso
registar o cansaço e rubricar a
fadiga. E que quem não
quiser, não pode.
É uma visão federativa do
mundo: onde há gente a
mexer-se, há um regulamento
por escrever. Uma marcha é
um procedimento. Um sprint é
um formulário. Um dorsal é
uma relação jurídica.
O pior é que isto até vem de
boa vontade. A Federação
quer proteger os atletas. Mas,
como muitas instituições,
confunde proteção com
controlo. E o controlo com
filiação. E a filiação com
legitimidade. E a legitimidade
com “porque sim”. Se isto pega, imagine-se o que
aí vem: carteiras profissionais
para nadadores de maré
vazia. Declarações para
ciclistas de domingo.
Alvarás para quem joga à bola no
ringue da escola. Tudo em
nome da segurança, claro.
Não tarda nada, teremos um
Ministério da Corrida, com
secretários de Estado para o
Sprint e o Trail. E para correr
à chuva? Atestado médico,
licença especial e um parecer
da Proteção Civil.
A corrida não precisa de
licença. Precisa de espaço, de
tempo e de vontade.
Não nos peçam para pagar o
que é nosso por direito.