Quantas vezes não nos sentimos cansados antes de iniciar um treino, mesmo que sem razão aparente? O mesmo se passa nas provas. Que fazer em tal situação?
Divulgamos seguidamente um interessante artigo do professor e treinador brasileiro Nelson Evêncio
Revendo o vídeo da grande atleta, recordista mundial da maratona, Paula Radcliffe, sentada no passeio e chorando após desistir da Maratona Olímpica de Atenas, onde era a favorita, cada vez mais entendo que o corpo não é uma máquina e que tem dias em que ele realmente não quer correr. Anos atrás, estava treinando para uma meia maratona importante e acordei bem cedo para fazer um treino intervalado no Parque do Ibirapuera. Já estava no período específico e aquele treino era dos mais difíceis do plano, mas tinha plena consciência de como ele seria importante e me daria confiança para a prova alvo.
O problema é que na noite anterior não havia dormido as horas necessárias e logo que iniciei o aquecimento, já senti que a coisa não estava boa. Fiz a primeira série sofrendo e em ritmo bem acima do programado. A segunda foi pior ainda, o meu organismo estava dando vários sinais negativos e como tinha um horário livre na parte da tarde, resolvi que iria interromper a sessão, ir para casa descansar e voltar para cumprir o treino inteiro depois.
Lá pelas tantas da tarde, estava eu na pista do Centro Olímpico novamente fazendo o meu treino. Já no aquecimento, senti-me bem mais à vontade. Saí para a primeira série e até foi fácil. Segunda, terceira, quarta, quinta e assim foi. Para ajudar, alguns atletas estavam na pista e ficavam gritando e incentivando a cada volta.
Séries e mais séries fortes e quando vi, já havia completado as minhas 20 de 400 metros com pausa de 100 metros trotando. Foi simplesmente inesquecível. O melhor treino da minha vida. Agradeci o apoio da turma e saí de lá rindo à toa, sentindo-me o melhor atleta do mundo!
Bom senso
Se tivesse insistido em realizar o treino na parte da manhã, além de gerar no meu organismo uma carga totalmente desnecessária e acima do programado, eu demoraria muito mais para recuperar, comprometeria a semana de treinos e correria o sério risco de sofrer uma lesão e ter que ficar um bom tempo parado, podendo inclusive ficar fora da prova para a qual tanto havia treinado.
Quando o corpo não quer correr, seja num treino ou numa prova, o mais sensato é reduzir o ritmo e, se necessário, até interromper o treino ou abandonar a prova. Que nos perdoem aqueles que acham lindas as histórias “heróicas” de quem chegou cambaleando, porém chegou, mesmo que após esse esforço tenha ficado meses sem poder calçar um par de sapatos de treino.
Na conceção mais moderna, inteligente e sensata, preconizada pelos grandes estudiosos, antes de cada sessão de treino ou prova, é muito importante saber como está o corredor.
É importante saber se dormiu as horas necessárias, se está bem alimentado e como está o seu ânimo para cumprir aquela meta.
Qualquer sinal apresentado também durante o treino deve ser avaliado. Em épocas passadas, o treinador dizia que o corredor tinha que fazer aquele treino e acabou. Alguns até fizeram resultados com esta metodologia militar, mas muitos outros talentos foram desperdiçados ou infelizmente lesionaram-se gravemente.
Indisposições
Todos nós, independentemente do nível técnico ou tempo de treino, já passámos por uma situação na qual o corpo não correspondeu, mesmo muitas vezes enfrentando um treino ou um ritmo de prova sem um grau de exigência física elevado. Os motivos são muitos:
Alimentação inadequada para aquele dia, problemas emocionais, uma noite mal dormida, um dia tenso no trabalho, temperatura adversa, falta de recuperação adequada de um treino para o outro, baixo nível hormonal, queda do sistema imunológico, indisposição estomacal, TPM no caso das mulheres, super treino, início de gripe e etc.
No trabalho próximo com os nossos alunos e atletas, temos procurado fazer planos de treino mais flexíveis e ouvi-los o máximo possível antes, durante e após os treinos. Rotineiramente, trocamos o treino mais forte pelo mais fraco e o transferimos para o outro dia, mesmo que para isso haja algum prejuízo no plano da semana. Lógico, não se pode confundir este tipo de situação com a velha e famosa preguiça. Também não se pode sair por aí parando em provas ao mínimo sinal que não se vai atingir o tempo ou colocação desejada, como muitos corredores fazem.
É preciso estar sempre atento àquelas pessoas mais manhosas, que costumam “amolecer” diante da primeira adversidade apresentada.
Mas em geral deve haver um plano de treino mais flexível e um plano B de prova, sobretudo se considerarmos que o corpo não é uma máquina programada, feita um computador, até porque os computadores também costumam dar muitos problemas!
Alternativas
Um “plano de treinos flutuante” seria uma boa solução para este tipo de situação. Um plano em que haja a opção de percorrer uma quilometragem menor ou em ritmo mais fraco em dias de indisposição, ou até aumentar um pouco o ritmo ou volume de treino, em dias onde o corredor sentir que o corpo está muito bem.
O treinador deve inclusive orientar o corredor a abandonar o plano de prova e ousar um ritmo um pouco mais forte, caso esteja sentindo-se num dia especial. Foi assim que fizeram o Vanderlei Cordeiro de Lima quando ganhou a medalha olímpica na maratona de Atenas e Marilson Gomes dos Santos ao vencer brilhantemente a Maratona de Nova York em 2006.
Quando o assunto é treino ou competição, é necessário ficar sempre muito atento às condições climatéricas, conhecer o máximo de variáveis fisiológicas possíveis e estar sempre bem perto da pessoa que elaborou o seu treino.
Daí, mais um ótimo motivo para treinar sob a orientação de um profissional qualificado, evitar o auto treino e fugir daqueles tão “milagrosos” planos genéricos, preparados como se treino fosse receita de bolo!
Algumas vezes, será mesmo necessário procurar o limite daquele dia, principalmente quando se almeja uma prova importante ou um recorde pessoal. Todavia, é importante considerar sempre que o resultado final de um objetivo é a soma de vários treinos e descansos e não somente o que você conseguiu produzir naquele dia.
Para treinar ou competir corretamente e obter sucesso é preciso muita sabedoria. Como diz a famosa frase do velho sábio: “o rio atinge os seus objetivos, pois aprendeu a contornar os obstáculos”.