Obikwelu deu hoje uma interessante entrevista a Marco Vaza, do jornal “Público” que reproduzimos, dado o seu interesse.
Francis Obikwelu nasceu na Nigéria, tendo-se naturalizado português em 2001. Rapidamente se tornou um dos melhores velocistas mundiais. Foi campeão mundial júnior em 1996 e, no Mundial de pista coberta de 1997 e no Mundial ao ar livre de 1999, foi medalha de bronze nos 200 metros. Foi já como português que Obikwelu se sagrou campeão e vice-campeão europeu e vice-campeão olímpico em Atenas’2004.
Aos 40 anos de idade, Obikwelu não põe de parte a hipótese de ir aos Jogos Olímpicos de Tóquio no próximo ano. E de ainda ser capaz de correr os 100 metros em menos de 10 segundos.
Dono de um palmarés único na velocidade nacional, o ainda recordista europeu dos 100 metros, deu hoje uma interessante entrevista a Marco Vaza, do jornal “Público” que reproduzimos, dado o seu interesse.
Aos 40 anos, decidiu voltar a correr. Porquê?
Eu nunca parei. Deixei de fazer provas em competições internacionais mas continuei a correr pelo clube, o Sporting, em estafetas, nos campeonatos nacionais. Já levava muitos anos a competir e é difícil parar de fazer uma coisa de que gosto muito. Depois, o doutor perguntou-me se eu estava interessado em competir pelos veteranos. Eu nunca tinha pensado nisso. Já ouvia falar dessas competições há muitos anos e não tinha nada a perder. Comecei a treinar há cinco meses, fui ao Campeonato do Mundo e ganhei.
Como se sentiu lá na pista?
Senti-me bem. Para mim, é sempre igual. Muita gente diz que “ah, é uma competição de veteranos”, mas é uma coisa séria, não é uma brincadeira. Havia muitos atletas profissionais que não vão lá para brincar com aquilo. Tive de forçar para ganhar. Foi muito bom, foi fantástico. Foi uma coisa espetacular.
E o tempo não foi nada mau…
Não foi! Antes, aqui no meeting no Jamor, tinha feito 6,98s.
Durante a sua carreira, o Francis sempre teve muitas lesões. Como é que está agora?
Normal. As lesões nunca se vão embora, são coisas que não se podem evitar, são a nossa vida. Já não treino como antes, quando era jovem. Agora treino como uma pessoa que já tem idade, com menos preocupação, faço as coisas de forma diferente.
A sua vida agora é diferente…
Exato. Família, essas coisas…
Já é pai…
Sim, tenho um bebé, chama-se Christian.
O treinador quer levá-lo aos Jogos Olímpicos de Tóquio…
Não sei. O treinador acredita no meu trabalho mas para mim, não são coisa em que pense muito. Penso numa coisa de cada vez. Não penso nisso. Agora, penso nos Campeonatos da Europa de veteranos em Veneza, em Setembro. Penso nunca competição de cada vez e, quando acabar esta, penso em Tóquio. Mas agora, estou a pensar no Campeonato da Europa.
Seria espetacular…
Sim… Não seria problema, era treinar como deve ser. Mas agora, é diferente. Já não estou sozinho, já não estou naquele tempo de não ter ninguém. Agora, com um filho, não é fácil! Durmo menos! De vez em quando, tenho de ir dormir para outro quarto. É diferente e ser pai é uma coisa espetacular.
Está a gostar da vida de pai?
Sim, adoro crianças, adoro a minha família. Já tinha sobrinhas, a minha irmã tem filhos que cresceram comigo, já não é uma coisa nova para mim. É emocionante vê-lo crescer todos os dias, a fazer coisas diferentes todos os dias.
Ser pai foi uma coisa que teve de ficar para trás enquanto competia…
Houve vários motivos. Não vale a pena ter um filho quando não se tem tempo para ele. Não é justo para ele. Eu estive lá na Polónia e no aeroporto (na chegada), o meu filho ficou chateado. Ele é pequenino ma sente. Não ficou contente. Estava com uma cara de “Pai, onde estiveste?” Só depois, em casa, é que quis brincar comigo mas no aeroporto, estava mesmo chateado. Mas a família é uma coisa espetacular.
Agora com a cabeça mais limpa e o corpo mais descansado, isso também o ajuda a correr
Óbvio. Um atleta com cabeça limpa, é melhor.Ter muita coisa na cabeça, não ajuda nada. Um atleta pode ter talento mas se a cabeça não está limpa, não vale a pena.
Chegou a Portugal há 25 anos. Arrependido?
Não! Vim para Portugal por um motivo. Vários! Não é muito frio – eu não gosto de sítios muito frios. O povo, a comida é parecida com a comida de África. As pessoas ajudam as outras. Não há confusão, as pessoas podem viver bem, sem stress. Portugal deu-me tudo – a Nigéria também ajudou bastante, não posso dizer que não ajudou. A vida continua em Portugal, foi um país que me apoiou em momentos difíceis e eu tentei dar glória a Portugal. É um país que eu adoro. Vou viver cá sempre. Mesmo que tenha algum trabalho fora, vai continuar a ser a minha casa. É onde vou ter sempre uma casa para viver e para descansar.
Costuma ir à Nigéria?
Sim, mas já não vou lá há quase três anos. Normalmente, vou. Para o ano, já o vou levar, para conhecer os avós. Só o conhecem graças à tecnologia.
Ainda ninguém conseguiu bater o seu recorde da Europa…
Há atletas para isso. O Jimmy Vicaut já igualou várias vezes, alguns ingleses já se aproximaram… Fazer 9,86s não é fácil. Muita gente pensa que é só chegar lá e correr… Não! É muito trabalho. E talento. Quem eu achei que podia lá chegar era o Vicaut mas ele não é um atleta constante. Iguala o recorde, vai aos Jogos e depois não faz nada (igualou o recorde em 2015, repetiu a marca em 2016 e foi sétimo na final olímpica dos 100m). Atleta não é só para bater recordes. Tem de ganhar títulos. E eu tenho muitos. E quero ter mais.
Gostava de ter corrido uma final com Usain Bolt?
Gostava. Não consegui em 2008. Não deu para passar da semifinal. Ele foi um fenómeno, do outro mundo. Conheço-o bem, falamos muito. É um gajo tranquilo, que adora desporto. Trabalha muito. Quando eu o via nos tempos em que ele era juvenil, sempre disse que ele ia ser um fenómeno.
Acha que ele se retirou demasiado cedo?
Não, foi na altura certa. Estava cansado. Foram muitos anos no topo, a bater recordes. Não é um jogador de futebol que com uma certa idade, joga meia hora, 45 minutos e pode ser substituído… O atletismo és tu e mais ninguém. Desde 2008, o Usain Bolt foi só recorde, recorde…
E o Francis também se sentia cansado?
Sim, foi por isso que deixei em 2008, para descansar. Era uma vida a levar pancada dura. Olhei para trás e disse, sim senhor, bom trabalho. Foi boa glória, mérito, trabalho e dedicação. Eu sempre fui atleta de grandes competições. Não depende do treinador, depende do atleta, se o atleta não tem a cabeça no sítio, não adianta.
O que aconteceu aos dois colegas que vieram consigo para Portugal, o Wilson Ogbeide e o Sylvester Omodiale?
O Wilson está em Portland, nos EUA. É enfermeiro num hospital, já casou, tem dois filhos. O Sylvester está cá, a trabalhar numa empresa em Lisboa. Nem toda a gente consegue, sabes… Triunfar não é fácil. Eu tinha talento superior e tinha muita dedicação e disciplina.
Ainda há dois anos, vimos o Justin Gatlin, que lhe ganhou em Atenas, a ser campeão do mundo, e depois de ter estado suspenso por doping…
Cada um faz o seu caminho. Não gosto de falar de doping. Cada um faz as suas escolhas, eu fiz as minhas e escolhi o caminho certo. Em Atenas, não consegui fazer mais nada porque estava todo roto. Já tinha feito o recorde da Europa. Há uma coisa que as pessoas não pensam. Tomem ou não tomem alguma coisa, são atletas talentosos. Fala-se de doping mas é o talento que faz a diferença.
Perdeu a medalha de ouro por um centésimo…
A culpa foi minha, não sei se tomou ou não tomou (alguma coisa). Foi erro meu, lancei-me para a meta demasiado cedo. Desde que cheguei lá, sabia que aquela prova era para eu ganhar, mas sabia que ele ia ser um adversário muito complicado para mim. Não tinha medo. Mas estava um bocadinho ansioso. Custou-me o ouro. Quando olho para ele, vejo que ele está quase na meta e começo a inclinar-me muito cedo. Mas não posso dizer que não foi espetacular. Não é para todos.
… Nesses Jogos Olímpicos e ao longo de toda a sua carreira, o Francis pedia desculpa sempre que não ganhava. Porquê?
Educação. Sentia essa obrigação. O povo paga-me para trabalhar e esse era o meu trabalho. Eu não tenho estudos, não fui à escola. Era o meu talento e o meu trabalho. De vez em quando falhamos e temos de admitir os erros. Nós queremos tanto chegar lá e, quando não chegamos, não nos podemos esconder. É um povo que me está a apoiar, com os seus impostos, para trazer a glória para eles. Esses Jogos foram um momento duro.
O Kim Collins conseguiu fazer os 100 metros abaixo dos 10 segundos quando já tinha mais de 40 anos. O Francis sente-se com pernas para fazer o mesmo?
Acho que sim. Tudo depende mim. Tem tudo a ver com a atitude. Já não tenho aquela fome de fazer uma coisa extraordinária. Estou a fazer o caminho devagar. Não vou dizer que posso fazer uma coisa, mas acho que este ano já posso fazer uma marca boa. Não tenho dúvidas de que este ano vai ser melhor do que no ano passado. Vamos pouco a pouco, com saúde, com qualidade no treino e chego lá.
Como tem sido a vida como treinador? Há talento na velocidade em Portugal?
Há talento mas não há sacrifício. Já ninguém quer treinar à chuva, por exemplo. E eu digo, eu treinava à chuva e ao frio. Aqui (no CAR do Jamor) era a bancada. E nós vínhamos aqui treinar ao frio. Vinha da Venda do Pinheiro para treinar no Jamor. Esse sacrifício já não há. Não há disciplina, chegam tarde ao treino, não dá. Só talento não chega, é preciso sacrifício.
O trabalho com o Aurelién Henry é diferente do que fazia antes?
Agora, é diferente. A idade não permite que eu treine como antes. Quando era jovem, era treinar todos os didas. Já não dá. Agora, a saúde é o mais importante, recuperar bem para treinar no dia seguinte. Treinar com ele foi a melhor coisa que eu fiz, ajudou-me bastante a recuperar, para dormir quando estou cansado.
E para cuidar do filho…
Exato! O meu filho precisa do pai.