Publicamos hoje o quinto artigo dedicado ao exercício físico nas crianças, da autoria de Ana Paula Simões, especialista em ortopedia e traumatologia do desporto.
O aumento da intensidade das atividades desportivas, combinado com a cobrança por performance diária, está tornando mais comuns as lesões por uso excessivo nas crianças. Essas lesões localizam-se principalmente na cartilagem epifisária. O termo amplo para essas lesões é a osteocondrose, também conhecida por osteocondrite, que se refere mais especificamente às condições inflamatórias do osso e da cartilagem.
A osteocondrose pode ser epifisária, fisária ou apofisária, dependendo do local afetado. A situação pode aparecer na forma primária deformante ou na forma dissecante. Embora não haja consenso sobre a etiologia da osteocondrose, múltiplos fatores parecem estar envolvidos: fatores vasculares, traumáticos ou mesmo microtraumáticos.
A maioria das lesões por excesso de uso envolve os membros inferiores, especialmente os joelhos, tornozelos e pés. Os mais típicos são a doença de Osgood-Schlatter ( joelho) e a doença de Sever (calcâneo); em ambas as situações, os tendões permanecem relativamente encurtados durante os picos de crescimento mas todas têm algo em comum: a sobrecarga.
Analisar a atividade desportiva de uma criança não é simplesmente uma questão de somar o número de horas gastas semanalmente em desportos organizados, mas também o número de atividades físicas recreativas dentro e fora da escola. Isso mostra-nos que um certo número de crianças e adolescentes pode estar sobrecarregando-se fisicamente, o que pode resultar em lesões por excesso de uso no sistema musculoesquelético.
Além disso, tem havido nos dias de hoje, uma diminuição geral na atividade física diária, como caminhar para a escola ou brincar com os amigos; essas atividades foram substituídas por atividades muito mais sedentárias, como ver televisão ou jogar videogames. Isso leva a um nível de aptidão basal mais baixo em crianças que iniciam um desporto, aumentando ainda mais o risco de lesões por esforço excessivo.
Isso cria o ambiente perfeito para um aumento de lesões musculoesqueléticas por excesso de uso, vejo diariamente isso no consultório. É importante que compreendamos melhor esse problema para melhorar a nossa compreensão do motivo pelo qual essas lesões ocorrem. O tratamento curativo não deve mais significar, suspender todas as atividades desportivas até que a criança pare de crescer, mas deve ser adaptado caso a caso. O tratamento preventivo deve continuar sendo o principal objetivo para que as crianças possam retomar as suas atividades físicas favoritas da forma mais rápida e completa possível sob condições ótimas de exercício.
Diagnóstico
A anamnese é essencial para fazer um diagnóstico. Acima de tudo, otimiza a prevenção e minimiza a recorrência de lesões por uso excessivo. A dor mecânica é o principal sinal de lesões por uso excessivo. Permite que as lesões sejam divididas em 4 etapas:
- Estágio 1:dor após atividade física;
- Estágio 2:dor durante a atividade física sem impacto na função (pode continuar participando das atividades);
- Estágio 3:dor durante a atividade física que dura o dia todo e tem impacto na função (necessidade de diminuir ou mesmo interromper as atividades);
- Estágio 4:dor durante todas as atividades físicas, até mesmo funções musculoesqueléticas básicas.
Prevenção
Mesmo que a criança e a família solicitem alívio da dor para que a criança possa continuar a praticar desporto, é importante implementar o tratamento preventivo para evitar lesões repetidas ou crónicas. Fatores predisponentes à criança para o uso excessivo de lesões precisam de ser identificados através da extensa anamnese.
Primeiro, é importante insistir em bons hábitos de vida. Os atletas adultos precisam de ter hábitos impecáveis e não há razão para que o mesmo não se aplique a atletas infantis. Assim, uma dieta pobre, hidratação inadequada e falta de sono, são fatores que devem ser levados em consideração. É importante, então, identificar o uso de equipamentos desportivos errados, por exemplo, chuteiras muito rígidas para o campo normal ou bolas de ténis que são muito difíceis para a idade da criança.
Em seguida, devem ser analisadas a quantidade e a qualidade da prática desportiva. Existe um amplo acordo sobre a regra de 10%, que afirma que a carga de trabalho não deve ser aumentada em mais de 10% por semana, a fim de permitir uma boa recuperação. Dependendo do desporto, isso significa que o tempo de treino, peso, distância ou velocidade, não devem ser aumentados em mais de 10%. No que diz respeito à qualidade da prática desportiva, é importante envolver o técnico para analisar melhor a técnica desportiva da criança e quaisquer erros de desempenho.
O nível da condição física da criança também deve ser levado em consideração. A flexibilidade contribui imensamente para o desempenho atlético e a rigidez é um fator importante nas lesões por excesso de uso, que precisam de ser combatidas durante toda a fase de crescimento rápido dos membros, mesmo quando a dor não está presente.
Assim, é importante insistir em exercícios de alongamentos. Todas as federações desportivas concordaram que o alongamento passivo deve ser evitado antes de uma sessão de treinos porque diminui o desempenho muscular. O alongamento passivo deve ser feito após as sessões de prática, mas não imediatamente, porque os alongamentos passivos são alongamentos excêntricos que podem piorar as micro lesões musculares que normalmente ocorrem durante a prática desportiva. Seria melhor organizar sessões dedicadas especificamente ao alongamento.
O estágio da puberdade da criança também deve ser levado em consideração. Lesões por uso excessivo podem ser precipitadas por pais ou treinadores que desconhecem a fragilidade da estrutura da cartilagem antes dos 12 anos. Na maioria dos casos, o treino para desportos coletivos é feito com crianças na mesma faixa etária. No entanto, esta é uma idade cronológica. Como a idade em que a puberdade começa varia muito, é compreensível que, quando a carga de trabalho seja a mesma para todos, seja um pouco pesada demais para alguns. Assim, mesmo que seja difícil na prática, o professor ou treinador deve estar ciente deste problema para melhor adaptar a carga de trabalho a cada criança.
Há também um consenso de que a especialização desportiva precoce deve ser evitada para que diferentes grupos musculares sejam trabalhados. Em qualquer caso, a especialização precoce não é garantia de sucesso desportivo, e até leva a um aumento no número de crianças que abandonam o desporto por volta dos 13 anos.
Finalmente, a criança precisa de estar envolvida no manejo preventivo. A criança atleta deve aprender a ouvir o seu corpo e expressar dor, o que pode permitir que a criança diminua a velocidade, mude ou pare o movimento doloroso, antes que as lesões por uso excessivo se tornem crónicas. Mesmo que isso possa ser difícil para a criança fazer, a família deve estar envolvida. Os primeiros sinais de lesão por uso excessivo são fadiga e diminuição do desempenho, tanto em termos de qualidade quanto em quantidade.
Tratamento
O principal tratamento para essas lesões é a suspensão temporária das atividades atléticas, combinada com a fisioterapia e em alguns casos uso de órteses. A cirurgia pode ser realizada se o tratamento conservador falhar. É melhor, no entanto, tentar evitar essas lesões, analisando e corrigindo problemas com equipamentos desportivos, hábitos de vida, intensidade de treino e nível de atividade física da criança, e evitando a especialização prematura. A dor em crianças durante o desporto não deve ser considerada normal. É um sinal de alerta de overtraining, que pode exigir que a atividade seja modificada, reduzida ou mesmo descontinuada, mesmo que provisoriamente.
Conclusão
As crianças podem obter benefícios físicos e psicológicos do desporto. Este também desempenha um papel inegável na socialização. Embora a motivação da criança seja a primeira condição para praticar um desporto, a dor continua a ser o principal fator que limita o desempenho atlético. É somente sob essas condições que as crianças podem minimizar lesões por excesso de uso. O manejo dessas lesões não é apenas médico – também deve envolver a criança, a família e o técnico. Isso facilita o papel do médico e permite que as atividades sejam reduzidas antes de serem completamente proibidas.