Quatro atletas portuguesas estiveram em grande destaque no Mundial disputado em Gotemburgo de 1995. Faz agora 25 anos que Manuela Machado, Fernanda Ribeiro e Carla Sacramento conquistaram duas medalhas de ouro, uma de prata e uma de bronze.
A primeira a entrar em ação foi Manuela Machado na maratona, no dia 5. Como recordar é viver, reproduzimos o texto então publicado na edição de Setembro pela Revista Atletismo.
Foi tudo tão natural que nem chegou a haver emoção. Isolou-se da romena Anuta Canuta aos 30 km (depois de esperar por ela para não ter de correr tanto tempo isolada) e chegou á meta com 46 segundos de vantagem, em tempo de grande categoria -2.25.39. Horas depois, sabia que a prova tivera menos 400 metros (uma volta inicial à pista) equivalentes a 84 segundos.
A prova não teve grande história. É certo que não estavam lá algumas das detentoras das melhores marcas mundiais do ano (Uta Pippig e Kamila Gradus ausentes. Elana Meyer e Tecla Loroupe nos 10000 metros, Alena Peterkova suspensa por controlo anti-doping positivo) mas é duvidoso que conseguissem derrotar uma Manuela Machado que se apresentou em “super-forma”. Temia-se em especial a polaca Malgorzata Sobanska, que lhe ganhara em Londres mas que cedo ficou para trás (embora recuperasse bem no final, acabando em quarto lugar), e a queniana Angelina Katana, detentora do melhor tempo de entre as participantes, mas que também se atrasou antes dos 15 km, vindo a desistir. Acabou por ser a romena Anuta Catuna, sexta no “Europeu” do ano passado e vencedora da Taça do Mundo deste ano (em Atenas), a única atleta a aguentar Manuela Machado até aos 30 km. A terceira classificada, a italiana Ornella Ferrara, também ela vinda de trás, ficou a largos três minutos e meio da atleta portuguesa, a única (juntamente com a romena) a baixar das duas horas e 30 minutos.
Com 24º e muito sol (a prova iniciou-se às 15.10 h), mas com baixa humidade (entre 36 e 39 por cento), as condições atmosféricas eram pouco favoráveis a bons tempos. O que mais realça a marca de Manuela Machado… mesmo com 400 metros a menos.
Menos uma volta à pista
Inacreditável a falha da organização, que só às oito e meia da noite desse dia se deu conta de que a prova tivera 400 metros a menos. Todas as informações dadas, tanto aos delegados, como aos atletas (e na instalação sonora, antes da prova) apontavam para três voltas iniciais à pista. O croqui da prova, apresentado no programa oficial dos campeonatos, embora não referindo o número de voltas, apontava (pela localização do 2º km) para isso mesmo. Talvez alertados pelos tempos de passagem, os organizadores foram rever o vídeo, contataram o medidor do percurso (que se encontrava já no exterior do estádio, no carro que iria liderar a prova, quando foi dada a partida) e terão chegado então à conclusão de que eram quatro e não três as voltas iniciais à pista. Já de madrugada, mantiveram as classificações e anularam as marcas. No dia seguinte, realizaram uma conferência de imprensa para explicar o … inexplicável. Atendendo ao andamento de Manuela Machado, esses 400 metros iniciais seriam equivalentes a 84 segundos, pelo que o seu tempo passaria de 2.25.39 para 2.27.03, mesmo assim recorde pessoal (antes: 2.27.42).
Efetivamente, revendo os tempos de passagem légua a légua, verifica-se que a primeira foi a única corrida em menos de 17 minutos, apesar da lentidão dos primeiros quilómetros. Vejamos:
5 km 16.42 (16.42)
10 km 34.17 (17.35)
15 km 51.31 (17.14)
20 km 1.08.39 (17.08)
Meia 1.12.32 1.12.32
25 km 1.26.00 (17.21)
30 km 1.43.11 (17.11)
35 km 2.00.35 (17.24)
40 km 2.17.55 (17.20)
Marat. 2.25.39 1.13.07
Três momentos
A história da prova pode resumir-se a três momentos:
15 km: Na frente, já só estavam cinco atletas: Manuela Machado, as romenas Anuta Catuna e Lidia Simon (10ª no final), a espanhola Mónica Pont (6ª) e a japonesa Sachiyo Seyama (9ª). A queniana Angelina Kanana (que desistiria) já vinha a uns 30 metros e a polaca Malgorzata Sobanska (que subiria a quarta no final) ainda mais atrasada seguia.
19 km: Manuela Machado e Anuta Catuna ficaram na frente e a vantagem sobre as demais nunca mais parou de crescer.
30 km: Manuela Machado atacou e ganhou. Antes – confessou no final – sentira as dificuldades por que passava a sua adversária mas, não querendo atacar demasiado cedo sozinha, algumas vezes esperou por ela. Até que, chegada a altura, deu um forte esticão e facilmente se isolou. Nos últimos 12 km ganhou os 46 segundos de vantagem.
E agora… Atlanta’ 96
Depois do título europeu de Helsínquia’94 e do título mundial de Gotemburgo’95, seguem-se os Jogos Olímpicos de Atlanta. Tal como Rosa Mota oito anos antes, Manuela Machado tem todas as condições para conseguir esta série de títulos, tanto mais que já demonstrou ser mesmo uma corredora de grandes campeonatos…
Manuela no pódio
“O que senti? Sei lá, não há palavras para descrever isto tudo. É uma coisa que vem de dentro. É demais. É um momento especial, nem dá para pensar em nada. O pensamento até foge. Só dá mesmo para ver a bandeira e ouvir o hino…”.
A frase
“Faltaram 400 metros? Se quiserem, ainda os vou fazer…”.
Resultados
1ª Manuela Machado (POR) 2.25.39
2ª Anuta Catuna (ROM) 2.26.25
3ª Ornella Ferrara (ITA) 2.30.1
4ª Malgorzata Sobanska (POL) 2.31.10
5ª Rita Lemettinen (FIN) 2.31.19
6ª Monica Pont (ESP) 2.31.53
7ª Linda Somers (EUA) 2.32.12
8ª Sonja Krolik (ALE) 2.32.17
9ª Sachiyo Seyama (JAP) 2.33.07
10ª Lidia Simon (ROM) 2.33.18
ANTES DA PROVA
FAVORITISMO – “Ser a principal favorita é uma responsabilidade? Se é ou não, não sei. Mas não me preocupa nada, para mim é igual ao litro…”
FORMA – “A prova é difícil, eu sei que estou bem, muito melhor mesmo que no ano passado, a avaliar pelos treinos, mas pode haver qualquer coisa a correr mal…”
TÁTICA – “Para mim, o que conta é como me sinto. As táticas, essas, falham muitas vezes. Na altura, quilómetro a quilómetro, é que se vê. E como a minha treinadora vai estar no percurso, logo vamos vendo…”
A PROVA
PRIMEIROS QUILÓMETROS – “Não gostei, houve demasiados esticões, por parte da francesa, da italiana e da queniana. Esta, tinha-a sempre debaixo de olho, sabia que não a podia deixar fugir muito. Fui sempre a controlá-la mas, a certa altura, ela ficou para trás e ‘desapareceu’. Nem sabia que tinha desistido”
DECISÃO – “A Sameiro, aí por volta dos 28 km, à entrada para a última das três voltas, disse-me para arrancar quando sentisse que era altura, mas que o fizesse rápido. No entanto, antes de sair, ainda esperei pela Catuna algumas vezes. Vi que ela esteja a fraquejar, mas não queria correr tantos quilómetros sozinha. A dada altura, reparei que ela já não dava mais e, então, ataquei mesmo. Dei um esticão forte e resolvi tudo…”
RESCALDO – “Custar, custa sempre, mas, se fosse necessário, teria dado mais um bocado. Fui sempre a controlar. Sabia que a Catuna podia dar luta, já a conhecia de outras provas, sabia eu ela tinha ganho uma maratona em Atenas (na Taça do Mundo) mas eu estava muito confiante. No último teste que fiz antes do Mundial, gastei mais de um minuto menos que no ano passado, antes de ser campeã da Europa. E isso deu-me muita confiança”.
SAMEIRO ARAÚJO
“TERIA SIDO CAMPEÃ OLÍMPICA”
Sameiro Araújo e a prova:
“Esta foi a prova em que a Manuela me deixou mais tranquila. Sabia que ela estava a atravessar um excelente momento de forma”.
Sameiro Araújo e os Jogos de Atlanta
“Este título é um bom princípio mas ainda falta um ano de muito trabalho e a maratona dos Jogos Olímpicos é uma prova diferente. Se fosse hoje, acredito que, pela maneira como ela correu, poderia ter sido campeã olímpica”.
A FESTA
PRÉMIOS – “Para mim, os prémios não são o mais importante. O que conta é que, com esta vitória, o meu nome fica escrito, fica para a história…”
MERCEDES – “Claro que fico com ele. Um prémio não é para ser vendido. Mas vou continuar a guiar o Opel Corsa que ganhei numa maratona em Lisboa e darei o Mercedes para o meu marido conduzir. E ainda ficamos com um Daihatsu que ele já tem”.
DINHEIRO – “Não vou dizer que não gosto de dinheiro, o dinheiro é bom. Mas não me preocupo demasiado com ele. Com o dinheiro que ganhei no atletismo, fiz a minha casa. O resto vai para a conta bancária. Sim, já é uma conta razoável e que vai aumentando. Mas ainda não pensei como irei aplicar o dinheiro. Talvez um dia compre um apartamento, mas quando chegar a altura, pensarei nisso”.
BANDEIRA – “A bandeira não foi a mesma do ano passado, esqueci-me dela na mesinha de cabeceira. Mas aparece sempre outra…”
O FUTURO
NOVA IORQUE – “Se for a uma maratona, será essa. Mas não a prepararei tão bem como o fiz em relação a esta ou à dos Jogos Olímpicos. Preparo sempre melhor as das grandes competições que, para mim, são as mais importantes”.
JOGOS OLÍMPICOS – “Claro que os Jogos Olímpicos são um momento especial, mas não me vão tirar o sono, nem me vou estar a preocupar em demasia com eles. Não se ganha nada com isso… Sei que as pessoas me vão apontar como uma das favoritas, também sinto que sou agora mais candidata do que era antes deste Mundial, mas não vou pensar que irei ganhar. Irei lutar, sim, por uma das medalhas. Ganhar uma medalha olímpica, qualquer que ela seja, é o meu grande objetivo”.
FAMÍLIA – “Depois dos jogos Olímpicos, tenho duas hipóteses. Se ganhar uma medalha, fico mais um ano para a tentar fazer render, aproveitando o tempo perdido. Se não, vou pensar na família, vou pensar em ter filhos, o máximo, dois. Para já, um, depois logo se verá”.
FINAL DE CARREIRA – “Quando vir que já não dá, passo à manutenção. Algum dia terá que ser… Os Jogos do ano 2000? Não, já não estarei na alta competição, são muitos anos, começa a saturar… Nessa altura, estarei a correr meias maratonas pelo simples prazer de correr…”