Ontem, ao prepararmos a Conferência sobre o meio fundo com os convidados Fonseca e Costa, Sameiro Araújo e António Sousa, encontrámos uma extensa entrevista feita em 2019 a Sameiro Araújo para a “Tribuna Expresso” por Alexandra Simões de Abreu.
Nela, é passada em revista a vida de Sameiro, desde a sua infância até aos dias de hoje, os seus tempos de atleta, como chegou a treinadora do SC Braga, com grande destaque para a época de ouro dos anos 80/90 em que treinou algumas das melhores atletas nacionais.
Dado o seu inegável interesse, reproduzimos na íntegra a entrevista conduzida por Alexandra Simões. Ficamos a conhecer melhor a SENHORA ATLETISMO, uma treinadora de referência, não só no atletismo como no desporto nacional.
“A minha mãe dizia que correr de calções não era apropriado para meninas. Acabei por investir mais no atletismo que nas relações amorosas”
O atletismo foi e será sempre o seu verdadeiro amor. Ainda hoje, aos 61 anos, depois do expediente como vereadora da Câmara Municipal de Braga, Maria do Sameiro Araújo veste o fato de treino e vai para a pista do Estádio 1.º de Maio orientar atletas. Diariamente e por carolice. Foi a primeira e única treinadora portuguesa a ter no currículo atletas seus campeões do Mundo e da Europa, em mais do que uma disciplina. Tem formação superior em psicologia e apesar de saber que é cada vez mais difícil, não esconde que continua a sonhar com uma subida de um/a atleta seu ao pódio olímpico. Esta é a entrevista de vida à senhora atletismo.
Nasceu em Prado, Vila Verde, uma vila que fica mais ou menos a dez quilómetros de Braga. Pode caracterizar a sua família?
A minha mãe, Irene, era doméstica e o meu pai, Joaquim, era encarregado de uma empresa do pai, de construção civil. Tenho um irmão, Júlio Araújo, mais novo 2 anos.
Que recordações tem da infância?
Vivi em Prado até aos meus 7, 8 anos. Fiz a escola primária em Prado e em São Paio Merelim que é uma freguesia ao lado, onde vivi 2 anos. Aos 10 anos, fui viver para Braga com os meus pais.
Quando era pequena, era a típica menina de brincar com bonecas ou gostava mais de andar a saltar e a jogar à bola?
Quando era pequena, gostava muito de fazer aquilo que normalmente as miúdas não faziam (risos), mas interrogava-me muitas vezes porque é que o meu irmão tinha determinados jogos, brincava de determinada forma, e eu supostamente tinha que brincar de maneira diferente. Talvez por isso, quando estava no 5º ano e a minha professora de educação física convidou os alunos a irem a umas competições de atletismo no estádio 1º de Maio, da minha turma só foram 2 meninas e 5 ou 6 rapazes. Resolvi ir.
Os seus pais aceitaram bem?
Não, de maneira alguma. Foi uma luta muito grande, principalmente com a minha mãe que era contra. O meu pai era mais complacente, não me apoiava muito, mas também não me contrariava. A minha mãe, sim, foi uma luta durante muitos anos.
O que dizia?
Dizia que o atletismo não era para meninas, era para rapazes. Que eu deveria ter outros interesses, porque andar a correr e a saltar de calções não era propriamente aconselhável para uma menina. Isso manteve-se durante muitos anos. A minha mãe nunca aceitou muito bem que eu tivesse feito desporto.
Não mudou de atitude quando viu o seu sucesso?
Penso que ela não quis dar o braço a torcer. Nunca, pelo menos, aparentemente, valorizou aquilo que eu fazia. Sempre foi contra, foi toda uma vida a criticar, a dizer para eu abandonar, porque os fins de semana eram muito ocupados com competições e, por norma, aos fins de semana íamos aos meus avós. E eu ter que ficar em Braga, sozinha com o meu irmão e não acompanhar os pais à aldeia para visitar os avós para ela, era muito complicado e difícil de gerir.
Quando foi àquela prova, no 1.º de Maio, a convite da sua professora, fez o quê?
Lembro-me de ter feito uma prova de 60 metros e de salto em comprimento. Mas também desde cedo, me apercebi que não tinha qualidades para ser atleta. Mas fui fazendo atletismo enquanto estudava
Depois do 12.º ano o que fez?
Na altura não havia 12.º, só havia o 7.º ano que equivale agora ao 11.º. Depois, ou fazia um curso de Serviço Cívico, ou entrava na faculdade. Na altura estava muito dividida, não sabia o que queria fazer. Tinha 17, 18 anos, andava na Alliance Française e resolvi ir até Paris. Tinha lá família, fui passar o natal com os meus familiares e os meus tios disseram: “Já que estás aqui e como não estás a fazer nada porque é que não ficas connosco até agosto? Vais connosco para Portugal, quando formos de férias. Até lá fazes o curso da Alliance Française em Paris que é muito mais rápido e intenso”. E fiquei em Paris, de dezembro a julho.
Gostou desse tempo em Paris?
Sim, adaptei-me bem. Foi uma experiência muito positiva, mas foi um interregno no atletismo, na minha prática desportiva durante esses seis meses.
O que estava a fazer no atletismo quando foi para Paris?
Treinava resistência. Passei por todas as disciplinas no atletismo, como não era boa em nada, andava a saltar para ver se conseguia encontrar algo que fizesse melhor.
Quando é que tem a perceção de que não tem capacidade para ser boa atleta?
Nessa altura entre os 17, 18 anos. Vi que por mais que treinasse, por mais dedicada que fosse, nunca conseguiria fazer os resultados que almejava.
Nessa altura tinha referências de outras atletas portuguesas ou estrangeiras?
Não, porque vivia o atletismo de uma forma muito local. Comparava-me com as minhas colegas de Braga e com as melhores a nível nacional. Lembro-me que, quando voltei de Paris, voltei à prática e comecei a ver que dificilmente encontraria um resultado que me satisfizesse. Foi numa altura em que o Sporting de Braga ficou sem treinador e eu fui convidada para orientar as minhas colegas por um período provisório.
Foi convidada por que já tinha mostrado interesse no treino?
Era muito certinha e muito dedicada. Era a primeira a chegar e a última a sair do treino. Não conseguia resultados, mas era muito empenhada. Tinha já um curso de animador desportivo, talvez por isso, também, embora não fosse a atleta mais velha era aquela em quem as pessoas confiavam. Seria por uma semana, quinze dias, um mês, não mais do que isso. Só que as coisas foram-se protelando. Quando comecei a ver que ia passar de uma situação provisória a uma situação mais definitiva, comecei a fazer a minha formação como treinadora de atletismo.
Como é que se fazia a formação nessa altura?
Lembro-me de que estávamos em 1974/75, havia cursos através da Direção Geral dos Desportos para todos os animadores desportivos e treinadores. Havia uma proliferação de cursos, e fiz tudo o que fosse curso a nível de desporto; um deles dava-me habilitações para dar aulas de educação física. Em 1981 comecei a dar aulas de educação física.
Antes disso, falemos da revolução de abril. Tinha consciência política ou nem por isso?
Não ligava à política, mas sempre me interroguei muito sobre questões sérias. Porque é que havia homens com determinadas profissões vedadas às mulheres, por exemplo. Lembro-me que no 25 de abril, eu andava na Escola Carlos Amarante, fui normalmente para a escola e não houve aulas. Havia uma grande confusão. Andávamos no recreio, depois uns iam embora…
Não se apercebeu o que era e o que significava?
Não, comecei a aperceber-me disso quando vi as notícias na televisão. Comecei a questionar: “Está a haver uma revolução porquê? Revolução implica militares na rua, não vejo nada aqui em Braga?”. Depois comecei a ver as imagens de Lisboa e foi aí que comecei a consciencializar-me mais politicamente. Já tinha uma consciência sobre as desigualdades de género, mas em termos políticos tudo me passava ao lado.
Entretanto, em 1981, foi dar aulas. Quem foram as suas primeiras atletas?
Lembro-me que era um grupo bastante grande, umas quinze. Eu fiquei com a parte feminina e um colega meu ficou com o setor masculino. Comecei a sentir que, como treinadora, se me aplicasse, se estudasse, poderia chegar aonde como atleta nunca teria condições físicas para chegar. Investi seriamente toda a minha formação na área do treino.
Ainda vivia em casa dos pais?
Nunca saí da casa dos meus pais. Mais recentemente, já depois de 2000, o meu pai faleceu e a minha mãe ficou a viver comigo.
Lembra-se da primeira vez que foi como treinadora a uma competição nacional ou internacional?
A primeira competição, foram regionais.
Estava muito nervosa?
Não, porque comecei a ser treinadora das minhas colegas mas continuava a ser atleta, continuava a competir.
Até quando?
Competi até aos vinte e poucos anos. Porque depois não sendo uma atleta credenciada digamos assim, fazia falta à equipa em termos de competições e ia sempre, tentando colaborar com a equipa e ajudar a conseguir boas classificações colectivamente.
Quem foi a primeira atleta que sentiu que tinha um valor capaz de chegar mais longe?
Em 1981/82, apareceram no clube duas atletas que efetivamente vi que poderiam dar um salto muito grande. A Conceição Ferreira e a Albertina Machado. Até então, treinava todas as atletas do SC Braga desde velocistas, saltadoras, fundistas, treinava toda a gente.
Todas as disciplinas?
Sim, durante alguns anos. Não sei exatamente precisar, mas talvez em 1986, 87, vi que para conseguir dar resposta às atletas que já treinava, principalmente na área do meio fundo, necessitava de especializar-me e arranjar alguém no clube para ficar com as velocistas, com as outras disciplinas técnicas. Foi aí que o SC Braga contratou outra treinadora, a professora Teresa Borges que veio de Lisboa, para me dar uma ajuda ficando com as atletas dessas especialidades. Fiquei só com o meio-fundo porque tinha atletas com grande talento, com grande qualidade. e não podia estar a dispersar-me. Recordo que a Conceição e a Albertina apareceram em 1981, 82 e em 84, já foram aos Jogos Olímpicos (JO), a Los Angeles.
Foram também os seus primeiros JO.
Exatamente. Quer dizer, não foram os meus primeiros porque eu não fui.
Explique lá isso.
A Federação Portuguesa de Atletismo (FPA) não tinha quotas de treinadores para acompanhar os atletas e nessa altura, só foram cinco atletas do setor feminino. Duas eram treinadas por mim, a Albertina e a Conceição, e era mais a Rosa Mota, que tinha o treinador dela, a Aurora Cunha, que tinha o professor Fonseca e Costa, e a Rita Coelho, do Benfica, que ia à maratona. Foi a primeira vez que o atletismo feminino português esteve representado nos JO. Como havia quotas, naturalmente foi o treinador da Rosa Mota, o professor Fonseca e Costa e o professor Moniz Pereira com os masculinos.
Sentiu-se revoltada por não ir?
Não, compreendi perfeitamente. O professor Fonseca e Costa era treinador da Aurora Cunha que nessa altura, já era uma atleta consagrada, a Rosa Mota foi medalhada e as minhas atletas estavam no início do percurso, do seu processo como atletas. Agora eu queria muito ir porque ter atletas nos JO pela primeira vez é um marco para qualquer treinador. Quis ir, mas não tinha dinheiro para pagar uma viagem para Los Angeles e estar lá dez dias, pagar o hotel… Cheguei a ponderar vender o meu Citroën Dyane para ir a Los Angeles.
Mas não o fez.
Não. Os meus pais, a minha mãe principalmente, disseram que era uma loucura, que não fazia sentido. Mas eu estava mesmo empenhada em ir, só que depois vim a saber, porque desconhecia completamente que não podia ir para a aldeia olímpica, que tinha de ficar num hotel fora e que dificilmente poderia contactar com os atletas, porque não tinha acreditação para ir para os locais de treino. Portanto, ir para Los Angeles por ir, só para poder ir ver o dia da prova na bancada e não poder estar com elas… O bom senso acabou por imperar e acabei por não vender o carro.
Acompanhou pela televisão.
Sim. Na altura, não havia telemóveis, havia telexes e faxes (risos) e lá se mandava um telex para alguém, que fazia chegar às atletas.
O que fizeram as suas atletas em Los Angeles?
A Conceição fez a maratona, creio que foi 23.ª, e a Albertina fez os 800 e os 3.000 metros e ficou-se pelas eliminatórias.
Estava dentro das suas expetativas?
Sim. A nossa vitória foi fazer a marca de qualificação e chegar aos JO. Lá, era fazer o melhor resultado possível e fizeram. A Albertina fez praticamente as marcas que lhe deram acesso aos JO, só que era muito nova, muito jovem, tinha pouca experiência internacional.
Além de treinar, elas estudavam e/ou trabalhavam?
A Albertina estudava e trabalhava. A Conceição apenas trabalhava. A Conceição era empregada doméstica. Na altura dos JO já não era, porque a partir do momento em que fez os mínimos, a Câmara Municipal de Braga arranjou-lhe um emprego em part-time que lhe permitia treinar e preparar-se minimamente para os JO. A Albertina trabalhava num escritório e estudava à noite. Fez mínimos para ir aos Jogos a trabalhar, a estudar e a treinar. Treinava às sete da manhã, ia trabalhar para o escritório às nove, saia às cinco da tarde, ia treinar e depois ia às aulas à noite.
Hoje ainda se encontram atletas assim?
Não, porque os miúdos hoje têm tudo. Antigamente, as pessoas tinham que lutar por aquilo que queriam e por isso valorizavam tudo. Toda a conquista que se fazia era uma vitória. O percurso era um caminho feito de conquistas. Hoje têm tudo, portanto não se valoriza tanto.
Lembra-se quando conheceu o professor Moniz Pereira?
Lembro: foi num estágio no Algarve em 1980 ou 81. Quando comecei a treinar a Albertina e a Conceição, o professor Moniz Pereira tinha responsabilidades na FPA, convidava as melhores atletas nacionais para estágios, para preparação de campeonatos do Mundo e por norma convidava-me também a mim, como treinadora.
Com que opinião ficou dele?
Uma pessoa espetacular, aliás muito daquilo que sou, devo-o ao professor Moniz Pereira. Tive dois treinadores que foram uma referência para mim em Portugal, com os quais aprendi muito: o professor Fonseca e Costa e o professor Moniz Pereira. O professor Moniz Pereira foi sempre uma presença muito constante no meu percurso como treinadora. Nesse primeiro estágio, ajudou-me muito. Durante o dia tínhamos o treino, treinávamos de manhã, treinávamos à tarde. À noite reuníamos, conversávamos, trocávamos ideias, eu era uma aprendiz de treinadora e ele foi muito importante. Sempre que necessitava de qualquer coisa, ele estava disponível e tentou de certa maneira valorizar-me.
De que forma?
Recordo que uma vez, talvez em 1986/87, fez um artigo para “A Bola”, com o título “Não é de Praga, mas é de Braga”, numa altura em que se estava a contratar muitos treinadores estrangeiros e tudo o que vinha do estrangeiro é que era bom. Eu já tinha atletas com resultados muito interessantes e recordo-me que ele fez essa analogia. Foi uma forma de tentar valorizar os treinadores portugueses.
Quem foi a primeira atleta sua a conseguir um título nacional?
Em 1984, a Conceição Ferreira, que foi campeã nacional da maratona.
Quando foi para a competição já sabia que ela ia ganhar, tinha esse pressentimento?
Tinha. A maratona em 1984 era uma coisa muito nova para as mulheres em Portugal. Só havia a Rita Coelho, a Rosa Mota que estava a dar os primeiros passos, mas a precursora da maratona foi a Rita Coelho, apesar de quem teve maiores resultados ter sido a Rosa, que já tinha sido campeã da Europa. Eu sabia que, para além delas em Portugal, não havia atletas de qualidade a fazer a maratona. Sabia que a Conceição, nesse campeonato nacional, não estando presentes nem a Rosa, nem a Rita Coelho, seria a vencedora. O nosso grande objetivo, para além de ganhar a prova, era fazer menos de duas horas e quarenta e cinco para lhe dar acesso aos JO. Lembro-me perfeitamente de toda a corrida como se fosse hoje. Ela ia a correr, eu ia de carro a acompanhar, ia um polícia à frente dela, normalmente a polícia acompanha os primeiros homens e as primeiras mulheres. A partir dos 35 quilómetros, ela estava a ter uma ligeira quebra e eu estava a começar a stressar porque estava a ver que ia ser muito difícil conseguir a marca. Ao meu lado a conduzir o carro, ia um dirigente do SC Braga, o Tinoco Marques. Ele virava-se para o polícia que ia de mota, e dizia: “Senhor polícia, corte as curvas que essa menina tem que fazer mínimos para os JO, corte as curvas”. Só que ele nem se lembrava que o percurso da maratona é marcado precisamente a cortar as curvas, porque ninguém é parvo e eles sabem que os atletas faziam isso com certeza [risos].
Nesses momentos o que é que uma treinadora diz à atleta?
Posso dizer que gritei imenso, cheguei ao fim da prova afónica como estou hoje (risos), porque há aquela força que tentamos transmitir aos atletas. Para alguns funciona, para outros não. Tentava encorajá-la, dizia: “Estás quase em Los Angeles, estás quase nos Jogos, mais um esforço”, e pronto, valeu a pena. Nesse ano, a Albertina Machado também foi campeã nacional.
A Conceição acreditava também?
Sim, mas quando fiz o desafio à Conceição para ela fazer a maratona, e recordo que foi a primeira maratona dela, não tínhamos qualquer referência, ela respondeu: “Estás tolinha” (era por ‘tu’ que ela é mais nova do que eu só três ou quatro anos). Eu sabia que os 3.000 metros era uma distância muito curta para ela e os tempos pedidos eram muito rápidos, dificilmente os faria, na maratona tinha hipóteses. E ela responde aquilo: “Eu, maratona? Não consigo”.
O que lhe respondeu?
“Alguma vez te enganei, alguma vez te criei falsas expetativas?”. Sempre fui uma treinadora muito realista, nunca fui de criar ilusões aos atletas. Motivá-los sim, mas com os pés assentes na terra. “Acredita. Até podes não conseguir, mas ficas lá muito perto”.
Se ela estava habituada a fazer 3.000 metros como é que sabia que conseguia fazer a maratona?
Pelas características dela. Tinha muita facilidade em fazer treinos longos, a rolar como nós dizemos. Tinha uma marca razoável à meia maratona que dava alguma margem de segurança e a maneira como ela fazia os treinos longos…Eu via que podia fazer dela uma maratonista. Tinha espírito de sacrifício também.
Numa maratona, a parte psicológica pesa muito mais do que, por exemplo, nuns 3.000 metros?
Sem dúvida. Ela é uma lutadora. E sempre que fazia provas, subíamos a distância, dos 3.000 passou para os 10.000 com êxito, dos 10.000 subiu para a meia maratona e teve êxito. Todo o percurso dela levava-me a pensar que podia fazer uma boa maratona. E como havia poucas mulheres a fazer a maratona, a marca era acessível, o nível de exigência não era tão grande como para os 3.000. Ainda não havia 10.000 metros para mulheres nos JO, só para homens. Os 10.000 para mulheres só surgiram em Seul 1988. Os 5.000 ainda foram mais tarde.
Qual é o momento em que sente que está na profissão certa e que vai ter sucesso?
Não é tanto pelos títulos nacionais, mas por ter atletas selecionadas para a seleção nacional. Primeiro, para a seleção nacional de corta-mato e, depois, para os JO. Aí senti-me verdadeiramente treinadora. Não é que antes não sentisse. Tive atletas nacionais a partir de 82; em 82, estreei-me num Campeonato do Mundo, mas foi o clube que pagou. Fui a Roma, tinha duas atletas, a Conceição Ferreira e a Albertina Machado.
Foi a expensas do clube também porque não havia quota?
A FPA tinha os técnicos responsáveis pelas seleções nacionais, o professor Moniz Pereira e o professor Fonseca e Costa. Em 1983, também fui por minha conta. Em 1984 não fui e a partir de 1985/86 já era eu responsável das seleções.
Ascendeu rapidamente na sua carreira.
Eu comecei como treinadora em 1975. A partir de 1982 comecei a ter atletas na seleção nacional, portanto ainda foram uns anos.
Quando é que resolve tirar o curso de psicologia?
Eu já trabalhava, era professora de educação física, treinava, estava requisitada pela FPA e comecei a sentir que havia na minha formação um défice. Agora a psicologia faz parte dos cursos de treinadores de atletismo, mas em 1981 não. Sentia esse défice na minha formação. Como tinha algum tempo disponível porque estava requisitada, resolvi fazer a minha formação a nível de psicologia. Nunca foi para exercer psicologia, mais como um complemento à minha formação de treinadora. Sempre considerei que a psicologia podia ser um instrumento para eu utilizar no dia a dia enquanto treinadora. Mas nunca poderia ser a psicóloga das minhas atletas. E por várias vezes senti isso na pele.
Como?
Porque sendo treinadora das atletas, estou demasiado envolvida emocionalmente com elas e por isso não consigo ter a frieza e a distância necessárias para analisar e ajudar a atleta. Vou dar um exemplo: em 1996, a Manuela Machado tinha tudo para ser medalhada nos JO de Atlanta. Tinha sido campeã da Europa em 1994, campeã do Mundo em 1995, em 96 tinha feito um grande resultado e era apontada como principal candidata. Considero que fizemos tudo bem feito e chegámos lá e a Manuela foi 7ª. Quem me dera a mim e a Portugal ter muitas atletas em 7.º nos JO, mas para nós soube efetivamente a pouco. Quando a Manuela chegou à Aldeia Olímpica, depois da prova, deitou-se em cima da cama a chorar, nem tomou banho. Eu cheguei ao pé dela, fiz-lhe uma festinha na cabeça e só fui capaz de dizer: “Temos de continuar Manuela. Temos mais 4 anos. Não conseguimos agora, há que trabalhar mais 4 anos para conseguirmos em Sidney”. E fui para o meu quarto chorar também. Eram muitos anos de trabalho, a abdicar de muita coisa, principalmente ela, numa luta constante.
Hoje, a distância toda, consegue explicar o que é que aconteceu?
Para mim foi o facto de haver uma atleta que era a principal adversária da Manuela e que saiu. A Manuela tinha algumas atletas adversárias que tinha que marcar, e, quando a alemã Uta Pippig saiu, a Manuela não tinha mais nada a fazer, porque era uma das adversárias, e foi com ela. Só que a atleta pôs um ritmo excessivamente forte muito cedo e depois desistiu. Entretanto, já havia um grupo estabelecido e acho que a Manuela fez um desgaste grande para acompanhar a atleta alemã e na parte final ressentiu-se. E, depois, é o que ela diz, quando vê que não vai para as medalhas, inconscientemente desliga. Ela perde o 6.º lugar já na pista e disse que se viessem sete, oito, passavam todas, porque quando viu que já não tinha hipótese de conseguir, foi mesmo um balde água fria.
Demorou a passar
Sim, demorou muito tempo, foi uma marca que perdurou muito no tempo, muito mesmo. E depois, algumas críticas da comunicação social e de algumas pessoas… Recordo que, passados meses, eu chego ao treino e encontro-a muito triste. A Manuela, que não era triste, era sempre uma pessoa muito alegre, uma pessoa divertida. Pergunto-lhe o que é que se passa, insisti e ela acaba por dizer que estava em Viana numa caixa multibanco a levantar dinheiro e que ouviu alguém a comentar que ela era a vergonha de Portugal. Isso marcou-a profundamente durante muito, muito tempo.
Quando é que foi buscar a Manuela?
Foi numa São Silvestre, em Braga. A Manuela foi correr, a Conceição e a Albertina que eram as melhores atletas que eu treinava, não correram, mas correram as outras e ela ganhou a São Silvestre. Eu pensei: não conheço esta miúda de lado nenhum, não a vejo nas pistas a fazer resultados, de certeza absoluta que esta miúda nem treina e já conseguiu ganhar às minhas atletas, esta miúda tem qualidade. Falei com um senhor que corria nos veteranos que já conhecia a Manuela de andar nas provas populares. Foi ele que me levou a casa dela, um dia à noite, para falar com ela. Ela praticamente nem treinava, ela competia muito aos fins de semana.
Foi consigo que ela aprendeu o que era um treino, o que eram tempos.
Exato, ela não fazia a mínima ideia. Nos primeiros treinos, era curioso porque ela chegava à pista e começava logo a correr com velocidade exagerada e eu: “Manuela tem que ser com calma”. E ela “Isto para eu andar tem que ser rápido senão depois nas provas ando devagar.” (risos). Já ela era campeã do Mundo e às vezes chateava-me com ela no treino. Estava a fazer um treino de pista, eu chegava: “Manuela isso está rápido, tem que ser mais devagar”. Quando estávamos só a três semanas da maratona para o Campeonato do Mundo ou para o Campeonato da Europa, ela dizia: “Ó Sameirinho o que é que tu queres, as pernas andam sozinhas, eu tenho de lhes fazer a vontade” (risos). Acontecia também quando ela já estava em forma e a motivação era grande, porque para as maratonas comerciais ela não valorizava tanto.
De todos os títulos que foram conquistados, qual foi aquele que a marcou mais?
Curiosamente não foi nenhum título de campeã da Europa ou do Mundo. Há três momentos que considero muito importantes. O primeiro foi quando a Conceição e a Albertina fizeram mínimos para ir aos JO pela primeira vez. Depois, não foi quando a Manuela foi campeã do mundo, mas quando foi vice-campeã do mundo em Atenas 1997. Ela tinha vindo de um processo de um acidente de automóvel, tinha fraturado o externo, a seguir tinha feito uma anemia e toda a gente aconselhava-a a não ir ao campeonato do Mundo. Eu própria para a proteger enquanto atleta, era de opinião que não devia ir, mas ela tanto insistiu que eu acabei por ceder seis dias antes. Emocionei-me muito, foi das medalhas mais bonitas que conseguimos conquistar. O terceiro momento é quando a Conceição Ferreira foi campeão do Mundo da meia-maratona, em Bruxelas, em 1986. Não era favorita e conseguiu derrotar duas atletas que teoricamente eram muito superiores.
Quando um atleta faz uma grande competição, ganha um prémio. E os treinadores também ganham? Como é que funciona? Recebia só um vencimento do SC Braga?
Só comecei a ser remunerada pelo clube a partir de 1983 ou 1984. Até aí, só recebia o ordenado de professora de educação física. Nessa altura, nem o atleta ganhava, nem o treinador. Creio que só começou a haver prémios monetários para medalhas em campeonatos da Europa, campeonatos do Mundo e Jogos Olímpicos, em 1994/95. Antes não havia. A partir daí, começa a haver bolsas do IPDJ, da Federação. Para o treinador, acho que eram 50 ou 70% do que era para o atleta.
Mas quando são provas comercias, arranjadas muitas vezes pelos empresários para ganhar dinheiro, aí o treinador também recebe?
Não. Há muitos treinadores que têm acordos e cobram 10% aos atletas, quer dos prémios, quer até às vezes daquilo que os atletas ganham nos clubes. Eu nunca quis. Primeiro, se eu era paga por um clube, não fazia sentido estar a cobrar ao atleta. Dos prémios nunca quis. É óbvio que se por algum motivo, quisessem dar-me uma prenda quando conseguiam ganhar muito dinheiro, o faziam e efectivamente fizeram-no. Agora, dinheiro, posso dizer que nunca cobrei nem aceitei dinheiro. Uma vez, a Manuela Machado fez sem eu saber uma transferência para a minha conta, não sei como é que ela soube o meu NIB. Tive uma conversa com ela e disse-lhe: “Nunca mais fazes isso”. E comprei este anel [mostra o anel] de ouro branco com brilhantes. Não quis o dinheiro, com ele comprei uma prenda. Ela apercebeu-se e a partir daí ofereceu sempre uma prenda.
Há alguma prenda que lhe tenham dado e que tenha um significado especial?
Por vezes, há atitudes que valem muito mais do que uma prenda. Um simples bilhete que as atletas às vezes faziam ou um postal que traziam com alguns dizeres e chegavam cá e me entregavam, isso às vezes era muito mais importante do que prendas mais valiosas. Guardo isso tudo.
Foi presidente da Associação Portuguesa de Atletismo por pouco tempo porquê?
Demiti-me porque as coisas não estavam a funcionar. Senti que, estando em Braga, tinha muitas dificuldades em fazer um bom trabalho quando tudo está em Lisboa. O Comité Olímpico está em Lisboa, o IPDJ está em Lisboa, a sede da FPA está em Lisboa, a Associação Nacional de Treinadores está em Lisboa. Não tinha disponibilidade para fazer o trabalho que gostaria de fazer, então demiti-me. Não é algo do qual me orgulhe, porque efetivamente não fiz o trabalho que gostaria de ter feito.
O que é mais difícil no trabalho de um treinador?
Eu agora treino muitos mais homens do que mulheres, mas durante muitos anos treinei muito mais mulheres do que homens. Treinava 1, 2, 3 homens, era residual. Penso que treinar mulheres é mais difícil. Por uma questão de personalidade, as mulheres são muito mais emotivas, requerem muito mais a atenção do treinador, são muito mais competitivas entre elas. Tem que se gerir muito mais as emoções e a sensibilidade delas. Se por exemplo, num momento mais difícil de uma atleta, lhe estamos a dar mais atenção porque está mais frágil, há outras atletas que não compreendem. São muito mais quezilentas, mas também são muito mais dedicadas. Quando têm um objetivo lutam muito mais, entregam-se muito mais do que os homens. Atenção, estou a falar no geral. Treino homens que são de uma entrega e de uma dedicação total.
Que outras dificuldades encontrou?
Durante muitos tempo era vista de uma forma…”Pronto, a Sameiro é treinadora, é porreiro. Até é porreiro num curso de treinadores com 30 e tal treinadores, ter uma miúda”. Senti que de certa forma eu não estava…
Não estava a ser respeitado o seu trabalho?
Sim. Muitas vezes o meu trabalho não era reconhecido. Desde muito cedo, comecei a perceber que para ser respeitada tinha de apresentar resultados. Explicava muitas vezes às atletas, isso mesmo. Não era só eu que estava em causa, elas próprias também estavam. Nos anos 80, também tiveram muitas dificuldades para se impor. Quando vinham para a rua correr eram insultadas. Aquelas mais ajuizadas não respondiam às provocações, mas havia outras que respondiam à letra. Por isso, dizia-lhes também que, para sermos respeitadas e para nos verem como atletas de alto rendimento, tínhamos de apresentar resultados. Quando comecei a ter atletas com resultados, a ir às seleções nacionais e principalmente aos JO, as pessoas começaram a respeitar-me.
Até os seus pares?
Exatamente.
Quando percebe que as mentalidades estavam a mudar? Foi em algum momento específico, alguma frase que tenha ouvido?
O primeiro atleta homem que treinei, o Jorge Pinto, uma vez chegou ao pé de mim e disse: “Andam aí uns melros que têm a mania. Passam a vida a querer gozar por eu treinar contigo”. “Mas porquê?”. “Porque dizem que um homem treinar com uma mulher não tem jeito nenhum, onde é que já se viu”. “O que é que respondeste?”. ” Respondi: eu treino com uma mulher mas ela já ganhou não sei quantas medalhas e o teu treinador, os vossos treinadores, quantas medalhas ganharam em campeonatos da Europa, em campeonatos do Mundo?”. Foi nessa altura que pensei: alto, há aqui alguma coisa que está a mudar. A partir daí, também começaram a vir rapazes para o grupo de treino.
A quererem vir treinar consigo ou que foi buscar?
Nunca fui buscar ninguém, tirando a Manuela e mais 2 ou 3 atletas; basicamente, os atletas é que vinham ter comigo. Então masculinos, vieram todos ter comigo.
O que é mais difícil de lidar no treino com homens?
As mulheres são mais disciplinadas, no geral. Há muitos anos, dei uma entrevista ao Expresso em que disse que as mulheres, no geral, lutavam mais pelos objetivos, eram muito mais dedicadas, empenhadas e valorizavam mais a sua ascensão social, enquanto os homens valorizavam mais os ganhos financeiros, tinham esse cunho muito mais vincado. À conta disso, tive um dos irmãos Castro, não me lembro se o Domingos ou o Dionísio, muito zangado comigo por eu ter dito aquilo. Mas eu disse no geral, não estou a dizer que é A, B ou C. Nessa altura tive esse pequeno desaguisado (risos). Mas a verdade é que eu notava que, por exemplo, a Fernanda Ribeiro, a Conceição, a Albertina, a Manuela, nessa altura valorizavam muito mais a promoção social delas, a aquisição do estatuto. Os homens por sua vez estavam sempre a ver qual era a prova que dava mais dinheiro, para ir aquela prova.
Ainda é assim?
As coisas mudaram. Agora as mulheres estão como os homens. Mas eu compreendo perfeitamente, em alta competição e se são profissionais, têm que olhar pela sua vida porque vivem daquilo.
Tem pena de não ter treinado a Fernanda Ribeiro?
Sempre tive uma relação de grande proximidade com a Fernanda. Acho que ela sempre esteve muito bem entregue. Eu enquadrei tecnicamente a Fernanda em várias seleções nacionais. Lembro-me que, em 1988, ela já treinava com o João Campos e o João Campos foi ao aeroporto levar-me a Fernanda, que ia aos JO de Seul, e disse: “Cuida aqui da minha menina”. Em Seul, a Fernanda Ribeiro não me largava, andava sempre com a Albertina, com a Conceição e nos estágios, enquadrava-se muito bem. Por isso nunca pensei sequer em treinar a Fernanda.
Ela é considerada por várias pessoas a nossa melhor atleta de sempre. Concorda?
Sim. Em termos de projeção mundial com as marcas que fez, sem dúvida. A Rosa Mota também só que a Rosa Mota foi muito boa na maratona. A Fernanda foi muito boa nos 3000, nos 5000 e nos 10.000m. Mas a atleta mais completa até considero que foi a Conceição Ferreira, porque é a única atleta portuguesa em termos individuais a conseguir conquistar medalhas em campeonatos da Europa ou do Mundo, na estrada, no corta-mato e na pista. A Rosa Mota foi na maratona, a Fernanda Ribeiro foi na pista. A Albertina Dias foi no corta-mato. A Conceição foi medalha de prata europeia nos 10.000 m, foi campeã do mundo na estrada e foi medalha de bronze num campeonato do mundo de corta-mato; portanto, a mais completa terá sido ela. Se bem que em termos de importância e de visibilidade, sem dúvida que a Fernanda e a Rosa foram melhores. Assim como o Carlos Lopes e o Fernando Mamede são expoentes em disciplinas diferentes, se bem que o Mamede nunca foi campeão olímpico.
Mais por razões psicológicas porque as qualidades físicas estavam lá.
Exatamente. Por isso é que quando me perguntam o que é mais importante, se é o treino se é a mente, eu digo 50% para cada lado. Não tenho dúvidas. Sem treino não vais lá, mas se não tiveres uma força mental grande… Tenho dito várias vezes que a Manuela Machado não foi a atleta que eu treinei com mais talento, mas foi a que ganhou mais medalhas.
Porque a Conceição Ferreira não foi mais longe?
A Conceição poderia ter sido excelente na maratona mas nunca gostou de treinar para a maratona. Fez a maratona nos primeiros dois JO porque era aí que ela conseguia fazer marcas para ir a uns JO, nas outras disciplinas teria muito mais dificuldades, mas logo que apareceram os 10.000 m e que conseguiu fazer marcas nessa distância, abdicou completamente da maratona, não gostava de treinar para a maratona.
Os anos 80 e 90 foram os anos de ouro do atletismo português, mas depois houve uma quebra. Isso aconteceu porquê?
Penso que em termos de IPDJ e de COP, até começou a haver um apoio maior do que havia antes. Mas o investimento dos clubes começou a diminuir e no caso concreto do meio fundo e fundo, que era onde conseguimos ganhar muitas medalhas, os prémios monetários das provas de estrada baixaram significativamente.
Porquê?
Crise económica do país. Os patrocinadores deixaram de investir e os clubes e os organizadores de provas deixaram de investir. Mas houve alguma continuidade, não com o mesmo número de atletas, mas houve. Na altura em que a Rosa e a Aurora Cunha deixaram a competição, deixaram depois a Conceição, Albertina Machado e Albertina Dias, mas começaram a aparecer a Manuela, a Fernanda Ribeiro, a Carla Sacramento. A seguir a essas atletas apareceu a Dulce Félix, Sara Moreira e Jessica Augusto. Só que as atletas começaram a ter objetivos diferentes e a não valorizar tanto aquilo que se valorizava antigamente, como os campeonatos da Europa de corta-mato que eram uma prioridade e deixaram de ser. Começaram a fazer outras opções. Temos de ver que as solicitações são muitas.
Em que sentido?
Há 30 anos, poucas modalidades havia para o feminino. Ou iam para a natação ou iam para o atletismo, não havia mais nada. Hoje, há muita coisa e as pessoas dispersam muito.
É mais difícil detetar talento agora?
Sim. Mas mais difícil ainda é fazer o acompanhamento do talento da escola para o clube. Na escola, é onde tudo começa e é onde deviam ser acompanhados os talentos para depois serem enquadrados nos clubes.
Isso deixou de fazer-se?
Houve treinadores que o fizeram. Eu era uma das treinadoras que tinha muitos atletas, porque além da minha escola ser uma base de recrutamento grande, também me socorria do trabalho de dois ou três professores de educação física importantes, nas escolas de Braga, que faziam o seu trabalho a nível de desporto escolar e que detetavam talento. Depois, nós convidávamos para ir para o SC Braga. Havia outra coisa muito importante para o meio fundo e fundo: as provas de estrada, que proliferam como cogumelos nos anos 70 e 80. Agora ainda existem mas são provas de estrada de meias maratonas, provas de massas. Não era como antes em que havia provas para todos os escalões etários e víamos os meninos, os jovens. Agora, a meia maratona de Lisboa tem 20 mil pessoas, mas não tem crianças, não tem jovens. Há algumas provas que têm escalões jovens, mas quem é que vai a essas? São os clubes que já existem, não são as escolas, não são os clubes de bairro, onde havia os chamados carolas que deixaram de existir e que eram importantes para a modalidade.
Depois da Manuela Machado e da Conceição Ferreira, a atleta que volta a destacar-se consigo foi a Jessica Augusto.
Sim.
Que entretanto quis mudar de treinador. O que aconteceu?
Não aconteceu nada. A Jéssica mudou de clube, do SC Braga para o Maratona, achou que o grupo em que estava inserida não lhe dava grandes garantias de evolução e resolveu mudar.
Não foi nada consigo?
Não. Continuo a dar-me bem com a Jéssica. Não foi uma chatice ou ruptura.
Teve pena?
Tive.
Acha que ela se prejudicou?
Não direi isso. Ela comigo, foi campeã da Europa de juniores. Só que há aquela transição de júnior para sénior que é algo complicado. A Jéssica sempre ganhou tudo muito fácil quando era júnior e os primeiros anos de sénior são difíceis. Ela achou por bem mudar de grupo de treino; tudo bem, foi.
A seguir à Jéssica, foi a Dulce Félix quem se evidenciou na sua equipa.
Sim.
Disse numa entrevista que a Dulce era uma atleta à moda antiga. O que quis dizer?
A Dulce quando veio treinar comigo, ainda trabalhava numa fábrica. E notei aquela característica que tinham as atletas do anos 80, com uma dedicação, um espírito de sacrifício e de luta grandes. Treinar de manhã cedo antes de ir trabalhar, não é fácil. Mas volvido algum tempo, eu e o marido dela na altura, que também era treinador de atletismo, mas que não quis ser treinador da Dulce, achámos por bem ela deixar de trabalhar na fábrica por aquilo que estava em perspetiva e que já estava a conseguir fazer. Se deixasse de trabalhar, conseguia dar um salto muito maior e isso veio a concretizar-se. Mas sou das poucas treinadoras que aconselhou atletas a deixar de trabalhar. Só fiz isso a duas atletas que foi à Manuela Machado e à Dulce Félix.
A Dulce também já não está a treinar consigo
Não, esta época desportiva a Dulce passou a treinar com o atual companheiro dela, o Ricardo Ribas, que também foi meu atleta. Ele licenciou-se em Educação Física, fez cursos de treinador de atletismo. A Dulce, sendo mãe, o ter de deslocar-se de Guimarães a Braga e tendo eu menos disponibilidade… não fazia muito sentido e achamos por bem ela passar a treinar com o Ricardo. Foi de comum acordo entre os três.
Até que ponto é que a maternidade pode ou não prejudicar uma atleta?
Eu não considero que prejudique. É óbvio que há um interregno de um ano, mas há vários exemplos de atletas que regressam e que conseguem fazer resultados ao seu melhor nível. Temos casos recentes, como os da Jéssica Augusto, Sara Moreira e agora da Dulce Félix, que regressaram aos níveis a que estavam antes de serem mães.
O contrário pode acontecer ou é um mito? Ou seja, os muitos anos de alta competição podem dificultar uma gravidez?
Julgo que não. De todas as atletas que treinei, e foram centenas, a única que quis ser mãe e não conseguiu foi a Manuela Machado. Aconteceu à Manuela como acontece a milhares de mulheres e que não fazem qualquer tipo de desporto.
Tem no seu grupo a Mariana, filha de Albertina Machado e, ao que consta, promete ser uma atleta de topo. Pode vir a ser melhor do que a mãe?
Sim. Aliás, está a bater os recordes da mãe quando esta era sénior e ela ainda é júnior. Tem batido os recordes nacionais da Fernanda Ribeiro, de juvenis de juniores. Um atleta pode ter muita vontade, pode ser muito forte psicologicamente, mas se não tiver os genes, se não tiver condições fisiológicas para…
É vereadora desde 2013. Porque é que se meteu na política, como é que foi convencida?
Nem eu sei (risos). Foi um convite que surgiu totalmente inesperado. Nunca imaginei estar ligada à política, nunca estive ligada a qualquer partido político. Apoiei determinadas personalidades [Jorge Sampaio e António Guterres] nas comissões de honra, mas foi só.
Dois socialistas, mas está como vereadora na câmara liderada pelo PSD.
Sou independente e eu não apoiava em termos de ser do PS, da CDU ou do PSD, mas pelas pessoas em si.
Nestes quase seis anos, do que mais se orgulha do trabalho que fez?
Há coisas que são distintivas. O tratamento de todas as modalidades desportivas por igual. Dou um exemplo, quando vim para a Câmara Municipal, esta pagava as inscrições de todos os atletas de futebol. Tinha um protocolo com a associação de futebol, a todos os atletas de todos os clubes de Braga era-lhes paga a inscrição e o seguro. Logo no primeiro ano em que assumi disse: “Sim senhora, há para o futebol, há para todas as modalidades”. Conseguimos dar mais apoio à inclusão social, ao desporto adaptado que é uma das nossas bandeiras. Tentar generalizar a prática desportiva à população é para mim muito importante. Criámos um programa que veio fazer com que todas as pessoas possam fazer desporto gratuitamente. Temos 13 programas desportivos direcionados à população. Também me orgulha mais recentemente, termos conseguido não só ser a melhor cidade europeia de desporto de 2018, mas ter sido a melhor cidade europeia de sempre, é motivo de orgulho para mim e para todo o movimento associativo de Braga. Hoje são muito mais as pessoas que fazem atividade física e desporto em Braga.
Isso significa que vai recandidatar-se?
Não, significa que ainda tenho 2 anos e meio pela frente e que ainda quero fazer mais e melhor, principalmente a nível das infraestruturas desportivas.
Mantém-se como treinadora. Neste momento quantos atletas treina?
Ainda devo ter de 12 a 15 atletas, agora muito mais homens do que mulheres.
Porquê, houve um desinteresse das mulheres no atletismo?
Não. Desde o momento em que deixei de ser coordenadora do SC Braga, deixei de ter a incumbência de fazer captações, de ir às escolas, para tentar detetar talento e os convidar. Deixei de fazer isso e desde que vim para a Câmara deixei de ter qualquer vínculo com o SC Braga. Neste momento treino atletas do SC Braga, do Benfica e do Sporting.
É treinadora particular?
Sou uma treinadora que gosta muito daquilo que faz. São atletas que eram treinados por mim e que o SC Braga não lhes deu condições para continuar no clube, o caso da Dulce que foi para o Maratona, outros para o Benfica.
Quem é que lhe paga?
Ninguém.
Quantas horas por semana?
Muitas. Sempre que posso, e ultimamente tenho podido todos os dias, estou na pista a partir do momento em que saio da Câmara até à hora do último atleta terminar. Treino na pista do 1º de Maio. Estou assim desde 2013, altura em que abdiquei para não haver mal entendidos com o SC Braga. Também não fazia sentido eu estar na Câmara Municipal, ser vereadora do desporto, e estar num clube que é apoiado pela câmara, a receber no clube. Portanto, desde essa altura que abdiquei de todo e qualquer pagamento por parte do SC Braga.
Os últimos JO ficaram marcados por uma polémica à volta da Filomena Costa e Jéssica Augusto. O que aconteceu e em sua opinião o que esteve mal?
Não foi uma polémica entre a Jéssica e a Filomena, porque elas foram as menos culpadas neste processo. A culpa toda foi da FPA que definiu critérios que não foram cumpridos. Não salvaguardaram o interesse nacional. Isto é, ao dizer que vão aos JO as 3 atletas que tiverem melhor marca da data X até à data X, têm que ser essas 3 atletas a ir. E aí iria a Filomena. A FPA achou que, embora a Jéssica em Londres não tenha feito melhor do que a Filomena, tinha antes de ser mãe, melhores tempos que a Filomena, e que lhes daria mais condições de que a Filomena para ter uma boa prestação nos JO.
Que explicação é que a FPA lhe deu enquanto treinadora da atleta preterida?
Não deu.
O presidente da FPA, Jorge Vieira, nunca falou consigo sobre esse assunto?
O prof. Jorge Vieira falou comigo depois da decisão tomada, de eu e a atleta sabermos pela comunicação social, depois de eu ter mostrado o meu desagrado e ter ficado estupefacta porque não estavam a ser cumpridos os critérios. Nessa altura o prof. Jorge Vieira ligou-me, queria reunir comigo e com os treinadores das atletas envolvidas na maratona. E eu recusei ter essa reunião. Não faria sentido, a decisão estava tomada, a seleção estava feita, para quê a reunião? O COP até predispôs-se a levar a Filomena como suplente, mas ela recusou porque achava que por direito próprio devia lá estar. A Jéssica tem um recorde pessoal superior ao da Filomena, mas, se há critérios, eles têm de ser cumpridos ou então não se fazem critérios. Diz-se, como o Moniz Pereira dizia muitas vezes como selecionador: “Os critérios são os meus e eu é que decido quem levo”. Não estava totalmente de acordo com ele mas…Em algumas coisas tinha razão. Agora, aquela situação é que não foi clara. Se eles queriam salvaguardar a posição da Jéssica, porque a Jéssica tinha sido mãe, tinham dito, por exemplo: vão os 2 melhores tempos e para a 3ª atleta vamos ter em atenção o recorde pessoal, o historial em grandes competições. Tinha-se precavido.
Isso desmotivou muito a Filomena?
A Filomena andou muito em baixo durante muito tempo. Nos últimos tempos, tem tido algumas lesões que têm impedido inclusive de fazer maratonas. É um sonho dela estar nos JO de Tóquio. A ver vamos.
Que objetivos é que ainda tem por concretizar no atletismo?
O objetivo que possivelmente nunca o irei concretizar que é ter uma medalha olímpica. Tenho atletas campeões da Europa e do mundo, falta a medalha olímpica. É isso que ainda me move, embora eu saiba que cada vez é mais difícil.
Porquê?
Porque cada vez mais, o nível de exigência é maior, cada vez mais em termos de resultados de meio fundo português, estamos a distanciarmos.
Isso acontece por aquelas razões que disse há pouco, a base de recrutamento ser menor…
…E não só. Porque hoje são poucos os jovens que querem ter uma disciplina para ser atleta de alta competição. Querem resultados aqui e agora, de imediato. E os pais às vezes, ainda são piores do que os filhos. Os jovens agora têm muito mais apoio do que tinham os atletas há 20 ou 30 anos, os paizinhos vão levá-los ao treino, vão buscá-los, as crianças são muito menos autónomas. E não estão para esperar. Dizem “O quê? Eu para ir a uns JO tenho de treinar 6,7, 8 anos? Para ganhar uma medalha tenho de treinar 8, 10 anos?” Poucos são aqueles que estão dispostos a treinar e a saber esperar. Algo que aquelas atletas antigas souberam fazer. Fomos construindo uma carreira degrau a degrau. Se agora mostro um plano de carreira a um atleta que tenha 2 ou 3 anos de treino e vê que só vai aos JO daqui a 8 anos, ui “O que é que eu vou fazer entretanto?”.
O que responde?
Eu digo, primeiro vais tentar ser campeão regional, depois vais tentar ser campeão nacional, depois vais tentar ser recordista nacional e fazer mínimos para ir a um campeonato da Europa, depois de ir a um campeonato da Europa, vais tentar ser finalista, depois vais tentar ganhar uma medalha…Tudo isto faz parte de um percurso.
Disse numa entrevista que nos últimos 20 anos só fez quatro vezes férias.
É verdade. Mas este ano vou fazer. Não sei ainda aonde, mas vou fazer (risos).
Sente que a sua vida pessoal foi prejudicada por causa da profissão?
Não direi que foi prejudicada porque fiz sempre aquilo de que gosto e sempre me entreguei de alma e coração. Se não fosse eu gostar tanto do treino, tendo a minha vida tão ocupada agora na Câmara e não tendo rendimento nenhum do atletismo, já tinha abandonado. O atletismo deu-me tanta coisa. Deu-me muito. Se calhar em determinados momentos, prejudiquei a minha vida pessoal, mas não estou arrependida. O que vinha do outro lado era tão gratificante. Sempre investi mais no atletismo do que nas relações amorosas. Tive-as como toda a gente.
Nunca casou?
Não. O meu raciocínio também era do género, se um dia casar e tiver filhos, a minha carreira como treinadora vai ser complicada. Como é que vou para estágio uma semana, deixo os filhos, trago os filhos? Quanto ao companheiro, estamos a falar de mentalidades de há 30 anos, para tolerar isto, o ir para competições todos os fins de semana, ir para o estrangeiro, para os meetings, para os campeonatos do mundo, da Europa… não é fácil.
O não ter sido mãe nunca lhe causou conflito interior.
Não. Sempre tive a minha vida muito cheia, com muitos atletas, porque sempre fiz formação. Sempre tive desde atletas mais novos aos mais crescidos. O caso da Filomena Costa, ela veio treinar comigo aos 10 anos, tem 33. Como é que uma pessoa não se envolve emocionalmente com os atletas? São muitos anos. Foi e continua a ser a minha família.
A sua mãe ainda é viva?
É, tem 86 anos e vive comigo.
Dos sítios todos por onde viajou qual aquele que lhe deu vontade de voltar para fazer turismo?
Conheço muitas pistas, aeroportos e hotéis (risos). Nos últimos anos já comecei também a conhecer um bocadinho as cidades, porque tinha muito enraizado em mim a ideia de que ao ir para uma competição no estrangeiro, tinha de estar ao pé do atleta; se ele estivesse no hotel eu também estava, se estava na pista, eu também. Tinha que fazer um acompanhamento praticamente 24 h. Agora já não.
De tal maneira que a Manuela Machado andou a fugir-lhe?
(risos). Pois foi. Em Gotemburgo. Eu levei-lhe um chazinho a pensar que ela estava na cama e ela tinha-se pirado (risos).
A Manuela também já contou que a prof. Sameiro ficava mais nervosa do que ela antes das provas. É verdade?
(risos). É. Irritavam-me os helicópteros, não sei porquê. No dia das maratonas, os helicópteros começam muito cedo a fazer o reconhecimento do percurso e os hotéis por norma são próximos. Como ela sabia que me irritava, abria a janela do quarto: “Anda cá, olha ali, já estão ali os helicópteros. Enerva-te lá” (risos).
Qual foi a prova em que mais se enervou, foi a da Manuela nos JO de Atlanta?
Curiosamente, não porque aí eu estava tão segura do trabalho que tinha feito e de que ela ia ganhar uma medalha. Só que, claro, ganhar uma medalha não depende só da atleta, depende também das adversárias. A prova em que me irritei mais com ela foi no campeonato da Europa de 1994, em que ela foi pela primeira vez campeã da Europa, em Helsínquia. A Manuela não gostava de ir a correr em grupos grandes e aquilo ia muito lento. Aos 16 km, ela passa por mim – iam para ir umas 20 atletas na frente – e diz-me: “Estou farta disto”. Eu tinha-lhe dito: “Não vais sair rápido, vai com elas para teres alguma ajuda durante o percurso”. Aos 16 km, disse-lhe então: “Manuela acelera um bocadinho só para ver quem reage”.
E ela foi-se embora
(risos). Eu vou para os 21 km, para vê-la passar nessa altura. E aos 21 km, já ela vinha sozinha. “Para quê isso Manuela! Porquê isso”. Fartei-me de gritar. Não devia ter feito. Porque transmiti-lhe alguma instabilidade. Dos 16 aos 21 km, acelerou de tal maneira que ficou sozinha e aquilo que eu pretendia é que ela acelerasse um bocado para irem 3 ou 4 porque um grupo assim pequeno, conseguem ajudar-se e depois, quando ela resolvesse atacar, já era mais fácil. Mas quando vejo que ela vai ter de fazer 21 km sozinha, fiquei extremamente nervosa.
Mas correu bem.
Espere. Fui para o estádio e estava a ver a prova no ecrã gigante. Ela chegou a levar 2 minutos e meio de avanço. Sempre que passava um quilómetro, ela perdia tempo. As outras a aproximarem-se. Eu a ver ela a começar a perder terreno, a perder, quando teria ganho aquilo facilmente, aí sofri muito. Ela acaba por ganhar só com 15 ou 20 segundos de distância para a segunda.
Alguma vez teve de dar uma dura valente a um atleta?
Sim. A uma atleta de alta competição, medalhada. Eu mandei-a fazer um determinado treino e ela disse: “Estás maluca? Não faço”. Nós tínhamos uma relação de anos e uma diferença de idade de 3, 4 anos, tratamo-nos por tu. Ela estava a dar voltas no parque ao lado do estádio 1º de Maio. Na volta seguinte, disse-lhe: “Não queres fazer não faças. A partir de hoje procura treinador”. Saí do parque e fui para a pista. Nesse dia, ela nem foi à pista, foi direta para o balneário. No dia seguinte, não perguntou nada, eu deixei a pasta onde tinha os planos de treino dos atletas na mesa do balneário e fui para a pista. Os colegas vieram dizer-me que ela foi ao dossiê ver o que tinha a fazer e fez. No dia seguinte a mesma coisa. Ao terceiro dia, levei a pasta comigo. Ela chega à pista: “O que é o treino?”. Eu disse-lhe: “O treino é isto e no final vamos conversar”. No final, ela diz: “Eu arrependi-me logo. Sabes como é que eu sou”. “Então porque é que no final do treino não vieste ter comigo?”. “Sabes como é, o orgulho, às vezes…”. E disse-lhe: “Tu com os resultados que tens, qualquer treinador te aceita, tens um leque grande”. “Mas não é isso que eu quero” (risos).
De todas as condecorações que já teve e que foram várias, foi condecorada com o European Coach Award em 2012, medalha de mérito desportivo e medalha de honra pelo governo português, entre outros, qual foi o reconhecimento a nível institucional que mais significado teve para si?
Foi a Ordem Olímpica porque não estava de todo à espera. Nunca tendo eu conseguido que uma atleta minha conquistasse uma medalha olímpica, não estava de todo à espera. Por isso, tocou-me muito.
Vai deixar o seu legado a quem? Tem alguma treinadora que seja sua seguidora?
Curiosamente, durante muitos anos, um dos motivos que me levava a ser responsável pelas seleções, porque também há chatices e ao fim de uns anos quis sair, mas um dos motivos por que fiquei, eram os argumentos do professor Fernando Mota, na altura diretor técnico nacional. Ele dizia que eu era uma referência para as mulheres treinadoras portuguesas. Praticamente não havia e se havia era uma ou outra na área da formação desportiva. Eu era o exemplo de que era possível uma mulher chegar ao topo, chegar à alta competição. Na altura, havia a Jenny Candeias na ginástica, nas outras modalidades não havia. Recordo-me que houve uma treinadora, dos Açores, que estava a iniciar a carreira, que veio ter comigo, disse-me que se não fosse eu se calhar ela nunca seria treinadora. Vi que era importante e esse foi um dos motivos que me levou, nos momentos mais complicados, a não bater com a porta. Agora já há várias treinadoras femininas, mas ligadas à alta competição é que há poucas, no atletismo conheço a Anabela Leite do Sporting, a Ana Oliveira do Benfica e agora a Susana Cabral (mulher do Rui Silva) que está a começar a treinar atletas do Benfica.
Que conselho é que dá a essas treinadoras?
Primeira condição única é gostar muito daquilo que se faz. E se não tiver uma disponibilidade quase total, não vale a pena.
Qual foi a maior a chatice que teve? Foi institucional, com um colega, um atleta?
Foi com um clube, o SC Braga. Numa altura tivemos um presidente que só via futebol, como a grande maioria, e a Manuela já tinha resultados, a Conceição era a atleta que era e não tínhamos qualquer tipo de apoio. As atletas estavam há 10, 12 meses sem receber e eram tratadas muito, muito mal. Quando era nova, eu era demasiado irreverente. Dizia coisas que, efetivamente, agora, fazendo uma retrospectiva, penso, muito me aturaram eles (risos). Eu dizia mal do presidente do clube, dizia mal do presidente da Câmara. Não era bem dizer mal, mas confrontava as instituições e sendo eu treinadora do clube, e na altura já era paga pelo clube, convenhamos que…
Porque é que acha que isso mudou, esse paradigma?
À medida que o futebol foi ganhando espaço as outras modalidades começaram a perder, nitidamente. Lembro-me que nos anos 80, as minhas atletas iam a um cross a Espanha, o que acontecia quase todos os fins de semana, e nós chegávamos ao aeroporto e tínhamos lá a RTP à nossa espera. Eu já me chateava de falar para a televisão, dizia: “Hoje falas tu quando chegarmos ao aeroporto”.
Porque é que nunca foi para um dos chamados clubes grandes?
Primeiro porque sempre gostei imenso do SC Braga.
Sente alguma falta de reconhecimento?
Não. Fui reconhecida institucionalmente pelo governo português várias vezes, noutros anos pela Federação também, fui reconhecida pelas instituições europeias, agora pelo COP. Mas sobretudo sinto o reconhecimento por parte dos meus atletas e isso é o mais importante. Sinto que há reconhecimento de amizade e de gratidão e isso para mim, é muito mais importante do que tudo o resto.
É crente?
Sou.
Fez ou faz promessas?
Não. Cumpri uma vez uma promessa que foi feita pelas minhas atletas em 1997, quando a Manuela foi vice campeã do mundo, vinda do acidente. As atletas mais jovens, a Jéssica que na altura era juvenil, tinha 15 anos, prometeram ir ao Sameiro a pé, se a Manuela ganhasse uma medalha. Como ela ganhou, fui com elas ao Sameiro a pé.