A placa de fibra de carbono na entressola dos ténis Nike dispara especulações sobre as fronteiras do doping tecnológico
A Nike inventou um sapato atómico para que um atleta baixe das duas horas na maratona . Entre o recorde atual da maratona (2h2m57s) e a meta (1h59m59s) há 178 segundos, um salto de 3%. Nunca na história se baixou tanto de uma só vez o recorde da maratona, mas nunca antes um fabricante como a Nike tinha anunciado ténis que permitem reduzir em 4% o gasto energético necessário para correr. Se a declaração, baseada em análises de laboratório, pode ser corroborada na prática, o que fisiologistas e biomecânicos duvidam, os atletas escolhidos para a façanha, Kenenisa Bekele e Eliud Kipchoge, ainda não foram capazes de correr em duas horas na recente tentativa no Autódromo de Monza. Ao seu lado, empalidece o 1% de vantagem prometidos pelos novos ténis da Adidas, marca que também compete pela maratona em menos de duas horas e que anuncia uma sola forrada de uma espuma especial que devolve a maior parte da energia que o atleta deposita na passada.
Além do seu peso, inferior a 200 gramas, a sua forma aerodinâmica e a sua inclinação para a frente, o segredo e a polémica do tênis Nike, batizado VaporFly Elite, está na entressola e têm a forma alargada na frente e estreita atrás de uma finíssima e rígida placa de fibra de carbono incrustada na borracha. “Correr com esses ténis será como descer um monte, não será possível correr devagar”, anunciaram os investigadores que inventaram o produto. No mercado, custará 250 dólares.
Assim que o truque ficou conhecido, houve vozes começaram a levantar-se colocando em dúvida a legalidade das placas e do seu efeito de mola ou catapulta. A IAAF, órgão que deve aprovar todos os materiais, já anunciou que estudará o caso e a redação do artigo que as regulamenta e que proíbe usar qualquer “vantagem injusta”. De fibra de carbono com efeito mola, também eram as polémicas próteses que permitiram a Oscar Pistorius correr com pernas artificiais contra atletas de carne e osso.
O desporto, um mundo conservador e nostálgico que se agarra à tradição como essência da lenda que o alimenta, considera escandalosa qualquer novidade tecnológica. E às vezes tem razão. Não teve, e perdeu a batalha, com os maiôs de corpo inteiro que permitiram há uma década que todos os recordes de natação fossem batidos. Teve, apesar do desespero dos que vêem no desporto uma arte além de uma demonstração de proeza física, a mudança das raquetes de madeira pelas metálicas (agora de fibra de carbono e outros materiais sintéticos), que permitiram uma expansão e um desenvolvimento tremendo do ténis. Algo parecido aconteceu há 25 anos com a chegada ao golfe dos tacos metálicos. Os artistas se agarraram à madeira para toda a vida e desprezaram uma novidade que, diziam, permitiria que um orangotango jogasse golfe. Os amantes da modalidadade agradeceram as novas distâncias do golfe e os jogadores se renderam-se.
Stepanov e Puma
Os ténis da Nike, de qualquer forma, lembram mais casos ocorridos no próprio atletismo. Em 1957, o saltador soviético Yuri Stepanov saltou 2,16 m, uma altura que privava os Estados Unidos de um recorde mundial que detinha há 44 anos. Logo se descobriu que o ténis do saltador tinha uma sola de espessura de cinco centímetros. Em 1960, a IAAF proibiu-as. Stepanov, vítima da guerra fria, não superou a depressão e suicidou-se em 1963.
Em 1968, o tartan cobriu as pistas de atletismo de superfície sintética. Para os Jogos Olímpicos do México, a Puma inventou ténis que em vez dos seis cravos habituais, que prendiam no tartan, tinham 68 pontinhas colocadas na sola como se fossem as cerdas de uma escova. Tommie Smith usou-as e ganhou os 200 m. Pouco depois, a Adidas conseguiu que fossem proibidas.
A noção de vantagem injusta ou de doping tecnológico – mais do que nos laboratórios – instalou-se nos escritórios. É lá que será resolvido o caso das entressolas dos ténis mágicos da Nike. A fronteira do doping tecnológico, uma linha tão pouco nítida quanto a que delimita o marketing da ciência, pode voltar a mudar.