O americano Scott Jurek tornou-se um dos maiores ultramaratonistas mundiais seguindo uma dieta totalmente à base de alimentos de origem vegetal. Entre outros feitos, estão os sete triunfos conseguidos na Western States, na Califórnia, na distância de 160 km.
No seu livro de memórias, Eat & Run: My Unlikely Journey to Ultramarathon Greatness (“Comer e correr: a minha improvável jornada em direção à excelência em ultramaratonas”), Jurek conta como ser vegano transformou a sua vida. Eis alguns extratos da sua obra.
“Quando eu tinha 10 anos, o meu pai deu-me uma arma calibre 22 com cano de aço escovado. As suas instruções foram simples: se eu ferisse um animal, era para matá-lo.
Se matasse, deveria esfolar, estripar e comer. Eu já pescava vários peixes no lago depois do almoço, que devorava antes do anoitecer. Comia carne assada, frango e bife grelhado. Eu adorava sopa de frango com macarrão e nada me deixava mais feliz que o puré de batatas besuntado com muita manteiga.
Quanto aos vegetais — com exceção de milho em conserva —, eu nutria um sentimento intenso e uniforme: detestava todos. Ninguém jamais poderia prever que eu cresceria para divulgar os benefícios de uma dieta à base desses alimentos.
Nós vivíamos no fim de uma rua sem saída à beira da floresta, a 8 km de Proctor, em Minnesota (EUA). Eu era magro e tinha tensão alta e escoliose. Eu gostava de desportos, mas evitei entrar para alguma equipa no ginásio, pois a ideia de apanhar um autocarro com outros meninos, me amedrontava. Em parte, porque eles me gozavam, empurravam e derrubavam. Uma vez, um garoto cuspiu em mim.
Jamais apontariam para mim e diriam: ‘Ele vai tornar-se um atleta profissional’. E como os valentões do autocarro não faziam parte das equipeas de esqui, e a prática envolvia muita técnica, parecia o desporto ideal para mim.
Em pouco tempo, tornei-me um dos melhores esquiadores do Ensino Médio na minha categoria em todo o Estado. Nessa época, começou a minha lenta transformação de carnívoro inveterado em vegetariano e, mais tarde, em vegano. Na verdade, prefiro o termo ‘baseado em vegetais’ a vegano, porque para muita gente, vegano soa como ‘maluco’.
Quando fui para um acampamento de atletas, serviam lasanha de legumes, todo o tipo de saladas e pão integral. Eu não tinha outra opção, então comi. E mal pude acreditar em como era gostoso.
No inverno do último ano do colégio, fui viajar para esquiar com um meu amigo da equipa e o seu padrasto. Eles levaram isolantes térmicos e sacolas cheios de macarrão integral, salada de espinafre e feijão preto.
Parámos na casa de um amigo e a sua mãe serviu-nos granula caseira feita com farinha de soja, germe de trigo e flocos de cevada. Pedi a receita e, quando cheguei a casa, eu mesmo preparei.
Eu não comia granula e salada porque queria um mundo melhor (isso viria mais tarde) ou para ser leal para com as vacas. Ainda hoje, se precisasse, eu mataria e comeria um animal para sobreviver.
Eu só estava começando a perceber que, quanto mais comia ‘comida de hippie’, mais forte me sentia. Pelas manhãs, antes das corridas do Ensino Médio, comecei a comer uma tigela grande de arroz integral que eu preparava na noite anterior. Eu comia o arroz às escondidas, pois sabia as provocações que sofreria se alguém visse.
Mas eu era um atleta e ainda comia carne — e, para dizer a verdade, não conseguia imaginar ser um atleta sem comer carne. Ainda precisaria de várias pessoas para me ajudar a ver que uma dieta à base de alimentos de origem vegetal, não só poderia sustentar-me como também fazer de mim um atleta mais rápido e potente.
Plantando a semente
Uma das pessoas que me incentivaram a seguir o caminho do veganismo foi uma rapariga que conheci no McDonald’s. Eu estava pedindo duas sanduíches. Ela queria um refrigerante. Ela andava de bicicleta, sorria muito e usava sandálias. Estávamos em 1995, eu tinha 21 anos e cursava o terceiro ano de fisioterapia. Ela era uma caloira de 18 anos, quase exclusivamente vegetariana.
Eu havia parado de esquiar e começado a competir em corridas de longa distância. Havia completado uma maratona e ficado em segundo lugar na Minnesota Voyageur, uma ultramaratona de 80 km. Passei a primavera de 1995 treinando mais duro do que jamais havia treinado.
Abri sulcos no chão, agredi colinas, ataquei trilhos — quanto mais mato, melhor. Eu corria na chuva, na neve e no calor lancinante. Corria com um propósito: ganhar.
E também me alimentava com um propósito. Comecei a colocar queijo nas minhas sanduíches, em vez de salame. Diminuí (um pouco) o pão com linguiça no pequeno-almoço. Contudo, para correr e ganhar, eu precisava de muita proteína. E tudo o que aprendi era que comer animais é a forma mais eficiente de obter proteína.
Então, continuei engolindo sanduíches e batatas fritas no McDonald’s, pelo menos quatro vezes por semana. Além disso, adorava fazer churrasco. Com bifes grelhados, linguiças ou hambúrgueres nas mãos, devorava uma lata de salgados. O meu apelido era o ‘Mestre da Grelha’.
Querendo ou não, eu ainda era um caipira de Minnesota. Quando Leah — a loira de sandálias — aparecia com maçãs ou leite orgânico e eu via o preço na etiqueta, gritava: ‘Quanto é que você pagou por isso? O que tem aí, ouro em pó?’ Eu achava que estava sendo sensato. Pensava que me estava alimentando de forma saudável.
Eu sabia que estava treinando feito um louco. E quando o dia da ultramaratona Minnesota Voyageur finalmente chegou, em julho de 1995, disparei na partida. Engoli a pista. Ninguém me iria superar. Mas alguém o fez. Terminei em segundo lugar — mais uma vez. De alguma forma, eu tinha que correr mais rápido. Mas não dava para treinar mais ainda. Era impossível correr mais. Qual seria o segredo?
Em busca do topo
No ano seguinte, no verão de 1996, um velhinho doente contou-me parte do segredo. Ele tinha acabado de sair de uma sessão de fisioterapia e voltou lentamente à sua cama. A cada passo doloroso, eu via a sua frustração, sentia a sua raiva. Era o meu último ano de faculdade e eu estagiava naquele hospital.
Era para eu ajudá-lo e nós dois sabíamos que eu não estava saindo-me muito bem. O senhor subiu na cama e olhou para a bandeja do almoço que esperava por ele – um bolo de carne encharcado em algo marrom e espesso, batatas, ervilhas enlatadas com uma aparência suspeita. A sua expressão dizia que uma bandeja de pedras daria na mesma. Ele nada disse mas poderia estar muito bem a gritar.
Como atleta, eu dedicava-me ostensivamente à saúde em busca de um ótimo desempenho. Como fisioterapeuta, eu deveria ajudar as pessoas a cuidar dos seus corpos, mas não levava as suas dietas em consideração nem por um segundo.
Seria coincidência que pessoas doentes estivessem recebendo alimentos de baixa qualidade, cheios de amido? Se uma dieta equilibrada pode tornar alguém mais veloz, poderia uma má dieta fazer-nos adoecer? O velho não disse nada mas eu podia escutar o segredo que ele me contava. A nossa alimentação é questão de vida e morte. Você é o que você come.
Pensei e li muito sobre dieta e desempenho naquele verão. No artigo ‘Cura espontânea’, Andrew Weil dizia que o corpo humano possui uma enorme capacidade de se cuidar, desde que ele mesmo seja cuidado, com boa alimentação e sem ingestão de toxinas.
Aprendi que a dieta ocidental padrão — por um longo tempo, a minha dieta, rica em produtos de origem animal e alimentos à base de farinha refinada — tem sido associada a três das causas mais comuns de morte nos Estados Unidos: doenças cardíacas, cancro e derrames.
Um corte profundo
Não foi difícil eliminar os alimentos processados e carbohidratos refinados. Eu não queria consumir carne e laticínios — por causa do stresse para os rins, do possível aumento no risco de derrame e doenças cardíacas, sem contar as substâncias químicas e os hormónios injetados nos alimentos e a degradação ambiental causada pelas herdades de gado —, mas eu estava levando a corrida mais a sério, imaginando se eu tinha o necessário para competir a nível nacional.
E tinha consciência de que precisava de mais combustível para queimar. Eu sabia que uma dieta baseada em vegetais significava mais fibras, que aceleravam os alimentos através do trato digestivo, minimizando o impacto das toxinas.
A mesma dieta também significava mais vitaminas e minerais; mais substâncias como licopeno, luteína e betacaroteno, que ajudam a proteger o organismo contra as doenças. E menos carbohidratos refinados e gorduras trans, ambos relacionados a doenças cardíacas. Mas será que uma dieta como essa, poderia fornecer proteína suficiente para alguém que desejava ser um atleta de elite?
Eu dividi as minhas apostas. A percentagem de alimentos de origem animal que eu comia caiu muito, mas não os restringi completamente. E naquele verão de 1996, na minha terceira tentativa, eu ganhei a Minnesota Voyageur.
Não precisei de treinar mais para isso. Até porque era impossível. Apenas me alimentei com mais inteligência. Sabia que podia continuar enquanto os outros paravam. Sabia que tinha boas pernas e bons pulmões. Agora eu não era um mero corredor, era um atleta. E era alguém que tinha consciência daquilo que comia.
Mas eu tinha vencido a Voyageur, uma competição estadual de 80 km. Como seria nas provas grandes, de 160 km, que atraem corredores não só de outros Estados, mas de outros países? Tudo o que eu lia sobre alimentação e saúde, dizia que uma dieta sem carne era saudável, mas eu tinha que descobrir uma forma de obter proteínas suficientes para unir a minha alimentação nutritiva à corrida de longa distância.
Combinar fontes vegetarianas de proteína, como legumes e grãos, a cada refeição, parecia muito trabalhoso. Mas aprendi que o nosso organismo reúne os aminoácidos dos alimentos que comemos ao longo do dia. Eu não precisaria sentar-me e fazer as contas, cada vez que comesse.
Descobri também que mesmo a conservadora Academia de Nutrição e Dietética, dos Estados Unidos, afirmava que ‘dietas vegetarianas bem planeadas, incluindo as totalmente vegetarianas ou veganas, são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem fornecer benefícios à saúde na prevenção e no tratamento de certas doenças. Dietas vegetarianas bem planeadas são adequadas para pessoas em todas as fases do ciclo de vida, incluindo a gestação, lactação, infância e adolescência, e para atletas’. Essas duas últimas palavras soaram como música para os meus ouvidos de ultramaratonista semivegetariano.
Desde que eu comesse alimentos naturais variados, com ingestão calórica adequada, obteria proteína completa em quantidade suficiente. Pelo menos em teoria.
Da teoria à prática
Passei os dois ou três anos seguintes a testar a teoria. Na primavera de 1997, deixei de comer carne. Venci a Voyageur novamente. Em seguida, cortei com o peixe. Ganhei a Voyageur pela terceira vez e cheguei em segundo lugar na minha primeira prova de 160 km, enfrentando as maiores feras mundiais. Quando finalmente virei vegano, em 1999, perdi uma camada de gordura — a camada resultante de comer biscoitos, bolos e pizzas de queijo que onívoros e até vegetarianos vivem devorando.
Aprendi que podia comer mais, apreciar mais os alimentos (as frutas pareciam mais doces, os legumes, mais crocantes e saborosos) e ficar mais magro do que jamais fora na vida. Aumentei a ingestão de grãos integrais e legumes. Músculos que eu nem conhecia, apareceram.
A minha pressão arterial e o nível de triglicéridos caíram como nunca, o meu HDL, o chamado “bom colesterol”, disparou para a maior taxa de todos os tempos. Eu não tinha praticamente nenhuma inflamação nas articulações, nem após percorrer dezenas de quilómetros, e, nas raras ocasiões em que torci o tornozelo ou caí e bati com o cotovelo ou o joelho, a dor passou com mais rapidez do que nunca. Eu corria de manhã, trabalhava entre 8 a 10 horas por dia, depois corria 16 km à noite — ainda assim, a cada dia despertava com mais energia.
Seria a comida que eu estava acrescentando — as vitaminas e minerais? Ou seria o que eu não estava comendo — as proteínas em excesso, os carbohidratos refinados, as gorduras trans? Eu não conhecia a resposta, mas nunca me havia sentido tão bem”.