Em 28 de Setembro de 2014, o queniano Dennis Kimetto tornou-se o primeiro homem a correr os 42 km em 2.02.57, em Berlim. Foi o primeiro e único atleta a correr até agora em menos de 2h03m
A maratona está em uma fase extraordinária e sem precedentes. Prova após prova, espera-se mais um recorde mundial. Já se discute quem irá superar a barreira das duas horas.
Se a maratona em si tem uma linda e surpreendente história, a superação dos melhores tempos é também objeto de análise histórica. Se compararmos a primeira marca oficialmente registada pela IAAF, 2.55.18 completados pelo americano Johnny Hayes nos Jogos Olímpicos de Londres em 1908, são quase 53 minutos de diferença em 106 anos de competição.
Genética, tecnologia, formas de treino, tudo isso influencia nessa enorme diferença entre Hayes e Kimetto. Não se pode apontar uma simples explicação para um sistema tão complexo. No entanto, é interessante olharmos como se deu a progressão destes 40 recordes mundiais desde 1908.
O período pré IAAF
A maratona moderna começou nas Olimpíadas de 1896, mas não podemos esquecer que houve duas seletivas para definir os selecionados. Assim, o primeiro resultado de uma maratona não foi o do lendário grego Spiridon Louis, mas sim dos seus compatriotas Kharilaos Vasilakos, que venceu a primeira seletiva no tempo de 3h18m e de Ioannis Lavrentis, vencedor da segunda em 3h11m. Spiridon Louis foi assim o melhor terceiro tempo da história, com 2h58m50s.
Entre 1896 e 1908, apesar de vários outros corredores baixarem o tempo de Spiridon, foi um período em que não foram considerados recordes mundiais pela IAAF, dado que a distância da prova era de aproximadamente 40 km. A distância de 42,195 km foi padronizada apenas em 1921 pela IAAF. Assim, esta considera a marca de 2.55.18 feita pelo americano Johnny Hayes, nos JO de Londres, como o primeiro recorde oficial na maratona, pois nessa prova, o percurso teve a distância que foi padronizada treze anos mais tarde. Houve quem fizesse melhor nessa prova, o italiano Dorando Pietri, que concluiu em 2.54.46, mas que foi desclassificado por ter recebido no final, ajuda de juízes da corrida.
De 1908 até 1921, o melhor tempo de maratona foi batido por oito vezes, mas a verdade é que muitos deles são questionáveis à luz da distância: sem padronização, eles variavam entre os 40 km da primeira maratona olímpica até a distância atual. Mas já no ano seguinte, o recorde baixava em quase 15 minutos, com o triunfo do sueco Thure Johansson, na Maratona de Estocolmo, em 2.40.34. Tempo este superado somente quatro anos depois, na Maratona Politécnica, nos arredores de Londres.
Em escassas duas semanas, houve duas Maratonas Politécnicas e ambas com melhores marcas mundiais: 2.38.16 pelo britânico Harry Green e 2.36.06 pelo sueco Alexis Ahlgren, numa prova que contou com apenas 35 atletas. A Maratona Politécnica ficou registrada na história como um dos palcos que mais recordes mundiais teve: 1909, 1913, de 1952 a 1954, e de 1963 a 1965. Oito vezes, mais um do que a de Berlim.
Desde então, houve longos períodos de estagnação nas marcas. O tempo de Ahlgren só foi derrubado em 1920 pelo finlandês Hannes Kolehmainen com 2.32.35. Esta marca só veio a ser pulverizado em 1925 pelo americano Albert Michelsen, na maratona de Port Chester.
Na época, os pouquíssimos jornais que se dedicavam a falar de atletismo, davam voz aos médicos, que diziam que o limite humano iria até o tempo de 2h30m. Albert Michelsen completou a prova em 2.29.01, colocando em xeque as teses fisiológicas da época. E durante mais de dez anos, muitas outras maratonas surgiram e ninguém conseguiu bater o tempo do americano.
Três recordes em 1935
Esse hiato na quebra de melhores tempos fez os especialistas entrarem numa grande discussão entre acreditar ou não que Michelsen era uma exceção e que os fisiologistas estavam corretos, ou seja, que o limite humano na maratona esgotara-se. O Japão preparou então para derrubar quem acreditava na primeira tese. Montou um percurso perfeito, com a medição exata de 42.195 metros. O palco foi Tóquio, em 1935. Em três maratonas diferentes, num espaço de tempo inferior a oito meses, o recorde mundial foi batido por três vezes.
Primeiro, no dia 31 de março, quando o japonês Fusashige Suzuki fez o tempo de 2.27.49. Quatro dias depois, no mesmo percurso, com a maratona do mesmo nome, Yasuo Ikenaka terminou um minuto mais rápido, chegando em 2.26.44. No mesmo ano, em Novembro e no mesmo percurso, Korean Kitei Son bateu a marca anterior por dois segundos.
Só que o recorde voltou a estagnar por longos 12 anos. Até que o coreano Yun Bok Suh disputou a Maratona de Boston. Liderava a prova até ao final da famosa Heartbreak Hill, quando foi atacado por um cão. Mesmo com um sério corte e sem atacadores nos sapatos, voltou à prova, a tempo de ultrapassar o finlandês Mikko Hietanen, e bater a marca mundial na distância, com 2.25.39.
O reinado asiático nos recordes seria rompido com a hegemonia do britânico Jim Peters, que entre 1952 a 1954, conseguiu na Maratona Politécnica, recorde atrás de recorde e rompeu a barreira das 2h20, fazendo 2.17.39 em 1954. Desde daí, os recordes não duravam mais que três anos até serem batidos.
A incipiente popularização das provas de estrada começava a trazer corredores vindos das pistas. Jovens corredores eram atraídos por personagens lendários, como Abebe Bikila, que, descalço pelas ruas de Roma, na maratona olímpica, batia por segundo o melhor mundial da época, com 2.15.16. O mesmo Bikila que, quatro anos depois, com 2.12.12, reconquistava o título de recordista mundial na maratona olímpica de Tóquio. Era o primeiro africano a conseguir esse feito.
Finalmente, menos de 2h10m
E novamente a discussão voltara aos jornais da época: “Seria o homem capaz de romper a barreira das 2h10?” ou “Seria o homem capaz de correr uma maratona abaixo de 5 minutos por milha (um ritmo, no padrão métrico, de 3:06/km)” eram títulos comuns nos Estados Unidos e Grã Bretanha, entre outros. Um australiano, de apenas 25 anos, chamado Derek Clayton, deu fim às discussões e na maratona de Fukuoka, em 1967, fez 2:09:36. Dois anos depois, em Antuérpia, superou o seu próprio tempo em 1m03s e tornou-se uma lenda viva da maratona.
Nos anos 1970, período do surgimento das grandes maratonas atuais e do boom do jogging, não houve quem se aproximasse muito perto do jovem australiano. Ele foi superado somente 12 anos depois, pelo seu compatriota Robert de Castella, também em Fukuoka, por 15 segundos, 2.08.18. De assinalar que o recorde tinha sido batido um mês antes, em Nova York, por Alberto Salazar, ao completar em 2.08.13. Mas esta marca não foi comiserada válida porque a Organização constatou um erro na aferição da prova, que tinha menos 150 metros.
Primeiro sub 2h08m por Carlos Lopes
Somente em 1984, Chicago presenciou o inglês Steve Jones alcançar a marca de 2.08.05. O sub 2h08 viria no ano seguinte, não por um africano mas pelo português Carlos Lopes.
Na maratona de Roterdão de 1985, Carlos Lopes correu sozinho a segunda metade da prova, sem ajuda de “lebres” e fez o espantoso tempo de 2.07.12, marca superada pelo etíope Belayneh Dinsamo, no mesmo percurso de Roterdão, em 1988.
A Etiópia anunciara que ia boicotar os Jogos Olímpicos de Seul e muito se dizia na imprensa que as razões políticas eram um engodo para a incapacidade técnica. Dinsamo e mais quatro etíopes resolveram inscrever-se na maratona holandesa para provar a sua capacidade. Não apenas provaram, como saíram de lá com um recorde de 2.06.50, tempo que só seria batido dez anos depois pelo brasileiro Ronaldo da Costa.
Hegemonia africana
Até 15 anos atrás, os recordes mundiais não estavam centrados nas maratonas Majors nem havia uma hegemonia africana. Historicamente, é um dado relevante para que não se construa um imaginário popular de que desde os primeiros tempos, foi sempre assim. O domínio africano começou a ser construído apenas a partir de 1999.
Mas um ano antes, pela primeira vez em Berlim, um homem superava mais um limite imposto pela imprensa especializada por uma década: correr a 20 km/h. Ele foi o brasileiro Ronaldo da Costa, que completou em 2.06.05, pouco mais de um segundo por quilómetro mais rápido do que Dinsamo em 1988. Foi a partir daí que começou a avalanche de recordes mundiais.
Analisando os dados, desde 1998, os melhores tempos mundiais da maratona vêm caindo quase quatro vezes mais rápido do que nas décadas anteriores. Em 1999, o marroquino Khalid Khannouchi venceu em Chicago com 2.05.42, e depois em 2002, em Londres, levando a maratona a um outro patamar: a de uma prova na casa de 2h05. Até então, os quenianos não figuravam na lista de recordistas mundiais.
Gebrselassie e Tergat
Foi então que apareceu o queniano Paul Tergat, que em setembro de 2003 fez 2.04.55, em Berlim. Ele não apenas batia o recorde mundial, mas também inaugurava a lista dos quatros quenianos recordistas mundiais e a hegemonia de Berlim como palco da melhor marca nos 42,195 km. Um olhar mais atento dos especialistas perceberia que os anos 90 foram férteis em quebras de tempos mundiais em provas de pistas, sendo as estrelas, Paul Tergat e o etíope Haile Gebrselassie. Era quase inevitável que quando eles passassem para a maratona, seriam batidas as barreiras.
Tergat foi o primeiro e Gebrselassie demoraria ainda quatro anos para despontar. Fê-lo em Berlim, em 2007, com 2.04.26, para no ano seguinte romper a barreira das 2h04m, com 2.03.59. Iniciava-se o admirável mundo novo nas maratonas a partir de 2008. Embora muitos considerem que Tergat, ao fazer o primeiro sub 2h05 abriu as portas para uma nova geração de grandes maratonistas, até 2007 só Gebrselassie tinha um sub 2h06 além de Tergat.
Há a destacar a tática ousada e impetuosa por parte do queniano Samuel Wanjiru, em Pequim 2008, que em condições adversas (um dia quente e húmido) transformou a prova de um evento que exigia cautelas para outra em que o ataque foi recompensado, sendo o primeiro queniano a ganhar uma medalha de ouro numa maratona olímpica. Isso influenciou muito os maratonistas atuais, que por vezes pecam por arriscar demasiado. O meio-termo seria o crescimento da utilização de “lebres”, que ditam o ritmo da prova na primeira metade, deixando o ímpeto e a coragem dos maratonistas para o momento certo, a segunda parte dos 42 km.
Boston não vale
O exemplo de Wanjiru, os resultados de Gebrselassie e o aumento substancial nos prémios, fez aumentar substancialmente o número de jovens africanos, que saltam a etapa de fazer carreira na pista, na procura de oportunidades lucrativas na estrada.
Esses fatores influenciam diretamente a mentalidade, sobretudo de quenianos e etíopes, que passam a acreditar que podem correr cada vez mais rápido, inspirados pelos seus compatriotas e, não menos importante, as riquezas materiais e a fama que os esperam quando conseguem as vitórias e as marcas desejadas.
Esses são elementos que influenciaram a grande prova do queniano Geoffrey Mutai em Boston de 2011, com o tempo de 2.03.02, embora não reconhecido pela IAAF pelos fatores altimétricos da prova. No mesmo ano o queniano Patrick Makau, embora não superasse o tempo de Mutai, bateu o tempo de Gebrselassie com 2.03.38. O queniano Wilson Kipsang, que três semanas após Makau bater o recorde, não conseguiu batê-lo em Frankfurt por apenas quatro segundos, pulverizava dois anos depois, novamente em Berlim, para 2.03.23.
Derrubar a marca de 2h03 seria algo que geraria nova discussão. Talvez agora, talvez daqui a dez anos, diziam. E Dennis Kimetto surpreendeu todos na manhã de 28 de Setembro com seus 2.02.57, um segundo por milha mais rápido que Kipsang. O que poucos recordam, e que é também digno de análise, é que o segundo lugar, Emmanuel Mutai, também superou o então recorde mundial em dez segundos.
A análise dos melhores resultados nas maratonas mostra que estes estão cada vez mais à mercê de serem pulverizados a qualquer momento. Uma geração de novos atletas vem despontando, grandes nomes das pistas nos anos 2000 estão começando a passar para as estradas, como Mo Farah.
A hegemonia africana parece consolidada, bem como a necessidade de um dia perfeito num percurso favorável serem imperativos para a quebra do recorde mundial. Mas conjeturar quando virá o já falado sub 2h é leviano. A História não tem bola de cristal.
Não valeu menos de duas horas na pista de Monza
Foi em 5 de Maio do ano passado que o queniano Eliud Kipchoge correu a distância da maratona na pista de Fórmula 1 de Monza, em Itália, em duas horas e 25 segundos. O objetivo era baixar pela primeira vez das duas horas na distância. Como já se sabia, a corrida de Eliud não foi homologada pela IAAF porque a corrida no autódromo de Monza não cumpriu as regras habituais de uma maratona Zersenay Tadese e Lelisa Desisaran completaram o trio de atletas que correu na pista italiana. Os três tiveram o apoio de “lebres” que corriam à frente dos atletas em formação triangular – para marcar o ritmo e reduzir o atrito – e de um carro que seguia na frente e projetava no chão uma linha verde que indicava o ritmo necessário para fazer a prova em menos de duas horas. Ajudas que levaram a que o recorde não fosse oficialmente admitido.
Distância da maratona olímpica | |
Ano | Distância (km) |
Atenas 1896 | 40 |
Paris 1900 | 40.26 |
St. Louis 1904 | 40 |
Londres 1908 | 42,195 |
Estocolmo 1912 | 40.2 |
Antuérpia 1920 | 42,75 |
Paris 1924 em diante | 42,195 |