Maria José Frias é madeirense e nasceu há 53 anos. Destacou-se nos 400 e 800 metros na pista. Foi recordista regional na Madeira em sete distâncias, entre os 300 e os 3.000 metros. Superou uma doença grave quando representava o Sporting CP e atualmente, corre pelos Amigos de Atletismo de Mafra. Faz estrada, trail e pista. Um exemplo para quem corre!
Maria José Frias nasceu no Funchal há 53 anos e corre desde os 17, influenciada pela irmã que queria treinar para os Jogos Sem Fronteiras. Como o pai não a deixava ir sozinha, a solução passou pela companhia da nossa entrevistada. Mas ela, que então praticava voleibol, não gostava de correr, treinava um dia e descansava três. “Os meus treinos eram sempre muitos rápidos, preferia assistir aos treinos do que treinar e, consequentemente, sofrer”. Até que um dia, o treinador da sua irmã, o já falecido Avelino Abreu, olhou para a Maria José e disse-lhe: “a partir de hoje não vale a pena vires treinar, como não te aplicas, não vou perder o meu tempo com uma atleta que não sabe o seu valor”. Maria José sentiu-se então incomodada e respondeu-lhe que ele ainda iria arrepender-se do que tinha dito, ele ainda iria sentir muito orgulho em ser seu treinador.
Maria José agradece a chamada de atenção de Avelino Abreu, foi o clique que precisava para se dedicar seriamente à modalidade.
Do anonimato à seleção regional da Madeira em poucos meses
Começou a treinar-se diariamente e passou em poucos meses, de uma mera desconhecida, a representar a seleção da Região Autónoma da Madeira. Foi então campeã e vice campeã nacional nos 400 e 800 metros e campeã nacional da Segunda e Terceira Divisão Nacional e vice campeã nos Campeonatos de Portugal nos 800 metros, entre tantos outros títulos.
Considera-se uma privilegiada do atletismo, pois teve o prazer de correr a prova mais rápida (60 metros) e a mais longa do calendário de provas, a maratona, passando por estafetas, saltos, lançamentos e barreiras, pois chegou a participar num heptatlo. Porém, nunca, na sua vida, pensou que um dia faria a maratona. Como atleta de pista, foi recordista regional dos 300, 400, 500, 800, 1000, 1500 e 3000 metros. Também foi dona do recorde dos 400 e 800 metros em pista coberta, assim como das estafetas de 4×200 e 4×400 metros.
“Nunca na minha vida, pensei que um dia faria a maratona”
400 metros, então a sua prova preferida
A prova preferida por Maria José era então a dos 400 metros. “Sempre que acabava uma prova, pensava logo na próxima, apesar de o cansaço que surge nos últimos metros, que todos os que correm a distância, conhecem muito bem”. Mas ela tinha sempre vontade de se superar, o que já não acontecia nos 800 metros ou em outras distâncias.
Tem como recordes pessoais, 55.14 aos 400 metros e 2.07.21 aos 800 metros. “Mas nunca senti que era o meu limite e, infelizmente, não tive oportunidade de o provar. Ainda hoje, corro com a mesma dedicação e alegria, pois se, às vezes sofro quando corro, se não corresse, o sofrimento seria, indubitavelmente, muito maior”.
Estreou-se na estrada ainda na Madeira, em 1983, numa prova com 2 km disputada na freguesia da Camacha. “Acabei por vencer, ganhando uma taça minúscula, mas com grande significado para mim”.
A partir daí, Maria José passou a ter um gosto especial pela estrada e sempre que era possível, fazia provas de estrada curtas, entre os 2 e os 5 km e corta matos, como preparação para a pista.
“Sou uma privilegiada do atletismo, pois tive o prazer de correr a prova mais rápida (60 metros) e a mais longa do calendário de provas, a maratona”
Há 12 anos nos Amigos de Atletismo de Mafra
Maria José é atleta há 12 anos da Associação dos Amigos de Atletismo de Mafra. É administrativa na área de educação e é com facilidade que concilia os treinos com o trabalho, visto o seu horário laboral ser atualmente, das 11 às 19h30.
Edgar Amaro é o seu treinador e de mais alguns atletas da AA de Mafra, apesar de residir em Andorra e treinar um clube local. “Apesar de não ter a presença do meu treinador, eu tento sempre cumprir o treino, pois sou disciplinada e quando, por algum motivo, não consigo cumprir o treino programado, tento, de acordo com a minha experiência, adaptar o treino à minha disponibilidade”.
Treina seis dias por semana, normalmente só e de manhã. Se for na pista, já treina quase sempre acompanhada por dois ou três colegas. ”Treinar sozinha não me assusta porque permite-me, também, uma preparação para as provas, onde não estou a contar com ninguém. Assim, tenho capacidade de reagir perante as adversidades”.
Diz-nos ainda que aproveita os treinos matinais para refletir e que eles nunca prejudicaram o seu dia de trabalho. “O dia é mais produtivo e energético, mesmo em dias de séries em que quase não tenho tempo para fazer a transição do treino para o trabalho”.
10 km, agora a sua prova preferida
Atualmente, a sua distância preferida passa pelos 10 km. “É uma distância que se adapta às minhas capacidades de ex- atleta de pista”. Corre cerca de dez provas por ano e não costuma fazer grandes planos na sua seleção. “Consulto os sites de provas e escolho aquelas que me despertam interesse. Como todos os anos aparecem novas provas, isso permite-me ter mais opções e, claro, facilita as minhas decisões”.
As suas corridas preferidas são a do Sporting, a dos Sinos, em Mafra e a do Dia da Mãe, em Lisboa. “Cada uma delas, tem um significado muito importante e especial para mim”.
Já quanto à prova que menos lhe agradou, não refere uma em particular. Lembra apenas o Trail dos Montes Saloios por ter sido aquela onde mais sofreu devido à dificuldade do percurso e também pela sua inexperiência em corridas de trail.
“Treinar de manhã, o dia é mais produtivo e energético, mesmo em dias de séries em que quase não tenho tempo para fazer a transição do treino para o trabalho”
Estreia na maratona
Para quem nunca pensou correr um dia a maratona, Maria José já sentiu a alegria suprema em cortar a meta por duas vezes. Estreou-se na distância em 2017 na Rock and Roll Marathon. “Tenho apenas uma palavra para descrever a sensação: fantástica! Adorei, contudo, considerando as minhas limitações, fiz uma prova muito controlada, sem arriscar, e acabei muito bem e feliz, pensando que para o ano iria repetir a experiência”. Terminou em 3h22m sendo a primeira do escalão F50.” Não foi uma estreia brilhante mas foi uma corrida muito gratificante”.
“Treinar para a maratona é um ato de fé. Correr uma maratona é um ato de coragem. Com fé e coragem, pessoas comuns como eu, podem fazer grandes feitos com muita alegria.”
Dois momentos marcantes na carreira
A sua carreira de atleta está dividida em duas partes, o antes (pista) e o depois (estrada). Como momento marcante na pista, refere-nos o convite recebido em 1992 para participar nos 400 metros do Meeting do Sporting onde correram as melhores atletas nacionais. “Parti decidida, norteada pelo lema de ‘partir a matar e chegar a morrer’. Ouvi o speaker fazer o relato durante a prova e anunciar o nome das atletas que vinham nos primeiros lugares e eu estava em 4ª. Essas palavras deram-me força e coragem para apostar tudo e acreditar nas minhas capacidades e entrei nos últimos 100 metros determinada. Acabei por vencer a prova que me consagrou. Esta vitória foi muito importante, pois foi um grande estímulo para continuar a treinar e acreditar na sigla H.O.P.E (Hold On, Pain Ends), ou seja, mantêm-te firme a dor acaba”.
O outro momento marcante teve lugar quando completou a sua primeira maratona. “Foi o culminar do esforço feito durante três meses. Adorei a forma como enfrentei este desafio e um ano depois, em Amesterdão, fiz a melhor marca pessoal. Lá, tive o apoio da minha família em grande parte do percurso, sempre com palavras de incentivo e com a bandeira de Portugal a transmitir a força de uma Nação”.
Há que realçar que Maria José correu em Amesterdão, os últimos 10 km em sofrimento devido a um problema com os seus sapatos de corrida que lhe queimavam os pés. A vontade foi mais forte que a dor e a meta foi conquistada.
“Treinar para a maratona é um ato de fé. Correr uma maratona é um ato de coragem. Com fé e coragem, pessoas comuns como eu, podem fazer grandes feitos com muita alegria.”
“Atualmente, os jovens preferem desportos mais radicais ou desportos de bancada”
Experiência no Trail
Depois da pista e da estrada, faltava a experiência no trail. Maria José já experimentou e ficou fã. A sua última prova nesta área foi o Trail D’el Rei, em Mafra. “Foi fantástico poder correr, apreciar, estar em contato com a natureza e vencer. O trail é uma corrida mais descontraída, mas também repleta de surpresas.
Lesão que mudou o rumo da sua vida desportiva
Para quem corre desde os 17 anos e adora a corrida, é com naturalidade que nos diz que pensa correr enquanto o seu corpo o permitir.”Até o coração e as pernas correrem como sempre fizeram. Não tenho um limite de idade, mas enquanto puder, com certeza correrei”.
Quanto às lesões, teve as normais de uma atleta. Mas aquela que mudou o rumo da sua vida desportiva foi em 1997, quando representava o Sporting Clube de Portugal. Quando tudo parecia estar bem, foi-lhe diagnosticado um tumor no lóbulo inferior do pulmão direito. “Não queria acreditar no que me estava a acontecer, ainda pensei que tinha havido troca de resultados”.
Maria José teve de ser operada de urgência. Foi-lhe retirado parte do pulmão e o seu futuro como atleta passou a ser uma incógnita. “Superei e recuperei, pois o meu desejo de correr era gigantesco, o que me ajudou a ultrapassar este pesadelo”.
Após a intervenção cirúrgica, ainda fez algumas provas de pista mas como o esforço era demasiado grande, decidiu afastar-se das pistas. “A minha realidade nesse momento, era outra e optei pelas provas de estrada. Só este ano é que voltei a competir na pista e corri os 1000 e 3000 metros no Challanger, em Mafra. Adorei a sensação de voltar a sentir a adrenalina de outros tempos”.
Não dispensa anualmente os exames médicos. “Todos os anos obrigatoriamente, faço diversos exames de rotina e outros exames de controlo e despiste de possíveis complicações, devido à intervenção cirúrgica a que fui submetida”.
Pelas razões já mencionadas, tem de controlar a sua alimentação. “Como diversas vezes ao dia, faço uma alimentação saudável evitando as gorduras, sal e açúcar, optando por saladas, sopas, legumes e frutas”.
“Adoro ver o rosto de felicidade de todos aqueles que à sua maneira, completam as suas provas”
Otimista quanto ao futuro da modalidade
Quanto ao futuro da modalidade, considera que o atletismo é uma modalidade muito solitária e monótona, e para correr assim, é necessário gostar muito dela. Mas mostra-se otimista apesar de achar que os jovens preferem atualmente desportos mais radicais ou desportos de bancada. Na sua opinião, os clubes têm essa noção e estão a apostar de novo nas camadas jovens. Refere-nos o exemplo da Escolinha de Atletismo dos Amigos de Mafra que tem vindo a crescer com muitos jovens a abraçar o atletismo e com bons resultados.
Já a nível nacional, “têm surgido novos valores com grandes capacidades, pelo que acho que o futuro da modalidade não está comprometido. Os grandes atletas da atualidade, tanto femininos como masculinos, ainda se irão manter ativos durante mais alguns anos, incentivando assim a nova geração de atletas”.
Respeito pelos adversários
No mundo das corridas, Maria José aprecia principalmente o respeito pelo adversário. “Infelizmente, apesar de todo o fair play existente, ainda se assiste a cenas muito tristes na competição. As provas de estrada dão-nos a possibilidade de conhecer e conviver com atletas de várias nacionalidades e conhecer lugares diferentes. Adoro ver o rosto de felicidade de todos aqueles que à sua maneira, completam as suas provas, provando que cada atleta sabe a felicidade, por razões totalmente distintas, que sente quando corta a meta, mesmo não sendo o primeiro a chegar”.
Os seus projetos futuros passam por continuar a correr. “Incentivar os jovens para a prática do desporto, em especial o atletismo. E continuar a orientar, em conjunto com o meu treinador, as minhas amigas atletas”.
Faltou representar a seleção nacional
Maria José falou-nos da sua mágoa em não ter representar a seleção nacional. “No ano em que tinha a melhor marca nacional e tudo indicava que iria ser selecionada, simplesmente não fui. A razão apresentada por parte da Federação foi que eu não tinha experiência internacional, levando outra atleta no meu lugar com mais experiência e que acabou por desclassificar a equipa da seleção”.
Melhorou muito a organização das provas
Maria José sente uma evolução muito grande por parte das organizações, principalmente na entrega antecipada dos dorsais, reduzindo assim longas filas no dia das provas. Observa também com agrado em algumas provas com um número muito elevado de participantes, as partidas serem feitas com corredores de separação de tempos. Também elogia as chegadas, muito bem sinalizadas e bonitas e uma grande redução do tempo de espera na divulgação dos resultados e na entrega dos prémios.
Mas nem sempre tudo funciona como desejado. Chama a atenção para as chegadas em que não há um funil para quem corre e para quem caminha, o que por vezes, torna complicado a chegada dos atletas à meta. “Tem que haver uma maior sensibilização para a divulgação dessas boas práticas, privilegiando sempre todos os atletas, mas respeitando o espaço de cada um”.
“Está lento, está lento”, gritou o treinador que afinal se tinha enganado!
Com tantos anos de atletismo, não faltam estórias a Maria José. A primeira passou-se numa prova de 400 m em que participou com o objetivo de tentar bater o recorde da Madeira. Estava tudo combinado com o seu treinador Adriano Gonçalves, que lhe daria uma indicação do seu ritmo na passagem aos 200 metros. “Parti rápida e, quando passo na zona dos 200 metros, oiço o meu treinador gritar ‘está lento, está lento’”. Estava depois a entrar na fase mais dolorosa da prova, os últimos 100 m, e eu sempre a tentar correr mais rápido. Cheguei de rastos e consegui o objetivo do recorde. O mais engraçado foi quando o treinador chegou junto de mim e pediu-me desculpas, pois com o entusiasmo da prova, enganou-se e disse que estava lento, em vez de dizer que estava rápido. Ainda bem que só faltavam 200 metros!”.
Atleta dos 400 m a correr uma Meia Maratona!
A outra estória ocorreu em Outubro de 1994, na sua estreia na distância da Meia Maratona, em Albufeira, quando era atleta dos 400 metros! Maria José aceitou o desafio e lá foi correr. Terminou em segundo lugar da geral, com o tempo de 1h29m05s e ficou muito satisfeita por ter concluído a prova. Mas na entrega dos prémios e para sua surpresa, chamaram pelo seu nome, dizendo que era a primeira feminina. “Eu olhei para o speaker e disse que era engano, pois eu era a segunda classificada, sabia que havia uma atleta feminina à minha frente. Afinal era a primeira sénior e aí vi a grande diferença da pista para a estrada”.
Boicote no pódio do Campeonato de Portugal de 1996
A terceira estória passou-se no Campeonato de Portugal disputado em 1996, quando Maria José foi vice-campeã de Portugal pela primeira nos 800 metros. Nesse Campeonato, as atletas reivindicavam algo e por esse motivo, boicotaram a subida ao pódio, recusando-se a receber as medalhas. “Eu vim da Madeira para correr a meia-final e final nos 400 e 800 metros. Tive direito a ir ao pódio e não iria ter o meu primeiro grande momento de glória, por motivos aos quais era totalmente alheia. Que me desculpem os atletas, mas eu não iria perder a oportunidade e quando me chamaram, corajosamente subi ao pódio e recebi a minha primeira medalha a nível nacional, de forma honrosa. A minha atitude valeu uma grande salva de palmas por parte de todos os presentes”.
A terminar, Maria José quis congratular a Revista Atletismo “pelo papel nobre e relevantíssimo que tem tido na difusão do atletismo. A Revista Atletismo acompanhou-me mensalmente, em formato papel, durante muitos anos, as quais guardo religiosamente, e, agora, em formato digital, disponibilizando sempre toda a informação sobre esta modalidade, para os seus seguidores e amantes do atletismo nacional e internacional”.
Quis ainda agradecer à sua família pelo apoio e carinho sempre presente nos bons e maus momentos da sua vida. “E continuar acreditar que vale a pena correr”.