O domínio africano no fundo mundial tem motivado o interesse de muitos estudiosos, desejosos de compreender as razões de tal sucesso. Recentemente, Michael Crawley escreveu o livro “Out of Thin Air” sobre a cultura etíope no mundo das corridas. Com estórias curiosas como a de uma atleta que num treino, começou a ter convulsões por acreditar que estava amaldiçoada! Publicamos seguidamente o comentário do norte-americano Jonathan Gault acerca do referido livro.
A corrida de fundo moderna tem dois superpoderes. Em nenhum lugar isso é mais aparente do que na maratona, onde 89 dos 100 homens mais rápidos da história vieram da Etiópia (42) ou do Quénia (47).
Parte do nosso trabalho, como cronistas da modalidade, é compartilhar as histórias desses atletas; é um erro referimo-nos a eles simplesmente como “os africanos”. E na última década, essa tarefa tornou-se mais fácil. Todo o mundo, do New York Times ao GQ, escreveu sobre Eliud Kipchoge, cujo carisma, sabedoria e habilidade incomparável, o tornaram a maior estrela de corrida de longa distância na história do Quénia. A ascensão das mídias sociais também permitiu que os atletas compartilhassem as suas personalidades diretamente com o mundo (eu desafio qualquer um a não sorrir enquanto assiste à campeã olímpica dos 1500 m, Faith Kipyegon, dançando no seu caminho através de exercícios de mobilidade), ao mesmo tempo que permite uma olhadela em áreas anteriormente inacessíveis. A Equipe de Corrida NN, em particular, é muito boa nisso – qualquer fã sério de corrida, reconhecerá o local de treino da Global Sports que Kipchoge compartilha em Kaptagat com atletas como Geoffrey Kamworor e Augustine Choge .
O leitor deve ter notado algo sobre os nomes no parágrafo anterior. Nenhum deles é etíope. À medida que o mundo das corridas de longa distância aprendeu mais sobre Eldoret e Iten, o irmão Colm O’Connell e Patrick Sang , os vizinhos do norte do Quénia provaram ser um osso duro de roer. O maior motivo: a barreira do idioma. Em geral, os atletas quenianos são muito mais proficientes em inglês do que os etíopes (o que faz sentido, já que o inglês é uma das duas línguas oficiais de trabalho no Quénia) e isso torna mais difícil para a mídia ocidental explorar verdadeiramente as histórias de fundo dos etíopes. Felizmente para nós, esse é um compromisso que Michael Crawley estava disposto a assumir. Em 2015, Crawley, um corredor sério (recorde pessoal de 2h20m na maratona), optou por viajar para a Etiópia durante 15 meses como parte do seu projeto de doutoramento na Universidade de Edimburgo. Inserindo-se na cena das corridas de fundo da Etiópia, Crawley aprendeu amárico e treinou com um grupo de aspirantes a atletas da agência Moyo Sports, na capital de Addis Abeba, para aprender sobre uma cultura onde “correr é a vida”. O resultado é Out of Thin Air – que eu saiba, a mais profunda exploração da corrida de fundo etíope, já produzida na língua inglesa.
Como antropólogo, Crawley deve ser um observador e, na maior parte do tempo, ele desempenha esse papel habilmente. Ele é contido e respeitoso ao discutir as diferentes teorias que encontra nas suas viagens, seja a crença de que o treino na floresta em alta altitude pode “puxar a energia” das árvores ou um episódio em que um exorcismo improvisado deve ser realizado numa corredora que acredita que está amaldiçoada e começa a ter convulsões à beira da estrada, no meio de uma sessão de treino. Em vez de julgar, Crawley utiliza o incidente para explicar porque é que a corredora acredita que está amaldiçoada.
Nalguns casos, entretanto, Crawley não tem escolha a não ser tornar-se um participante ativo, e o livro é mais rico por isso. Memoravelmente, ele entra no Campeonato Etíope de Corta-Mato com o único objetivo de não ser ultrapassado. Ele segue em último lugar, apanhando os retardatários – apenas para que eles desistam imediatamente, para evitar a indignidade de serem derrotados por um estrangeiro.
Out of Thin Air é um pouco limitado na finalidade já que lida principalmente com atletas Amhara (ao contrário de Oromo/Tigray), todos do sexo masculino (Crawley diz que seria considerado culturalmente impróprio para ele, entrevistar atletas femininas).
Embora Out of Thin Air tenhacomeçado como um estudo antropológico, o livro é sustentado por um sentimento de esperança – que tende a acontecer quando o grupo de pessoas que foram escolhidas para traçar o perfil, está a perseguir o mesmo sonho improvável. A forma como eles abordam esse sonho é um pouco diferente do que estamos acostumados aqui nos Estados Unidos – o conceito de “talento” não é muito discutido. Em vez disso, todosacreditam que têm o talento necessário para ter sucesso. Inevitavelmente, porém, eles serão julgados pelo relógio. Alguns dos seus sonhos morrerão.