Arons de Carvalho foi “apenas” um SENHOR do atletismo e um CIDADÃO com letras maiúsculas, um dos jornalistas que mais sabia do atletismo português, um estatístico por excelência da modalidade. Sempre primou pela independência das suas opiniões e análises. Como atleta, foi campeão nacional federado pelo SL Benfica correndo os 800 metros. Participou na primeira meia maratona disputada em Portugal, na Nazaré, onde só falhou duas vezes em 37 edições.
Foi “Atleta do Pelotão” da Revista Atletismo em março de 2012. Neste momento de grande tristeza pelo seu falecimento, reproduzimos seguidamente a sua entrevista.
Tenho o privilégio de conhecer Arons de Carvalho há cerca de 30 anos. Excelente companheiro e boa pessoa, está sempre pronto para aceitar as brincadeiras dos amigos com um sorriso nos lábios. No exercício da sua profissão de jornalista, já perdeu a conta ao número de entrevistados.
Pois chegou agora a vez de ser ele o entrevistado. Afinal, quem não o conhece? Tem 64 anos de idade e começou a correr aos dez. Foi federado e desde que correu a primeira meia maratona da Nazaré, não falhava um fim-de semana sem ir a uma prova. Ultimamente, problemas nos joelhos e nas costas obrigaram-no a reduzir os treinos (três vezes por semana e apenas 40 a 50 minutos).
Mas ainda vê longe o dia em que irá parar a prática desportiva. Já não vai a tantas corridas como antes mas quando aparece, é imediatamente alvo das habituais brincadeiras/desafios dos seus amigos “rivais”. Neste momento e para além de correr pelo SL Benfica, seu clube de sempre, faz ainda natação e ginástica, estas duas modalidades por conselho médico.
O gosto pela modalidade surgiu através de um alemão, visita de família. Aos dez anos, já fazia corridas com o irmão e conhecia todos os principais atletas. Aos 15, foi ao “Primeiro Passo” do SL Benfica, e ficou ao ser sétimo. Logo em 1963, foi campeão regional e nacional de aspirantes (actuais juvenis) de 4×700 metros. Em 1966, foi campeão regional e nacional de juniores em 800 metros e em 1967, foi campeão regional e vice-campeão nacional. Para Arons, essa foi a sua melhor época, fazendo 1.54,9 aos 800 metros, seu recorde pessoal na distância e sexta marca nacional desse ano.
Não melhorou nos dois anos seguintes e depois ingressou no INEF (actual Faculdade de Motricidade Humana). Abandonou a competição e passou a fazer parte da secção de atletismo. Como ele nos disse: “foi uma carreira efémera, muito dedicada mas bem pouco brilhante”.
Na Direcção Geral dos Desportos
Em finais de 1974, quando acabou o serviço militar obrigatório, começou a trabalhar na Direcção-Geral dos Desportos (actual IDP), então liderada pelo prof. Melo Carvalho. Foi o tempo do “Atletismo à Porta de Casa” e do lançamento da corrida para todos. “Nessa altura, era jornalista da parte da manhã, no jornal ‘República’, e à tarde (e muitas vezes, à noite – foram anos saudavelmente ‘loucos’, a seguir ao 25 de Abril) ia para a Direcção-Geral dos Desportos”.
A dada altura, foi incumbido de fazer a adaptação para português de uns folhetos estrangeiros que incentivavam e ensinavam a população a praticar a corrida, algo que apenas os atletas federados faziam em Portugal. Estava-se no princípio da Primavera de 1975. Começou a sentir uma vontade enorme de voltar a correr, mas não tinha qualquer tempo livre. A dada altura não aguentou mais, pediu para sair, ficou apenas como jornalista e passou a correr todos os dias.
Na primeira “meia” da Nazaré
Arons recorda-nos como participou na primeira meia maratona da Nazaré: “Pouco tempo depois, o prof. Mário Machado falou-me dessa prova, que em Novembro de 1975 iria ter a primeira edição. Perguntei-lhe o que era preciso fazer como treino para conseguir correr os 21 km – eu nunca fizera provas superiores a uns cinco quilómetros, em corta-mato… Respondeu-me que bastava correr uma meia hora ou 40 minutos diários. Partindo para a prova com o respeito pela distância que mais tarde iria sentir ao participar em maratonas, fui um dos 170 concorrentes à primeira meia maratona realizada em Portugal. De então para cá, corri centenas de “meias” e, em 37 edições na Nazaré, só falhei duas:
“Há uma evolução do conhecimento intelectual da população, que a leva a precaver-se mais em questões da saúde e a praticar desporto”
11 maratonas em cinco anos
Reconhece que cometeu muitas “loucuras” ao longo destes 37 anos de corridas de estrada. Depois de cinco anos a correr meias maratonas, começou a pensar na maratona. A estreia foi em Abril de 1981, na Maratona Nacional, em Faro. Registou-se um recorde de presenças, com 49 classificados e ele, que pretendia fazer três horas, acabou com 3h04m e… muito mal. “No dia seguinte, fiz triste figura a descer as escadas do metropolitano e só consegui voltar a correr na quarta-feira!”
Entre 1981 e 1986, correu 11 maratonas, conseguindo um recorde pessoal de 2h41m58s, na Maratona Spiridon de 1983, no Autódromo do Estoril (oito voltas de cinco quilómetros e mais uma ida e volta final).
Uma delas foi em Helsínquia, no Verão anterior, no dia de descanso do Mundial de Atletismo de 1983, desafiado por dois amigos. Disse-lhes que os acompanharia só até aos 23 km, à passagem pelo seu hotel e ficaria aí. No dia da prova, eles não apareceram, fez os primeiros dez quilómetros com um português que se estreava e que conheceu à partida, depois aumentou o ritmo, passou em 1h31m à meia maratona, muito fresco, e resolveu ir até ao fim, com a ideia de baixar das 3 horas. Acabou a sofrer, em 3h07m, muito mal disposto pois, devido ao calor, a certa altura, desesperado, bebeu tudo o que lhe aparecia…
Regresso às maratonas aos 45 anos
No início de 1987, com 40 anos, decidiu “travar” e deixar de pensar em maratonas. E assim esteve cinco anos, até que o seu grupo de treino resolveu ir à Maratona de Londres, em 1992. Voltou a treinar mais mas lesionou-se. Recuperou mal, partiu a ressentir-se mas, não sabe como, a dor passou-lhe aos cinco quilómetros. Acabou por fazer 3h15m. A partir daí, o seu grupo passou a ir, uma vez por ano, a maratonas no estrangeiro: Paris, Viena, Boston (a 100ª maratona, com mais de 30 mil participantes – passou a linha de partida 26 minutos depois do tiro de partida e só pouco depois pôde começar a correr… devagar!), Atenas, Roma, Tromso (Maratona do Sol da Meia-Noite, na Noruega – partida às 10 da noite e um sol esplendoroso às duas da manhã, quando cortou a meta), finalmente Berlim.
Com base nestas experiências, o grupo começou a procurar algo de diferente: a Two Oceans, na África do Sul, com 56 km; uma no Tahiti, com um calor insuportável; outra na Antárctida; duas no Sahará.
No Sahará duas vezes
Arons recorda-nos as duas aventuras inesquecíveis no Sahará. Não aquelas de vários dias, mas a maratona que liga os acampamentos dos refugiados sahrauis, um povo mártir como o de Timor, desde 1975 a tentar a independência e vivendo em pleno deserto, com o auxílio (insuficiente) da comunidade internacional. A maratona, realizada anualmente e muito ajudada pelos espanhóis, destina-se a dar visibilidade à luta daquele povo, que recebe os corredores e acompanhantes durante uma semana nas suas próprias tendas. A maratona é no deserto, com o percurso marcado por pneus em locais visíveis. Correu lá as edições de 2001 e 2002.
Maratonas com hérnias discais…
As maratonas fizeram parte da sua vida desportiva, mesmo com hérnias discais. Ainda correu uma maratona de montanha, na serra algarvia de Monchique (em 2003) e a Maratona de Madrid, já (um pouco) acima das 4 horas (em 2005). “Um médico disse-me depois para ter juízo (em relação aos joelhos), as hérnias discais começaram a ‘chatear’ e as maratonas (já eram 30 contando com as duas “ultras”) foram postas de parte. Mas não de todo… “Faltava-me ir correr a Nova Iorque. Há dois anos, com alguns amigos, começámos a planear a deslocação. Fiz três ou quatro sessões de duas horas, alternando corrida e marcha e… estava feito o treino, pensando num tempo acima das cinco horas. Mas o objectivo era só desfrutar e… terminar. Consegui correr até aos 31 km, depois andei duas ou três vezes e conclui, surpreendentemente fresco, em 4h19m! Para trás ficara um grande susto e uma entrada surpreendente na (ampla) zona de partida. Já não estou em idade de pensar em maratonas”.
Momento mais alto da carreira
O momento mais alto da sua carreira foi quando se sagrou campeão nacional federado pelo Benfica em 1967, depois de 11 anos de domínio do Sporting CP. Nas provas populares, escolhe a sua maratona no barco na Antártida.
Faz exames médicos de rotina e refere a meia maratona da Nazaré como a sua corrida de eleição, embora hoje a sua distância preferida se fique pelos dez quilómetros.
A sua família está também ligada ao desporto. Para além do seu irmão, também ele atleta do pelotão, a sua esposa já completou três maratonas a andar, faz BTT e caminhadas. O seu filho, emigrante na Suiça, faz ski, bicicleta e caminhadas.
“As provas podem-se fazer à mesma desde que as Organizações avisem de que não há dinheiro para certas coisas. As pessoas aderem, ainda que possam ir menos”
Melhoria do nível intelectual da população
Na sua opinião, o nível das corridas melhorou muito comparativamente com quando começou a correr. “Ao princípio, havia constantes problemas, Por exemplo, com a marcação dos percursos, (havia atletas que se perdiam), com os abastecimentos que falhavam, os organizadores tinham dificuldades em dar início às provas com os atletas atrás da linha de partida, grandes filas para cortar a meta, não havia chips, etc”.
Refere ainda a falta de animação nas provas como se vê no estrangeiro. “Para além do apoio dos espectadores que aqui não há, lá, temos as bandas de música ao longo dos percursos que dão outra animação”.
Já quanto ao facto de haver cada vez mais gente a correr, Arons relaciona tal com a evolução do conhecimento intelectual da população, que a leva a precaver-se mais em questões da saúde. “Também há mais gente a fazer marcha. Por aquilo que vejo, com tantos milhares de pessoas na rua a fazer desporto, principalmente os mais velhos, acho que já estamos ao nível de outros países”.
Crise não deve suspender provas
Nos últimos dois anos, têm sido várias as provas que foram suspensas. Para Arons, tal é reflexo da crise em que vivemos mas pensa que há formas de fazer as provas desde que se avise previamente as autoridades como se fez agora com Sintra-Cabo da Roca. “As provas podem-se fazer à mesma desde que as Organizações avisem de que não há dinheiro para certas coisas. As pessoas aderem, ainda que possam ir menos”.
Modalidade com futuro cinzento
Associa a actual situação do nosso atletismo federado ao que se passa nos outros países. “Está-se a lutar contra o aparecimento de outras modalidades, talvez mais atractivas na TV. O atletismo nos órgãos de comunicação social está cada vez mais reduzido. Não é fácil angariar jovens para a modalidade. Apesar disso, temos progredido bastante nas disciplinas técnicas. Receio mais o futuro do meio fundo pois está ligado ao nível de vida das pessoas. Estamos bem só no sector feminino mas quando esta geração acabar, não sei”.
Quando tomou três banhos de mar no Tahiti em plena prova
Claro que estórias não faltam a Arons. “No Tahiti registei a minha única desistência. Hesitei até à última se haveria de correr a meia-maratona ou a maratona, com partidas separadas por 15 minutos e cerca de um quilómetro”. Aos dois de prova, o meu companheiro de ‘infortúnio’ sugeriu que voltássemos imediatamente para trás e fosse-mos fazer, antes, a meia-maratona. Já completamente transpirado, disse-lhe que não, que aguentaríamos, correndo devagar. Apenas 500 metros adiante, fui eu a sugerir-lhe que voltássemos mesmo… Foi um sacrifício de 27 km (em 3h15m), com uns três banhos de mar.
Maratona num barco na Antártida
A maratona na Antárctida é a sua grande recordação. Foram de avião até ao sul da Argentina e dali entraram num barco que os conduziu bem a sul. A viagem era turística (visita de várias ilhas do continente branco) e desportiva (tendo em vista correr uma maratona, em duas voltas na Ilha do Rei Jorge). Simplesmente, quando chegaram perto da ilha, o tempo e o estado do mar impediram o desembarque. O barco teria que seguir viagem. Solução: realizar a maratona no próprio navio! Os organizadores foram medir o convés: pouco mais de 109 jardas, por coincidência, 100 metros. Teriam que percorrer 422 voltas.
“Foram 73 os “malucos”, divididos em duas séries. Na Revista de Março de 2001, tive ocasião de contar esta louca aventura de 5h11m18s, gritando volta a volta o número do meu dorsal (forty two) para que os meus controladores não falhassem a anotação, o que me obrigaria a dar voltas suplementares…”
VIP na partida da maratona de Nova York
A terminar, fala-nos da sua última experiência maratonística: “Agora, em Nova Iorque, para conseguirem fazer correr uns 40 mil concorrentes, há nove partidas: três locais diferentes (nos tabuleiros superior e inferior da Ponte de Verrazano), sucessivamente às 9.40 h, 10.10 h e 10.40 h. Do meu grupo, dois saíram na primeira partida e eu saí uma hora depois. Fui por isso mais tarde do hotel para o local de partida, de comboio. Simplesmente, meti-me num comboio errado e, quando dei por mim, estava a caminho da Ponte de Verrazano… mas do outro lado. Já não havia tempo de voltar atrás e a ponte estava naturalmente fechada ao trânsito. Pensei que não iria poder correr. Mas fui até lá. Tive tanta sorte que estava para sair uma pequena fila de carros, em marcha muito lenta e deixaram-me ir num carro da polícia. Só eu e o polícia, que saíra de serviço e ia para casa, precisamente na Staten Island, onde é a partida. E assim, com tratamento VIP, num carro da polícia, fui levado até à partida da Maratona de Nova Iorque!”