Os recentes problemas de saúde com corredores que em grandes provas, beberam água a mais, merecem uma atenção especial de todos nós. Publicamos seguidamente um interessante artigo da Revista Contra-Relógio acerca desta problemática.
Manter-se bem hidratado é uma das primeiras coisas que se aprende em qualquer desporto. Nas corridas, onde mesmo pequenas perdas de líquido corporal podem significar grandes reduções de rendimento, as preocupações com a hidratação foram sendo reforçadas ao longo do tempo e passaram a ser cada vez maiores e mais severas. Cresceram e multiplicaram-se tanto que hoje, analisando de forma mais racional, não há quem não considere que estejam chegando ao exagero.
Em determinado momento da história, já não era apenas suficiente beber água antes, durante e após as corridas. Estabeleceu-se a regra de que era preciso beber mesmo quando o corpo não pedia, mesmo quando ele não precisava. Era necessário beber sem sentir sede, beber preventivamente. Chegou-se ao ponto de estabelecer volumes e intervalos de tempo para se beber! Aparentemente, esqueceram-se de considerar que cada corrida é uma corrida e que os corredores são indivíduos. Hoje já se admite que o tiro saiu pela culatra: o excesso de água pode fazer mal!
Preocupação maior foi sempre com a desidratação
70%. Embora varie de indivíduo para indivíduo, seja maior em atletas e menor em mulheres e idosos, essa é a quantidade média de água presente no organismo humano saudável. Mesmo sendo o componente que aparece em maior expressão, o corpo humano não possui reservas estratégicas de água, razão pela qual ela precisa ser completada à medida que vai sendo consumida. Se tal reposição não ocorrer, o corpo entra em processo de desidratação.
Tanto nas corridas como nos restantes desportos e mesmo fora deles, a recomendação para se beber muita água, sempre esteve associada aos riscos da desidratação. Pessoas submetidas a atividade física intensa, como os maratonistas por exemplo, têm uma perda de líquidos tão acentuada que podem vir a necessitar de repor o dobro ou o triplo da quantidade que um indivíduo precisaria em situação normal. Em ambientes de temperatura elevada, tal necessidade pode ser ainda maior.
Existem sim explicações muito claras para justificar tamanha preocupação com a desidratação. Uma delas é que grande parte da água perdida vem do sangue, o que altera a sua viscosidade (ele torna-se mais espesso), provocando uma diminuição no fluxo sanguíneo e podendo comprometer seriamente toda a função cardiovascular.
Como não dispõe de reservas de água, o organismo lança mão da existente em outras partes do corpo para priorizar, num primeiro momento, a recomposição do sangue. Não havendo a ingestão de líquidos, e sendo esse mecanismo insuficiente, ocorre então um aumento da frequência cardíaca. Quando ainda assim, o aumento da frequência é insuficiente, dá-se a redução da capacidade respiratória com o consequente prejuízo da saúde. Em resumo, a desidratação tinha um remédio: beber toda a água que pudesse e mais um pouco.
No caso das corridas, as preocupações com a desidratação chegaram a tal ponto que virou regra geral, a prescrição para que todo e qualquer corredor, em toda e qualquer prova, bebesse no mínimo um copo de água a cada 15 ou 20 minutos. Isso sem levar em conta que este mesmo corredor já deveria vir para a corrida muito bem hidratado e que jamais deveria partir sem se reabastecer antes. Por trás de tanta água, o medo da desidratação. Só que como tudo na vida tem um preço, o excesso de água pode levar a outros problemas.
A água e os desequilíbrios no sódio
Durante as atividades físicas, a taxa de transpiração é altamente variável. Em média, dependendo da preparação do indivíduo, da intensidade dos exercícios e das condições em que eles estão sendo realizados, perde-se entre 1 a 2 litros de líquidos por hora. Juntamente com a água, misturados ao suor, vão-se também alguns eletrólitos, sais dissolvidos que desempenham importantes funções no organismo. Um dos eletrólitos mais perdidos através da transpiração é o sódio.
Recentemente, constatou-se que o excesso de água – ingerido em princípio para prevenir e evitar a desidratação – acaba provocando um desequilíbrio ainda maior na taxa de sódio, que neste caso já se encontrava diminuída em função da perda pela transpiração. Ou seja: o organismo está com sódio a menos e ainda tem que dividi-lo com a grande quantidade de água que foi bebida. O resultado de tamanha diluição é que a concentração de sódio no plasma sanguíneo baixa muito além dos limites. O nome disso? Hiponatremia.
Hiponatremia e hipernatremia
Entre outras situações mais específicas, a hiponatremia ocorre em indivíduos que por alguma razão ingerem (ou recebem) enormes quantidades de água, ou seja, exatamente o que podiam estar fazendo os corredores que eram (são) orientados a beber abundantemente durante as corridas, mesmo que não tivessem sede. Por serem desequilíbrios eletrolíticos, tanto a falta (hipo) como o excesso (hiper) de sódio no organismo representam riscos à saúde e à vida.
A hipernatremia nada mais é que um desequilíbrio de sódio no sentido inverso. É a situação na qual o organismo contém muito pouca água em relação à quantidade de sódio nele existente. Geralmente a concentração de sódio sobe além dos limites quando há uma perda de água maior que a de sódio, o que, entre outras razões, ocorre quando o indivíduo transpira muito e ingere um volume demasiadamente pequeno de água, levando à desidratação.
Quase todo o sódio do corpo se encontra no sangue e no líquido que envolve as células. Ingerido através dos alimentos e das bebidas, o sódio é excretado pelo suor e também pela urina, sendo que nesse caso os rins têm condições de controlar a quantidade de sódio que eliminam. Tal controle, permite que em situações normais a quantidade total de sódio no organismo varie pouco de um dia para outro.
Um distúrbio do equilíbrio entre a ingestão e a eliminação de sódio afeta a quantidade total de sódio no corpo. Essas alterações estão intimamente ligadas às variações no volume de água no sangue. Uma perda global do sódio do corpo não provoca necessariamente uma diminuição da concentração de sódio no sangue, mas pode causar a diminuição do volume sanguíneo. Quando o volume sanguíneo diminui, a pressão arterial cai, a frequência cardíaca aumenta e o indivíduo pode apresentar tonturas e, em algumas ocasiões, entrar em choque.
A letargia e a confusão mental estão entre os sintomas iniciais da hiponatremia. À medida que ela se torna mais grave, os músculos podem apresentar contrações e o indivíduo pode ter crises convulsivas. Nos estágios mais avançados, podem ocorrer o estupor, o coma e a morte. Quanto menor for a taxa de sódio e mais abrupta for a sua queda, maiores serão os riscos.
Por outro lado, o volume sanguíneo pode aumentar quando existe excesso de sódio no corpo. Na hipernatremia o líquido extra fica retido no espaço em volta das células e acarreta uma condição denominada edema. Um sinal visível do edema é o inchaço dos pés, dos tornozelos e das pernas. Bastante comum entre idosos, a hipernatremia também pode ser observada em indivíduos com disfunção renal, diarreia, vômito, febre ou suor excessivo.
A hidratação equilibrada e suas novas corridas
Assim como faz com o volume sanguíneo, o corpo procura controlar de forma constante a concentração de sódio no sangue. Quando ela aumenta demasiado, o cérebro “sente sede” e incita o indivíduo a beber água. Sensores localizados nos vasos sanguíneos e nos rins detetam as diminuições do volume sanguíneo e provocam uma reação em cadeia que tenta aumentar o volume de líquido no sangue. Mulheres e idosos costumam sentir menos sede.
Embora tenha sido comprovado cientificamente que a sensação de sede só aparece quando a desidratação já chegou a 2%, é preciso lembrar que a hiponatremia em atletas, tem como causa mais frequente o excesso na ingestão de água. Durante os exercícios, a produção de urina diminui, o que reduz a capacidade do corpo eliminar o excesso de água, enquando que, ao mesmo tempo, aumenta a perda de sódio pela transpiração. O efeito resultante da combinação dessas duas ações pode provocar um desastre em relação ao equilíbrio do sódio no corpo.
Além de ser uma atitude bastante pessoal, a quantidade de água a beber numa corrida depende de inúmeros fatores. Nalguns, o atleta tem (ou deveria ter) amplo domínio; noutros, ele nada pode fazer. Numa prova popular, enquanto fatores ambientais como temperatura, humidade, pressão atmosférica e ventos, estão absolutamente fora de qualquer manuseio, mesmo que de forma indireta, a velocidade, o esforço empregado e a frequência cardíaca, podem permanecer sob o seu controle. Nesse caso, falando em hidratação, auto conhecimento e bom senso correm juntos, de mãos dadas.
Em princípio, todos os corredores deveriam conhecer-se bem, ter boa noção de si e do funcionamento do seu organismo. Saber como o seu corpo reage nas diversas situações de uma corrida vai além do simples treino. Ouvir e dar atenção aos sinais do corpo, a tempo pode fazer toda a diferença. Costuma transpirar muito? Sinal que precisa beber mais e com maior frequência. O dia está frio e hoje o suor é pouco? Use o bom senso, ajuste-se à situação e beba menos. Resolveu trotar e não está nem suando? Um só copo deve resolver. Suou além do normal por muito tempo? Nesse caso, talvez precise mais do que simplesmente água pura: uma bebida isotónica, por exemplo.
Resumindo: em termos da hidratação adequada, o ponto-chave das suas novas corridas, deverá passar por deixar o seu corpo dizer se ele quer mais ou menos líquido. Não se descuidando nunca da importância da água, esqueça um pouco as recomendações teóricas – de modo geral, elas tendem a ser um tanto exageradas ou ficam afastadas da realidade individual – e beba quanto e quando o seu corpo pedir. Aprenda a dosear bem a quantidade ingerida. Nada de ficar naquele desespero do “tenho que beber agora dois copos e um daqui a vinte minutos”. Esse tempo já passou.
Interferência nas avaliações. Fique alerta
Antes de continuar, um último parênteses. Hidratação não diz respeito apenas à água. A eliminação de fluidos pela urina e especialmente pela transpiração acarreta também a perda dos eletrólitos. Embora a composição varie de pessoa para pessoa, um litro de suor costuma conter: 0,02 gramas de cálcio; 0,05 g de magnésio; 0,23 g de potássio; 1,15 g de sódio e 1,48 g de cloro. Como no caso do sódio, o desequilíbrio em qualquer desses ingredientes causa distúrbios no funcionamento do corpo.
Além da sensação de sede ter uma forte componente de subjetividade, e poder ser retardada, tanto pela ação do próprio sódio (taxas muito altas fazem isso) como pelo avanço da idade, nem sempre é fácil perceber se a quantidade de suor produzida é ou não abundante. Em dias de humidade elevada, por exemplo, uma t-shirt encharcada não significa necessariamente excesso de transpiração. Já nos dias muito secos, com a maior parte a evaporar-se rapidamente, como avaliar a quantidade de suor produzida? E ainda temos as corridas debaixo de chuva, ou aquela onde partimos já meio cansados.
As interferências na avaliação não terminam aí. Como o ideal é que a quantidade de água eliminada através do suor, da saliva, da respiração (sim, o pulmão também elimina água!), da urina e das fezes seja sempre reposta, o corredor deve ficar atento aos seus hábitos. Voluntárias ou não, eventuais mudanças na rotina devem merecer uma atenção extra. Aquela taça de vinho (o álcool desidrata muito) ou uma constipação intestinal, podem requerer mais líquidos.
Certas práticas são testadas nos laboratórios e, depois de comprovadas, ganham as ruas. Outras fazem um caminho meio inverso. Ainda sem dados científicos, a teoria do “hidrate-se de acordo com a sua sede” está hoje na segunda categoria. Seja como for, é importante que o corredor tenha em mente que novas descobertas irão acontecer, neste e em outros campos do desporto.