“Para entrar numa pista de atletismo é preciso um e-mail ou papel”
Pedro Pichardo deu uma importante entrevista a Alexandra Simões de Abreu, da Tribuna Expresso, na qual mostra o seu grande descontentamento para com a nossa burocracia e o desinteresse manifestado pela Federação. Explica as razões porque abandonou o seu país e que estão relacionadas com o seu treinador, o seu pai. E embora não esteja arrependido de ter escolhido o nosso país, admite abandoná-lo, a manter-se o atual estado de coisas.
Lamentando não estar presente no atual Europeu de Berlim, Pichardo mostra-se mais preocupado se não poder estar presente nos Jogos Olímpicos ou no Mundial.
Dado o seu interesse, reproduzimos as partes principais da entrevista dada a Alexandra de Abreu.
É líder mundial do ano. De que forma a vinda para Portugal, nomeadamente para o Benfica, ajudou a melhorar a sua performance?
A minha performance não tem nada a ver com Benfica ou Portugal, essencialmente tem a ver com o meu treinador que foi o motivo pelo qual eu deixei Cuba. O meu treinador é o meu pai e foi ele quem melhorou o meu desempenho. Até porque não temos em Portugal as melhores condições para treinar.
Explique isso melhor?
Há condições, mas há problemas para entrar num estádio qualquer. Há muita burocracia. Faltam alguns pormenores para trabalhar bem, mas não nos focamos nisso e continuamos a trabalhar. O meu pai tenta compensar essas falhas com alguns exercícios.
O que é que falta para as condições aqui serem as ideais?
A Federação Portuguesa de Atletismo [FPA] não me apoia. Não tenho nenhum apoio. Só há poucos dias conhecemos o presidente da FPA, numa bomba de gasolina, enquanto metíamos combustível.
Nunca foram apresentados?
Não. Não temos apoio da FPA, tudo o que fazemos é com o apoio do Benfica e do meu patrocinador, a Puma.
Não recebe subsídio como atleta de alta competição?
Não. Não recebo nada. O Benfica disse-me que surgiu no jornal uma notícia que dizia que eu estava no plano de alta competição, mas não sei como é possível fazerem isso sem antes falarem comigo, porque se tenho direito, ninguém me disse nada. Se existe algo, não sei. Treino no Estádio Universitário porque a Ana Oliveira, diretora do Benfica, tratou de tudo. Não sei com quem ela fala, se é com a federação ou com os dirigentes do Estádio, mas ela trata de tudo. Por exemplo, estive três semanas no Algarve a treinar e foi o Benfica quem teve de fazer o pagamento. Para treinar numa pista, a Ana Oliveira tem de enviar um e-mail. A parte do ginásio, por exemplo, faço-a aqui no Estádio da Luz, porque no Estádio Universitário não tenho boas condições de ginásio. Quando preciso de relva para treinar, a pista 2 do Estádio Universitário não tem boa relva e na pista 1 é muito difícil treinar. Se tenho de fazer treino técnico, tenho de ir ao Jamor…
Está um bocado desiludido?
Estou feliz com o Benfica, que tem feito tudo para eu estar bem, mas não percebo – sendo eu um bom atleta de nível mundial – que a FPA esqueça que eu existo. É como se não existisse.
Custou-lhe muito a adaptar-se?
Sim. Ainda me custa um pouco. Há coisas que não entendo porque é que aqui não e ali sim e vice-versa.
Por exemplo?
A burocracia que existe cá é demais. É preciso papéis para tudo. Para entrar numa pista de atletismo é preciso um e-mail ou papel. Todas as pessoas sabem que faço atletismo, que treino cá, mas se o Benfica ou a federação não mandam um e-mail a uma pista, não me deixam entrar. Mesmo sabendo que é o meu trabalho. Essas coisas, não entendo. Em Cuba as pessoas sabiam que eu saltava triplo e se fosse a alguma pista, deixavam-me entrar e treinar. Há coisas que me custam a entender.
Porque é que Cuba impedia que o seu pai fosse o seu treinador?
Cuba é um país bastante complicado para uma pessoa de fora entender o mecanismo. Há uma política bastante estranha dentro de Cuba. Eu e o meu pai nascemos em Santiago de Cuba. Em Cuba não existem clubes, há a equipa nacional, que é só uma, que fica em Havana. O meu pai não trabalhava em Havana logo não podia treinar-me. Eu pedi para voltar para Santiago para poder treinar com ele, mas se voltasse para Santiago não podia competir internacionalmente. Ainda pedimos que deixassem o meu pai trabalhar comigo em Havana, sem salário nenhum, mas também não quiseram. Tentamos encontrar várias opções e soluções. Inclusive estive castigado em 2014 porque não quis treinar com o treinador da equipa nacional. A única solução era sair de Cuba.
A vossa saída foi toda planeada?
O meu pai foi trabalhar para a Suécia, porque em Cuba era impossível. Estava como treinador num pequeno clube sueco, há três anos. Eu estava em Cuba. Mas como não me permitiam trabalhar com ele, tivemos tempo para falar com a família e preparar as coisas. Fui para a competição em Estugarda e decidimos que eu saía aí.
Qual era o vosso primeiro objetivo? Pensavam ficar em que país?
A nossa ideia era a Europa. Não tínhamos nenhum país em mente. A única coisa clara para nós, é que queríamos trabalhar juntos. Fosse em que país fosse. Fosse na Alemanha, na Suécia, Espanha, Portugal, Itália, qualquer país.
Como vêm parar a Portugal?
Na altura eu tinha uma empresária que conhecia o Benfica. Entraram em contacto e chegámos a acordo. Mas não estava planeado.
Nessa altura o que sabia e conhecia de Portugal?
Não sou grande seguidor do futebol, mas o meu irmão em Cuba seguia o futebol e sempre o ouvi falar de Portugal, de Espanha. Quando a minha empresária me falou sobre isso obviamente que fui para a net pesquisar sobre Portugal. E gostei. Havia outras ofertas, não só de Portugal. Tínhamos ofertas de outros clubes de outros países mas decidimos vir para cá, até porque a oferta do Benfica era a melhor.
… Começou a treinar aos seis anos. Já tinha o triplo salto em mente?
Não. Quando começas com seis anos fazes provas combinadas. Fazemos praticamente tudo. Nessa idade não é recomendado fazer triplo salto porque é muito forte.
Nessa altura, do que gostava mais?
Sempre gostei do salto em comprimento e acho que para o próximo ano vou começar a fazer comprimento em Portugal e os 100m também. A prova de que mais gosto é o comprimento, mas o triplo salto é mais emotivo. Sempre gostei da rivalidade e em Cuba havia mais rivalidade no triplo do que no comprimento. Gosto da competitividade.
No triplo salto, qual é o movimento mais difícil para si?
A segunda fase do salto. É a transição mais forte e mais abrupta porque todo o impacto está sobre uma perna. Vens na velocidade quase máxima e essa força é exercida toda sobre uma perna. Esse momento de transição de cair e sair é bastante difícil.
… Qual é o seu maior objetivo?
Ganhar todas as competições de alto nível, Jogos Olímpicos, Mundial e Europeu e Liga Diamante. Mas o grande sonho, o objetivo pessoal maior é bater o recorde mundial, é para isso que estou a trabalhar. Esse é o meu principal objetivo.
E tem alguma meta definida?
Gostaria de ficar acima dos 18,50m. Seria algo super louco e exagerado.
… Discute muito com o seu pai nos treinos?
Agora já não. Antes, sim. No treino a nossa força tem que ser como na competição. Ele dizia-me: “Quero que faças no treino o que fazes em competição, porque o resultado depois em competição pode ser muito melhor”. Só que eu supero-me nas competições. No treino para mim é difícil saltar. Nunca faço um salto completo nos treinos. Nem sequer tenho motivação. Preciso da competição e da rivalidade para me motivar. O sonho da minha família e o meu é demonstrar que sou o melhor do mundo.
Vive em Portugal com a sua mulher e o seu pai e tem uma filha que já nasceu cá.
Sim, a Rosalis Maria tem oito meses.
E a sua mulher era atleta
Dos 100 e 200 metros. Esteve nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Ela está cá também há um ano. E já voltou a treinar. Para o ano vai começar a competir. Não tem sido fácil para ela, porque só me tem a mim e ao meu pai. Do lado dela não tem cá ninguém, nem mãe, nem pai.
Da sua família mais próxima, quem ficou em Cuba?
A minha mãe. Tenho três irmãos, todos mais velhos. O terceiro fazia 400 m em Cuba. Mas como ali é tudo difícil, quando surgiu o problema comigo, não me deixavam trabalhar com o meu pai, ele desistiu.
O único salário que recebe é do Benfica?
Sim. Tenho sponsors também. Comprei uma casa há um mês no Pinhal Novo, em Setúbal. Antes estava num apartamento em Lisboa que o Benfica pagava, mas quando consegui juntar dinheiro comprei a casa.
Porquê tão longe?
Não me adapto a Lisboa, é muita confusão. Gosto de ouvir música e não gosto de morar num apartamento, com vizinhos. Comprei um casa térrea, tenho espaço para ouvir música, tenho estacionamento para o carro, que não tinha no apartamento em Lisboa.
Está arrependido de ter vindo para cá?
Não, de maneira nenhuma. Só que cá olha-se para o atletismo de uma maneira a que não estava habituado. Quando estava em Cuba viajava para vários países e via o valor que davam ao atletismo. Em Portugal só peço uma pista em condições, com tudo. Não quero uma pista só para mim, apenas quero uma pista como tinha em Cuba, que tem tudo o que preciso e não tenha que fazer como agora, em que vou à pista do Estádio Universitário fazer um treino, depois tenho de meter-me no carro e vir para o Benfica fazer ginásio e se quero fazer técnica tenho de ir ao Jamor. É a isso que não me adapto. Como é possível que no século XXI as pessoas aqui não conheçam muito um desporto mundial como o atletismo, nem reconheçam o valor que merece?
Pensa mudar de país?
Quero viver em Portugal, mas já falei com a diretora do Benfica. Da minha parte já tenho os documentos e a minha mulher também. Por isso estou a pensar treinar fora de Portugal. Porque não me dão valor como o bom atleta que sou. Por vezes pergunto à Ana Oliveira, que é a pessoa mais próxima da minha família cá: “Imagina que Cristiano Ronaldo vai a Cuba. Em Cuba, o futebol não tem expressão, não vale nada. Imagina ele sentir-se como me sinto aqui? Sem nenhum reconhecimento do seu valor e do seu trabalho? Vai sentir-se mal também. Em Portugal o atletismo não tem muito valor, mas sou um bom atleta. Nelson Évora é um bom atleta também e foi para Espanha. Que faço eu, tenho de ir para fora de Portugal também?” Então vou.
Está a pensar mesmo ir para fora?
Ainda estou a treinar cá porque o meu pai e a minha mulher não têm os papéis de residência. Quando tiverem, vou para a América, para outro país onde possa treinar com boas condições.
Põe a hipótese de voltar a Cuba?
Não [risos]. Pode ser qualquer outro país, EUA, Bahamas, qualquer outro país da América. Estou impedido de entrar em Cuba durante oito anos.