Os atletas não são todos iguais, as provas de ultra trail não são todas iguais e os postos de abastecimento não são todos iguais. Estas são apenas algumas das condições que podem complicar a elaboração de uma estratégia nutricional que funcione a 100% para todos os atletas e em todas as provas, principalmente se os atletas tiverem objetivos e ritmos de corrida diferentes.
Tendo isto em consideração, é fácil perceber que o ideal passa sempre por uma abordagem personalizada ao atleta e ao evento competitivo em causa.
Porém, com base na ciência, podemos sempre indicar procedimentos que devem ser evitados ao máximo, isto claro, se o objetivo for obter a melhor performance desportiva possível, e não simplesmente concluir a prova por puro lazer (que também é uma opção válida!).
Um dos principais problemas dos atletas de ultra endurance são, sem dúvida, as complicações gastrointestinais durante a prova. Até podemos ter as melhores sapatilhas do mundo, mas se começarmos a ter dores de barriga, cólicas, diarreia, náuseas ou vómitos, não será fácil concluir a prova em “bom estado”. E todo o esforço de preparação anterior à prova, o ritmo e tempo de corrida, prometidos pelos treinos intensivos…não serão suficientes para dar a volta ao problema.
Um dos grandes responsáveis por estes sintomas extremamente desagradáveis, é a alimentação durante a prova. De uma forma simples, tentaremos explicar alguns erros que devemos evitar, para que não surjam complicações gastrointestinais.
Comer demasiado durante a prova e nos postos de abastecimento.
a) Fruto das características do trail running, o nutriente com maior destaque para “alimentar” durante a prova, serão os hidratos de carbono. Porém, existem limites na sua ingestão. Um valor de referência seguro, será ingerir entre 30 a 60g hidratos por hora.
b) Acontece que muitas vezes, estes valores recomendados são largamente ultrapassados. E se isso acontecer, o nosso intestino não vai conseguir absorver os hidratos de carbono todos, que ficam a “atrapalhar” o processo digestivo e o intestino. Resultado: GRANDE PROBABILIDADE DE DESCONFORTO GASTROINTESTINAL (principalmente se o ritmo de corrida for intenso, com grandes acumulados, subidas e terrenos difíceis, e se o atleta estiver no “limite” e fatigado). Existe a crença de que é preciso comer bem para ultrapassar as dificuldades da montanha… mas muitas vezes o problema está no treino físico e não na necessidade de comer antes de subir a montanha! Se assim fosse, não precisávamos de treinar muito…apenas de comer muito durante a prova… o que está claramente errado.
c) Tendo em conta que a recomendação ronda os 30 a 60g de hidratos por hora, vejam o exemplo de um atleta que por hora come o seguinte: 350ml de bebida desportiva (em média 25g de hidratos) + 1 gel (em média 20g de hidratos) + 1 barra (em média 40g de hidratos). Só aqui, ingeriu 85g de hidratos! Depois no posto de abastecimento, come mais ½ banana pequena (10g hidratos) + ½ laranja pequena (5g hidratos) + 2 tostas com mel (15g de hidratos) + 1 cubo de marmelada (20g de hidratos)……ou seja, mais 50g de hidratos. Um total de 135g de hidratos, quando o ideal seria entre 30 a 60g por hora! Como podem ver, está aqui a receita para um grande “empeno gastrointestinal”, que como sabem, acontece mais vezes que o desejado.
Não treinar estratégias de alimentação nos treinos, semelhantes às que se têm em prova/competição.
a) O nosso intestino é um órgão muito sensível, e que tal como os músculos, deve ser treinado! É muito frequente vermos os atletas fazerem treinos longos, e não utilizarem a mesma quantidade e tipo de alimentos e suplementos que depois usam nas provas. Ou seja, são capazes de fazer treinos longos de 3 a 4 horas com um aporte mínimo de hidratos de carbono, mas depois nos dias das provas, comem significativamente mais do que aquilo que o intestino está habituado. Como podem calcular, o resultado pode não ser muito bom (quem se identifica com esta situação que ponha o dedo no ar!)
b) Por outro lado, até se alimentam bem durante os treinos longos, mas o treino pode não ter a intensidade e dificuldade que depois encontram na prova. A somar a isto, no dia da prova, o stress e os “nervos”, ajudam a complicar a situação. Resumindo: “Treinem o intestino” nos treinos mais longos e intensos, tentando simular ao máximo o que vão encontrar nas provas desportivas. Só assim vão conhecer a reação do vosso corpo, em relação à alimentação, quando o levarem ao limite!
Comer alimentos quentes como canja, sopa ou chá quente (em dias de prova com temperaturas elevadas)
a) Dando como exemplo o Grande Trail da Serra D’Arga 2015, onde as temperaturas rondaram os 30ºC, certamente que alimentos quentes não são uma boa opção. Isto porque a temperatura corporal deve ser controlada, e se aumentar demasiado vai afetar negativamente a performance do atleta. Por isso, uma sopa ou canja quentes, ou até mesmo um chá quente, nestes casos, não serão uma boa escolha do ponto de vista desportivo.
b) Por outro lado, a sopa de legumes é rica em fibra o que não é bom para o conforto intestinal. Já a canja de galinha (à boa moda minhota) poderá ser demasiado gordurosa e contribuir ainda mais para prejudicar a digestão e o conforto gastrointestinal. Compreendo que estes alimentos quentes poderão ser apetecíveis em provas muito longas ou demoradas (até por causa da sensação de “fome”), mas do ponto de vista nutricional/desportivo não serão as escolhas ideais (e mais uma vez, principalmente em dias de temperaturas elevadas).