Alta velocidade por período prolongado leva atletas ao limite. Barreiras são “alívio”
Pela expressão dos atletas, poderíamos pensar que eles acabaram de completar uma maratona ou marchar dezenas de quilómetros. Mas os rostos contorcidos, num misto de exaustão e náusea, na verdade são de corredores de uma distância bem mais curta. Os 400 m que representam uma volta completa à pista de atletismo, são talvez os mais cruéis do programa de eventos. No limite que separa as corridas de velocidade pura das de meio-fundo, a prova exige muita intensidade por um período prolongado. E o corpo cobra essa conta rapidamente, muitas vezes aos olhos do público.
É bem comum que os atletas vomitem ainda à beira da pista. Vários passam mal no caminho destinado às entrevistas pelo esforço que representa falar logo após colocar o corpo à prova de forma tão intensa. Se a cena impressiona espetadores ou jornalistas, não causa qualquer espanto aos próprios atletas. Eles já estão acostumados a tal, seja nas competições ou nos treinos.
-Imagine Usain Bolt correndo os 100 m quatro vezes seguidas, uma atrás da outra, fazendo no máximo 11s para cada trecho. No caso dos 400 m, a velocidade não é 100% como nos 100 m, mas é uma resistência de velocidade, que vai cansar muito e exigir muito no percurso. A partir dos 200 m, o atleta já sente o ácido lático, a perna pesada, a respiração mais acelerada, os músculos do braço pesando… Não é uma prova estratégia, é forte do começo ao fim. Não dá para se poupar, tem sempre um ritmo muito intenso, e nem todos aguentam no final. É preciso trabalhar acima dos limites de dor e cansaço, sempre fora da zona de conforto.
Um fisiologista explica que o mal-estar não tem relação direta com a hidratação ou a alimentação antes da prova – apesar de recomentar que os atletas evitem a ingestão de sólidos nas duas ou três horas que antecedem as provas a fim de minimizar a ânsia de vómito pelo conteúdo gástrico. O grande vilão é o acumular do ácido lático, composto orgânico que gera cansaço e dores musculares quando produzido em excesso – o que ocorre em atividades físicas com alto grau de intensidade.
Os 400 metros representam o tipo de prova na qual existe o maior acumular de ácido lático. Em nenhuma outra prova no atletismo existe uma solicitação como essa, ou seja uma enorme produção de energia pelo metabolismo anaeróbico lático. O resultado é um acumular enorme de ácido lático e uma queda do pH do sangue, o que significa a chamada acidose metabólica. Esta acidose provoca um grande mal estar com tontura e ânsia de vômito. Para quem corre 400 metros isso é comum.
Na atualidade, o maior especialista em fazer o difícil parecer fácil é Wayde Van Niekerk. No ano passado, nos Jogos do Rio, o sul-africano sagrou-se campeão olímpico batendo o recorde de Michael Johnson que durava há 17 anos. Baixou o recorde olímpico em 46 centésimos, e o mundial em 15 centésimos.
Com o anúncio de que Usain Bolt não disputaria os 200 m no Mundial de Londres, Wayde intensificou os seus treinos em distâncias mais curtas para suprir essa lacuna. Superou a barreira dos 10 segundos nos 100 m, bateu o recorde mundial dos 300 m (prova não olímpica) e prepara-se para uma dobradinha. Passar mal no fim? O sul-africano geralmente termina sorrindo para as fotos.
– “Eu tenho uma relação de amor e ódio com os 400 m. Terminar os 400 m é sempre muito doloroso, mas atualmente, eu fico felizmente surprendido sobre a forma como eu consigo lidar com o ácido lático” – disse o recordista.
Também o brasileiro Lucas Carvalho garante que a exaustão nos treinos é muito maior do que nas competições.
– “É uma prova muito rápida, longa. Você tem muitas dores durante a prova e mesmo assim precisa continuar correndo rápido. Acho que acaba fazendo muito esforço, passando do ponto do corpo. Acaba ficando muito mal às vezes, na maioria delas caindo no chão. Em prova, nunca cheguei a passar mal, mas o treino é mais doloroso do que só uma série. Já cheguei a passar mal algumas vezes.
Quando as barreiras servem de alívio
Se o esforço já parece extremo nos 400 m, imagine então quando se acrescentam barreiras à prova. Deve ser pior ainda, não? Não. Atletas explicam que a disposição dos dez obstáculos ao longo da pista gera uma corrida muito mais ritmada, e que o aparente maior esforço para saltar entre as passadas, produz na verdade um breve momento de alívio.
-“Para os barreiristas, o plano dói muito. É uma prova de muita velocidade por muito tempo. A barreira não, tem um ritmo diferente, o atleta faz passagem por passagem e pensa no que vai fazer. No plano, é um tiro e seja o que Deus quiser”.